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S ERVIÇO S OCIAL

D E QUE FALAMOS QUANDO FALAMOS DO « SOCIAL »?

Não sendo minha pretensão dar conta da totalidade e da complexidade de perspectivas sobre esta questão, referenciam-se apenas algumas que, no momento, se revelaram fecundas para abrir janelas de leitura.

Gostaria de começar por situar a génese da assistência social em Durkheim e nas influências do alemão Bismark, entre outros, no sentido de que procuraram encontrar solução para os problemas sociais e políticos que o Estado republicano enfrentava, reparando as injustiças mas mantendo a estrutura social - «Agir sobre o indivíduo, ou sobre o meio?» torna-se a polémica preferencial das correntes de pensamento de então.

Conceitos como «Social», «Solidariedade», «Direito Social» e «Contrato Social» foram, em simultâneo, produto de um pensar historicamente situado que deu lugar ao Estado Providência e ao campo profissional onde o Serviço Social se veio a situar.

O «Social» surge na contradição entre o ideal democrático e os movimentos reivindicativos dos direitos do homem, ambos de génese republicana.

149 Entendido genealogicamente como um conceito estratégico, o «social» contribuiu para a constituição da solidariedade orgânica.

O conceito de «solidariedade» surge no discurso político francês dos anos 80 do século XIX. Para Durkheim, a questão fundamental eram as condições de coesão social numa sociedade moderna, onde, a partir de uma tipologia de sociedades, são estruturados os princípios da “solidariedade mecânica” (resultante da divisão do trabalho e simultaneamente da individualização dos membros da sociedade) e de “solidariedade orgânica” (entendida como o aumento de dependência entre os indivíduos), onde estas duas faces da mesma moeda pretendiam significar que a divisão de trabalho era o próprio fundamento da coesão social. Ainda segundo este autor, a substituição progressiva da solidariedade mecânica pela solidariedade orgânica define o progresso da sociedade (Durkheim, 1998).

Este «social» ao inscrever a sua história, aparece associado ao conceito Durkheimeano de «solidariedade». A «Solidariedade» foi o princípio de governo que permitiu fazer convergir as exigências e as crenças contraditórias da proclamação da República, assente numa crença comum de progresso, produzindo a figura de Estado como garante do progresso da sociedade.

Enquanto para K. Marx, a divisão social do trabalho na sociedade capitalista é vista como fonte de conflitos de classe, só superáveis com o derrube do capitalismo e a implantação do socialismo, para Durkheim, a divisão do trabalho é a base de coesão social e o fundamento do progresso, onde o Estado se legitima pelo desenvolvimento da solidariedade orgânica.

Jacques Donzelot (1994) questiona com alguma ironia se a virtude do «social» não será resultante de uma dupla negação (como nas operações matemáticas, negativo com negativo, dá positivo) de duas ideias igualmente sedutoras e enganosas: uma ordem civil naturalizada e uma ordem política que se cumpriria no sentido histórico?

O «social» aparece como um registo híbrido, na impossibilidade, quer de obedecer a uma imposição política das massas, quer de acantonar-se na protecção da sociedade civil.

Por sua vez, o «Direito Social», fundamentado na solidariedade orgânica, desenvolveu-se no final do século XIX, proporcionando uma intervenção

150 crescente do poder político nas relações privadas (com leis relativas às condições de trabalho, à protecção do trabalhador em caso de perda da capacidade de trabalho, leis protectoras da criança e da mulher na família, medidas destinadas a zelar pelas condições de saúde, educação e moralidade, etc.). O «direito social» constitui-se na base da socialização do risco e foi institucionalizado através das técnicas de seguros sociais (por exemplo, o seguro de acidentes de trabalho) mas contradiz políticas mais revolucionárias que visavam alterar as relações sociais capitalistas.

