• Nenhum resultado encontrado

S ERVIÇO S OCIAL

A NEUTRALIDADE TÉCNICA EM DEBATE

175 Ao percorrer os processos de emergência, institucionalização e de profissionalização do Serviço Social, dá-se conta da diversidade de formas que podem tomar as teses sobre o Estado e as suas políticas sociais e pretende-se evitar a conotação de neutralidade que, por vezes, lhe é atribuída.

Actualmente com uma crise estrutural do Capitalismo e sobretudo com a crise da sua relação com os Estados, aumenta a complexidade e a diversidade de análises e a necessidade de um contínuo aprofundamento, quer sobre o papel dos Estados providência, quer sobre a própria natureza do Estado, quer sobre os posicionamentos dos técnicos que nele (e/ou em nome dele) intervêm - algures entre a influência weberiana de uma autonomia técnica e as influências de paradigmas científicos que concebem o técnico como estando fora ou dentro, dos sistemas em que intervém.

Sobre a concepção de Estado, opõem-se várias perspectivas, nomeadamente as pluralistas e marxistas, divergindo fundamentalmente nas suas concepções sobre a relação do Estado com a Sociedade. As teorias pluralistas, resultantes da emergência e desenvolvimento da teoria política pluralista, no âmbito da teoria liberal, apresentam o pluralismo como a reinterpretação do «bem comum», assumindo o Estado uma posição de árbitro neutro e tendem a supor que o Estado é bastante autónomo em relação à sociedade - o que tem justificado uma posição de aparente neutralidade perante os diferentes grupos de interesse, na tentativa de colocar o Estado e os seus agentes fora dos conflitos sociais. As teorias marxistas, ao invés, definem o Estado pelo seu compromisso com a classe dominante, atribuindo-lhe um papel de mediador de conflitos no interior dessa mesma classe.

Quer numa, quer noutra perspectiva são grandes as influências para os assistentes sociais que se tendem a posicionar entre estes dois extremos, como estando fora dos conflitos sociais e/ou como tendo neles um papel mediador, o que de certa maneira implica uma equidistância neutral.

Gosta Esping-Anderson (1999) referia que o Estado se proclamava então (e, alguns ainda se proclamam) como «regulador», «animador», «supervisor» e «mediador», renunciando tendencialmente ao uso da noção de «controlo» e utilizando um novo léxico com termos como «monitorização», tornando necessário que a análise se interesse por estas estratégias de acção estatal,

176 designadamente pelas que têm vindo a fazer apelo à «descentralização», à «territorialização» e à «contratualização» das políticas sociais públicas.

Associadas a estas estratégias, diversas noções como «autonomia», «participação», «projecto», «contrato», «parceria», «partenariado», «território» e «comunidade», só para referir alguns exemplos, têm sido abundantemente utilizadas, quer no plano da acção local quotidiana, quer ao nível das políticas públicas que se têm voltado para o local como forma de relegitimação da acção estatal. O seu uso tem-se generalizado de tal forma que parece ter-se tornado um vocabulário obrigatório para formular, descrever e analisar os problemas sociais e educativos contemporâneos.

Uma das tendências actuais do Serviço Social aponta para formatos como o «managerialismo», entendido como a aplicação dos princípios de gestão ao campo da intervenção social (Dominelli, 2004:284) onde prevalece uma hiper racionalidade instrumental. Neste domínio salientam-se como duas fortes tendências contemporâneas da prática profissional a «Evidence-based practice» e a «Competence-based pratice».

A primeira, de inspiração positivista, prossegue um objectivo de rigor e cientifização da prática, com uma aposta na objectividade e planificação das práticas (elaborando guias de procedimentos) de forma prévia e generalizada a diversas situações (Webb, 2006:14), com o fim de maximizar a racionalização e a eficiência dos serviços; a segunda, é de inspiração Fordista, propondo uma padronização da intervenção através de uma decomposição da prática profissional em procedimentos e permitindo assim uma maior monitorização do desempenho dos profissionais e, supostamente, dos resultados atingidos (Dominelli, 2004).

Estas tendências, apesar de constituírem fonte de tensão entre os profissionais, parecem recolher a adesão de uma grande parte das organizações sociais mas também de alguns trabalhadores sociais (nomeadamente assistentes sociais) que entendem como ‘securizante’ ter ‘guide lines’ que prescrevam e balizem a sua intervenção. Por outro lado, acentua-se o dilema para outros profissionais entre «o que os serviços nos pedem que façamos» e «o que achamos que devemos fazer».

177 Neste domínio arrisco a convicção de que todos os profissionais que têm uma vertente de trabalho com o comportamento humano, lidam com domínios consideráveis de incerteza e imprevisibilidade e que se situam em campos de intervenção onde as ‘guide lines’ poderão ter importância como horizonte e referência, mas não podem ser entendidas como «receitas».

A ideia de ‘neutralidade’ que pretendo questionar também tem muito de um sentimento de omnipotência sobre o outro (quer na vertente de diagnóstico dos seus ‘males’, quer nas ‘boas soluções’ que se prende que ele/a implemente) e onde o «paradoxo da ajuda» constitui um dos quadros de referência – separando os contextos entre «ajudados» e providenciadores de «ajuda», estabelece uma relação dinâmica que reproduz o estatuto e a condição de ‘menoridade’ e ‘incapacidade’ dos «ajudados» em relação com a medida de pressão e controlo que os «providenciadores de ajuda» exercem. E apesar dos trabalhadores sociais, e no caso os assistentes sociais, terem realizado abundantes tentativas de se reinventarem, adoptando novos quadros de referência teórico-metodológicos e novos léxicos, muitas vezes, não chegam a questionar «para que serve tudo isto?» num debate que se entende necessário sobre as finalidades das intervenções e sobre as perspectivas e as metodologias que em cada tempo e contexto histórico se tornam moda.

