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S ERVIÇO S OCIAL

A LEGITIMAÇÃO DA PROFISSÃO E A « BANDEIRA » DO BEM ESTAR SOCIAL

A legitimação da profissão, balizada pela I Guerra Mundial (1914-18) e pela Revolução Russa de 1917, aproveita de uma ideia de reconstrução do tecido ideológico como forma de conter as ideias socialistas e também do marco de publicação da obra de Mary Richmond, Diagnóstico Social, que reflecte um amadurecimento e um esforço de sistematização, bem visto pelo positivismo que dominava as ciências sociais.

A profissão valoriza-se assim no contexto académico, em que as teorias da personalidade assumem um papel importante no enfoque dado à análise dos problemas sociais e mantém a legitimidade para a arbitragem dos conflitos sociais “evitando a sua generalização” e passando “a ser prestigiada pela

autoridade moral que lhe advém do facto de, socialmente, se fazer impor como mecanismo redutor de conflitos” (Mouro, 2001:37). O Serviço Social tenta

desvincular-se da cultura assistencialista e adoptar novos procedimentos metodológicos de intervenção social, aproximando-se das Ciências Sociais - o que também vai contribuir para colocar a questão da partilha do campo e dos processos de intervenção social.

Apesar da presença consolidada no ideário da profissão de Serviço Social das políticas sociais do Estado de bem-estar como «um meio natural de vida e

98 exercício profissional» e de persistirem territórios protegidos (nomeadamente em alguns serviços dos sectores da saúde e da segurança social), arrisco-me a colocar a hipótese de que muito do debate em torno da sobrevivência, ou não sobrevivência do Estado-providência (mais Wellfare ou mais Workfare), das suas mutações, legitimidades, crises, rupturas ou superações não tem constituído espaço de implicação de grande parte de corpo profissional.

No cumprimento das suas múltiplas funções de «formiguinhas» do sistema e na certeza de que, diariamente, dão grandes contributos para «segurar as pontas» de novelos emaranhados, tanto do ponto de vista das situações individuais ou familiares, como do ponto de vista das respostas organizacionais, os assistentes sociais correm o risco de ficar numa posição particularmente incómoda de «bode expiatório» - simultaneamente das incongruências, paradoxos e ineficácias do sistema institucional de que fazem parte e pelo qual muitas vezes «dão a cara» e dos movimentos de cidadãos (com quem teoricamente estão comprometidos) que questionam o «status quo» e reivindicam mudanças, mais ou menos radicais.

Equacionar e debater as políticas sociais e a «bandeira do bem-estar» parece um caminho promissor para retirar linearidade ao entendimento de que este é um meio ‘natural’ e ‘privilegiado’ da vida profissional. E sabendo que o mercado económico é reactivo a qualquer regulação e o equilíbrio é precário por definição, esta reflexão não pretende mascarar os dilemas contemporâneos do «social» no seio do capitalismo.

O Estado de bem-estar, fundado no projecto moderno de construção dos estados-nação, tinha como base da sua arquitectura política o «contrato social» que garantia aos cidadãos um conjunto de deveres e protecções sociais e políticas, agarrados a um conceito de cidadania delimitado pelo Estado-nação.

“A legitimidade da nacionalidade-cidadania-individualidade era assegurada pela meta narrativa da modernidade que localizava o Eu no cruzamento dos seus três eixos fundadores: a Razão, o Homem e o Estado. Estes três eixos desdobravam-se, por seu turno, em mediadores narrativos como a ciência, a filosofia, a arte, as instituições e o estado” (Stoer e Magalhaes, 2005:89)

Segundo estes autores, é na figura do cidadão que os três eixos referenciados se cruzam, numa universalidade da Razão que, na herança cartesiana, parecia

99 a coisa mais bem distribuída do mundo. Contudo, o contrato social da modernidade que expressa a troca da pertença local pela lealdade nacional está, no contexto europeu, pressionado por factores de ordem económica (como a reestruturação do mercado de trabalho), de ordem cultural (como, por exemplo, o confronto entre modos de vida) e de ordem política (como, por exemplo, os efeitos da construção europeia sobre as soberanias nacionais). A reconfiguração para um contrato social emergente apresenta-o como delimitado por três dimensões/exigências: a «empregabilidade» que implica estar em contínuo estado de ‘formável’; a «identidade local», que implica expressar as diferenças; e a «cidadania europeia», que envolve a construção e os dilemas de uma «comunidade imaginada».