O estatuto de “protegido da sociedade” é formado pelos direitos sociais que, no fundo, mais não fazem do que proteger das consequências da divisão social do trabalho, fazendo depender a concretização desses direitos do progresso social e da intervenção do estado. Ou seja, não foi fazendo valer os seus direitos e proclamando a injustiça da sua condição que o trabalhador beneficiou dos direitos sociais, mas sim afirmando e insistindo na sua pertença à sociedade. Por um lado, os direitos tornam-se iguais para todos, mas a sua realização passa a ser condicionada por contingências limitadoras; por outro, reconhece- se o princípio da promoção social ou progresso social, dentro dos atributos e limites do próprio Estado.

Sobre o plano prático, os seguros sociais foram, sensivelmente até à I Guerra Mundial, uma técnica capaz de realizar essa solidariedade e de modificar as relações entre o capital e os assalariados, assegurando uma melhor moralização do indivíduo pela transformação do meio social e, sobretudo, concretizando o laço invisível entre os homens (assumindo-se que o Estado era a expressão visível desse laço).

A fórmula ‘rousseaniana’ do «Contrato Social», na sua génese, pretendia passar a articular a soberania política e a liberdade civil, configurando um modo específico de organização da sociedade particularmente atento ao social e articulando com as noções anteriormente afloradas de «solidariedade», de «direito social» e de «negociação/contratualização».

No período entre as duas guerras mundiais, o pensamento organizou-se em torno da oposição de duas abstracções antagónicas: «o social» e o «económico». Tendo como pano de fundo, a perigosa oscilação do papel do Estado entre estas duas forças opostas, entende-se o terreno fértil que

151 encontrou a doutrina Keynesiana, ao permitir ao Estado articular centralmente o económico e o social, em vez de deixar que prevalecesse uma lógica sobre a outra. Esta ideia de extensão da democracia, da gestão política da sociedade, da gestão da vida económica e social recebeu o nome de «democracia industrial». Mas o ponto de partida desta corrente seria a constatação do falhanço dos partidos, assumindo que os cidadãos se agrupavam menos nos partidos, do que nas grandes forças económicas e sociais. A síntese pretendida defendia que em prol do «interesse geral», o «económico» constituía um meio e o «social» designava a finalidade do progresso, nomeadamente no contexto da reconstrução do pós-guerra e no surgimento do Fordismo ou do «capitalismo organizado». Como Fernanda Rodrigues salienta:

“Em contraposição ao Estado neutro, o Estado interventor propunha-se reduzir a irracionalidade da economia, tendo pois um papel de administrador positivo do progresso. Neste percurso veio não só suscitar o investimento na solidariedade, tendo passado mesmo a ser responsável por ela” (Rodrigues, 1999:35).

Como sabemos o Estado Social surgiu depois da II Guerra Mundial, apesar do seu embrião ser do século XIX e, nesse sentido, ele é simultaneamente hegeliano, marxista, weberiano e durkheimiano (Correia, 2003). Passarei por alguns dos contributos que destaco nestes autores:

Hegel teorizou o Estado como realização unificadora da Razão que ultrapassa a conflitualidade existente na sociedade civil, cabendo a este o papel da relação objectiva. Na sociedade civil, os indivíduos eram entendidos como prosseguindo os seus próprios interesses, num misto de apetite natural e de arbítrio.

Para que fosse possível lutar contra a arbitrariedade e o particularismo vigentes, Hegel definiu estratégias que visavam a integração social, segundo duas lógicas: uma, que exprime a linha de intervenção estatal e que aponta alguns dos futuros traços do Estado Providência e uma outra, que segue a linha da geração autónoma da solidariedade e da identidade e antecipa uma forma pós-liberal de integração social, onde a corporação é o ponto de partida da integração social. Esta desempenha como funções primárias a prestação de assistência, a socialização e a educação, proporcionando aos indivíduos os conhecimentos que lhes permitam interiorizar a noção de «bem comum» e de «virtude cívica».

152 Para Marx, a irracionalidade da sociedade civil só poderá ser ultrapassada pela realização histórica da Razão e consequentemente por uma nova organização da comunidade política que impulsione os homens no sentido de uma cooperação racional. O Estado Social é o produto da luta de classes que impõe uma valorização crescente de novos direitos sociais, produto também de um compromisso que tem subjacente uma dimensão conflitual. O Marxismo foi a primeira ferida no universalismo burguês, o qual era fortemente limitado por uma visão da cidadania restringida às suas dimensões civil e política e fortemente ignorante quanto à sua dimensão económica e social.