Uma intervenção ‘técnica’, ‘neutra’ e ‘exterior’ ao sistema em que intervém é muitas vezes realizada com uma visão humanista centrada na adaptação da pessoa «assistida» e no seu papel de «utente» de serviços e respostas sociais, realizada simultaneamente nas estruturas institucionais e à margem delas - em redes informais que estes técnicos são peritos em construir. Também, coloco a possibilidade de que ao acolher e tentar «resolver» os pedidos que lhe são colocados, estes profissionais dão uma ilusão de resposta institucional e de justiça social que contribui para manter o «status quo» e as desigualdades de origem.

Num outro posicionamento epistemológico que me é mais próximo (embora seja respeitante a um nível micro de intervenção) e de acordo com a Teoria dos Sistemas Observantes (Pakman, 1991), o interventor é encarado como observador-participante na realidade em construção, implicando o processo de intervenção uma «acoplagem» de dois sistemas (técnico e unidade de

178 intervenção: família/rede/organização,…) que se perturbam mutuamente e de que resulta uma co-evolução.

Aceitando estas premissas, dá-se relevo à dimensão temporal e histórica dos sistemas com que se intervém e, o Assistente Social não tendo capacidade de controlo e previsão, posiciona-se como catalisador da mudança, privilegiando na intervenção uma vertente estética e semântica, em detrimento de uma vertente pragmática. Reencontra-se deste modo, a noção de capacidade auto- curativa do sistema, de que falava Bateson onde o próprio «sistema-cliente» participa como actor. Esta migração de conceitos de outras áreas do conhecimento, concretamente da teoria geral dos sistemas (L. Von Bertalanffy), da Cibernética (N. Wiener; H. Von Foester) e da Teoria da comunicação humana (G. Bateson e Grupo de Palo Alto) chegou-me através da formação em Terapia Familiar e pertence a um movimento científico e psicoterapêutico global composto pelas vertentes epistemológica, teórica e prática, com o qual o Serviço Social poderia «trocar» bastante conhecimento.

Ao entendermos a história da formação em Serviço Social como um percurso contínuo, embora não linear, podemos identificar em extremidades opostas duas ideias de formação com possibilidade de várias soluções intermédias e combinadas entre elas: por um lado, a ideia de formar agentes de controlo

«meninas de boas famílias» para responder a uma «vocação» e cumprir a «missão» de «reeducar» os pobres e prevenir a conflitualidade social e, por

outro, a ideia de formar agentes de mudança interventores sociais, mobilizados por um ideal de mudança social, capazes de equacionar as variáveis societárias e de participar na definição e gestão das medidas de política e também de continuar a participar nos mecanismos de redistribuição nos diferentes sectores sociais, contribuindo para montar mecanismos de apoio e compensação à vulnerabilidade social.

Apesar desta caricaturização e da dicotomia estigmatizada mantém-se um foco que tem prevalecido ao longo dos tempos, na mudança dos «pobres, excluídos ou não-integrados», em detrimento de uma actuação mais abrangente nas organizações e instituições ou de um questionamento sobre o próprio objecto do Serviço Social e dos modelos de Estado e Sociedade. Até porque sendo os assistentes sociais, na sua grande maioria, trabalhadores por conta de outrem,

179 com estatuto e reconhecimento públicos, a expectativa é de que resolvam problemas, façam uma gestão eficaz e eficiente de dispositivos de apoio e não que coloquem problemas.

Assumo como hipótese que os assistentes sociais encontram dificuldades acrescidas quando pretendem investir numa actuação mais política e ético- deontológica e, que sejam sobretudo docentes e/ou profissionais - investigadores que, nessas qualidades, se encontram prioritária ou temporariamente fora do campo organizacional da intervenção directa e sem sujeição hierárquica ao nível da avaliação do «fazer».

Com ciclos de compromisso com a Questão Social, no seu enunciado «velho» e «novo», com as Políticas Sociais do Estado-providência e com os Direitos Humanos, os assistentes sociais têm sido formados para «humanizar» um determinado modelo de desenvolvimento que naturaliza as categorias dicotómicas de ricos e pobres, de incluídos e excluídos, de problemáticos e não problemáticos e de funcionais e disfuncionais. Não se trata, como bem referem Stoer e Magalhães, de dizer que:

“…estão esgotadas as tradicionais políticas sociais fundadas na consecução dos objectivos de igualdade, mas de enfatizar que essa perspectiva tem de abarcar outros aspectos que estão para além, e para aquém, da igualdade económica.” (2000:164)

Trata-se seguramente de encontrar saídas que não se inscrevam nas correntes de pensamento que se encontram esgotadas.

A reinvenção da profissão passará pela humildade de interrogar a disciplina e a «praxis», num debate onde o rigor se fará quotidianamente pela reflexão contínua sobre as crenças, os preconceitos e as ideologias, mas também pela interrogação da investigação científica que em dado momento se torna pertinente e mobilizável, permitindo debater ‘o que se sabe’, ‘o que não sabe’ e ‘o saber dos outros’.

180

C

APÍTULO

3

O

LUGAR DO

«

NÃO

-

SABER

»

FACE AO