As dificuldades e os impasses do desenvolvimento dos Estados-providência que se desenvolvem com base na cidadania social de Marshall (1950), contribuíram para o questionamento das transformações do capitalismo desde o século XIX através de diferentes formas de «capitalismo social» (passe o paradoxo), no seio das quais o mercado continua a ser um mecanismo importante mas, mais ou menos, contrariado e canalizado pelos esforços dos governos para evitar os efeitos demasiados negativos sobre as populações e desenvolver uma redistribuição económica de «compensação».

Na sequência da revolução industrial, o Estado-providência (na pluralidade das suas formas) tornou-se um dos elementos mais estruturantes da vida social na medida em que criou empregos, transformou o destino das mulheres, apoiou a reestruturação das grandes empresas industriais e ajudou a formar mão-de- obra e a substituir os trabalhadores mais velhos por trabalhadores mais jovens e ‘maleáveis’. Mas, por outro lado, as suas políticas são a continuação das trajectórias históricas que em grande medida modelaram determinadas opções dentro da linha de pensamento liberal, no pós segunda Grande Guerra (período marcado pelas necessidades de reconstrução e de animação da economia), revelando que a sua natureza é uma forma institucional, complexa e instável de compromisso com os imperativos do capitalismo.

Após a II Guerra Mundial, sobretudo nos gloriosos 30 anos que se lhe seguem, a profissão de assistente social aproveita da consolidação e crescimento dos Estados Providência e da ideologia desenvolvimentista que supõe um

100 crescimento económico acelerado, continuado e auto-sustentado no pleno emprego mas também se defronta com tensões internas e novos intervenientes no campo de intervenção social. Por toda a Europa os Estados-providência desenvolvem sistemas de protecção, desenhando políticas sociais concretizadas em medidas, mais ou menos redistributivas, mas que, em última análise desenvolvem sistemas de bem-estar para que os indivíduos se adaptem. Segundo Boaventura Sousa Santos, os elementos estruturais que estão na base do Estado-providência (e que lhe permitem concluir que o Estado português não é um Estado-providência no sentido pleno do termo) são:

- a construção de um pacto social entre capital e trabalho sob a égide do Estado, cujo objectivo último é compatibilizar democracia e capitalismo;

- a relação sustentada entre duas tarefas do Estado potencialmente contraditórias: a promoção da acumulação capitalista e do crescimento económico e a salvaguarda da legitimação;

- um elevado nível de despesas nas políticas de bem-estar;

- uma burocracia estatal que internalizou os direitos sociais como direitos dos cidadãos e não como benevolência estatal (Sousa Santos, 1990:42).

O Estado capitalista, necessitando de promover a sua ideologia de igualdade e de solidariedade, realiza um esforço de investimento nas políticas sociais, alargando os benefícios sociais em prol do “bem-estar social”.

As motivações que presidiram à sua edificação são muito diversas e vão desde a resposta às pressões do mundo operário, mas também à vontade de suplantar as deficiências do mercado, ao humanismo esclarecido, não esquecendo a dimensão de reforço da lealdade dos trabalhadores ou a institucionalização das divisões sociais (Esping-Andersen, 1999). Este autor aborda as consequências da criação dos Estados de Bem-estar não apenas do ponto de vista da protecção social dos cidadãos, mas igualmente do ponto de vista da estratificação social, do lugar das mulheres na sociedade e das implicações na criação de emprego na era pós-industrial. A trama do livro intitulado «Os três mundos do Estado-providência» cruza o nível de «desmercantilização», a estrutura de classe beneficiária das políticas sociais e