Durkheim defende que a partir do momento em que as sociedades atingem determinada complexidade, existe necessidade de uma forte intervenção pública, sendo o Estado, o órgão da justiça social por excelência, através da força reguladora do Direito. Assistia-se assim, na sua perspectiva a uma actividade crescente de regulamentação jurídica no plano doméstico, comercial, contratual e de uma forma generalizada nas relações sociais e económicas.

Weber será um dos teóricos que primeiramente se debruçou sobre a «função pública», no sentido em que advogou o aparecimento da burocracia como um dos traços distintivos do estado moderno. A associação política não é definida pelos seus fins mas pela escolha de meios mais eficazes para a obtenção de determinados fins. A administração passa a ser um trabalho profissional levado a cabo por funcionários contratados, em função de uma competência, configurada em face da sua utilidade e das exigências colocadas à sua actividade. Weber não deixará contudo, de alertar para os riscos de uma tecnocratização generalizada da sociedade, resultante do risco da sociedade se tornar «fria e desumanizada».

Por seu lado, a ligação entre o Estado social e a necessidade de gestão de várias contradições resultantes do modo de desenvolvimento da sociedade capitalista encontra expressão entre diversos teóricos que, na base dessa relação, projectam a leitura do percurso e evolução do Estado de bem-estar. Mas será sobretudo a partir de 1945 que, na economia, as ideias de Keynes se generalizam, passando a ser aceite que o bom funcionamento da sociedade exigia uma intervenção reguladora. Como refere Rosanvallon, Keynes está na

153 origem daquilo que poderíamos chamar a “revolução de Copérnico na

economia: esta deixa de ser considerada como um dado para ser apreendida como uma construção” (1981:36). E esta mudança central que permite a

combinação de uma economia Keynesiana com as preocupações sociais de Beveridge, suscita uma forte legitimidade política e implantação popular, onde é assumido o papel «modernizador» do Estado na criação de condições para o crescimento económico e para o pleno emprego.

O século XX foi o século do emprego, competindo ao Estado garantir a cada um o posto de trabalho, por meio do qual o trabalhador teria acesso às riquezas e a um lugar na vida social (Méda, 1999: 141). O lugar do trabalho nas sociedades é um dos elementos de explicação da situação actual, cujas características são, segundo Dominique Méda, o primado da abordagem económica e a perspectiva de uma regulação cada vez mais automática dos fenómenos sociais.

Nesta perspectiva, o estado social conseguiu substituir a utopia socialista de um trabalho libertado por um objectivo aparentemente mais simples, que consiste em fornecer aos trabalhadores, em troca do seu esforço, uma soma crescente de bem-estar e a garantia do pleno emprego. Mas as sociedades baseadas no trabalho são atravessadas por uma dupla lógica bastante explosiva: por um lado, persistem em viver segundo o imperativo de desenvolvimento/crescimento que assenta em aumentos cada vez maiores de produtividade e consumo; por outro lado, devem garantir o pleno emprego a todos, uma vez que são estruturadas pelo trabalho.

Esta contradição não explodiu mais cedo porque os países desenvolvidos conheceram um crescimento da sua produção que lhes permitiu fazer intervir o mecanismo da redistribuição, da integração e da distribuição de compensações. Mas a partir do momento em que as taxas de crescimento são menos elevadas ou em que as pessoas deixam de ter acesso ao sistema de distribuição da riqueza, o sistema perde legitimidade.

O choque petrolífero, o fim do crescimento económico, o final do pleno emprego associado ao crescimento do desemprego em larga escala, a crise fiscal do estado e o consequente declínio dos financiamentos “sociais” sobressaem, segundo Fernanda Rodrigues (1999), como os motivos de perda

154 de confiança no sistema, passando o intervencionismo estatal a ser considerado como bloqueio para a resolução de problemas.

Desde logo é possível identificar dois eixos de interpretação para a crise do Estado-providência: um, defendido pelas correntes conservadoras, que retomam as teses liberais e assumem que o Estado é um mau administrador dos recursos públicos e, outro, que radica a sua crítica na incapacidade do Estado-providência se ajustar às mudanças na sua própria estrutura, preconizando a tese da reorientação para fazer face às mudanças. Assim, as dúvidas surgidas na década de 70 do século passado, sobre a viabilidade económica do Estado de bem-estar universalista, deram lugar na década de 80 a profundas alterações nas despesas sociais dos orçamentos públicos, nos novos métodos de prover e administrar os serviços, na adopção de esquemas de privatização e subcontratação, que visavam retrair o Estado (Rodrigues, 1999). Até aí, no Estado-providência corporativo dos países da Europa continental, os direitos estavam ligados ao desempenho no mercado de trabalho e prevaleciam fortes mecanismos de controlo social.

A estratégia de adaptação seguida em países como a Alemanha, França e Itália, foi a de subsidiar a saída do mercado de trabalho e de manutenção de altos padrões de protecção social na área do seguro social.

Isto deu origem a uma dualização entre os trabalhadores com segurança no emprego e aqueles que estão fora do mercado de trabalho, dependendo de redistribuições sociais e a persistência de fenómenos de pobreza (em grande escala decorrente da marginalização em relação ao trabalho disponível em cada sociedade) que atinge significativamente segmentos da população e é, sem dúvida, um dos problemas mais sérios que afecta o desenvolvimento humano.

O desemprego, a pobreza e a exclusão social, nas últimas décadas, passaram a integrar o discurso oficial e as agendas políticas e tornaram-se, dos temas mais mediáticos, embora isso pouco se tenha traduzido nas actuações quer dos responsáveis dos organismos internacionais, quer dos governantes de diversos países. A pobreza aparece assim, como «avaliador de um padrão civilizatório», elucidando também sobre o papel do Estado enquanto acolhedor de desigualdades (Rodrigues, 1999).

155 Por outro lado, a experiência também nos mostra que o «social» pode significar a um nível micro, mais do que as políticas e as respostas que as sociedades entendem promover em cada tempo histórico e pode ter sobretudo a ver com as pessoas e com as suas interacções, consideradas individual ou colectivamente, nos diferentes tempos e espaços de vida. Nesta acepção complementar será um «social» abrangente que tem a ver com a vida das pessoas, marcadas por uma «totalidade» onde não se podem excluir as formas de organizar o trabalho, a produção e a economia, entre outras dimensões relevantes.

Recordo que nos primeiros tempos da minha trajectória profissional a representação empírica de «social» era marcada por «espaços de ninguém» que sobravam de segmentações disciplinares e profissionais mais consistentes e radicadas, o que dava a ideia de que quando não se sabia o que fazer com uma situação complexa, ela era seguramente uma «situação social».

Também do ponto de vista das representações e da linguagem, os «habitantes» deste «social» eram sobretudo os pobres, os «sem recursos», os «com problemas», assumindo muitas vezes, o assistente social o papel de uma espécie de intérprete do «pobrez» (uma espécie de ‘língua’ oficial dos pobres) na relação entre estes cidadãos estigmatizados e pouco escolarizados e os outros técnicos ou serviços menos habituados (e preparados) para se relacionarem com estas pessoas.

Nos vinte e cinco anos do meu percurso profissional quase tudo mudou, mas ainda se mantém representações rígidas, híbridas e/ou fluidas de um campo «social» com muitas variáveis, muitos poderes, muitos especialistas, muitas fronteiras, muita competição e pouco esforço de explicitação sobre o que, em cada momento e circunstância se entende por esta designação de «social». Entendo que mais do acordar sobre uma designação comum, importa meta- comunicar sobre ela, ou seja, ter a prática de clarificar em cada contexto e com os agentes envolvidos, quais são as fronteiras do «social» que se acordam para a finalidade do trabalho que se está a prosseguir.