101 a forma do laço existente entre o Mercado e Estado, em tentativas de encontrar equilíbrios entre os imperativos do mercado e os imperativos da «compaixão». No entanto o debate científico prossegue com contributos para a controvérsia sobre a história do Estado-providência e dos dilemas políticos, produzindo entendimentos sobre questões como: i) a imposição de uma forma de regime político favorável aos interesses do mundo operário apoiando-se nas instituições parlamentares; ii) o desenvolvimento de uma política favorável aos interesses da classe operária quando esta é uma minoria da população; iii) a constituição de um Estado social que reforce as solidariedades operárias sem abandonar os «deixados por sua conta» na vida industrial, e pós-industrial (e desprezadas tanto pelos operários quanto pelas classes médias ou superiores). Destaco assim, este posicionamento de Esping-Andersen (1999) que reflecte sobre a existência de vários Estados-providência profundamente diferentes pela sua história, pelo modo de relação entre a sociedade e a sua protecção social, pelo lugar acordado para o Estado e mais genericamente, pelo paradigma que subentende a acção em matéria de política social. Neste âmbito, lembramos as suas categorias «ideal-tipo» dos modelos ou dos regimes de Bem-estar:

a) um Estado-providência liberal que limita ao essencial a sua protecção aos mais fracos, desprotegidos e estigmatizados;

b) um modelo conservador, corporativo, um modelo de protecção social endossado ao trabalho assalariado, visando não uma transformação da sociedade num objectivo de equidade social, mas a manutenção dos estatutos sociais e profissionais;

c) um Estado-providência social-democrata caracterizado não somente por um nível elevado de protecção social contra os riscos e por uma oferta importante de serviços sociais, mas também por uma vontade claramente afirmada de redistribuição dos recursos recolhidos pelos impostos.

Ainda segundo a análise deste autor, podemos classificar os Estado- providência em fortes, médios ou fracos, em função da possibilidade que eles oferecem legalmente aos indivíduos de suprirem as suas necessidades, mesmo ficando de fora do mercado de trabalho.

102 Não é possível encetar uma reflexão séria sobre a evolução social dos Estados modernos sem fazer referência às etapas de desenvolvimento da democracia e da cidadania social, ignorando a diferença entre os Estados-providência institucionalizados e as formas residuais de Estado-providência, entre o nível de desenvolvimento económico e o das despesas sociais, entre os processos de edificação dos Estados modernos, o acesso das massas à democracia e o desenvolvimento das políticas sociais, nem ainda subestimar os processos concretos de invenção das políticas públicas.

A grande maioria das ciências económicas actuais sustenta ainda que só através do crescimento do mercado pode desaparecer a precariedade, ignorando que esta é chamada pela riqueza e que, ao mesmo tempo que existe pobreza absoluta também faz a riqueza relativa - o que leva a levantar a velha questão da apropriação e distribuição dos recursos e de quem tem o poder para o fazer.

Não podemos esquecer que os Estados providência do pós-guerra se edificaram sobre a promessa do pleno emprego na ideologia da sociedade de abundância capitalista. Sabemos hoje o quanto esta promessa era arriscada, mas os países comprometeram-se em políticas estruturalmente distintas que foram o prenúncio da crise actual. Alguns, à falta de obter a moderação salarial por via de compromissos neocorporativistas preferiam a inflação, outros recorreram maciçamente ao emprego púbico e as compensações sociais diferidas constituíram um elemento das políticas e do mundo social nos anos gloriosos. Mas todas as estratégias utilizadas mostraram os seus limites num mundo em acelerada mudança e onde os jogos sociais se resumem a um jogo de soma nula e à compensação social pelo aumento do défice público.

Hoje a diferença crescente entre o número de activos e de inactivos faz pesar tensões financeiras extremas sobre os Estado-providência continentais e os encargos financeiros acabam por ter efeitos negativos no emprego.

A tendência para recorrer à redução da oferta de trabalho é uma das medidas passivas em detrimento de medidas activas de acesso ao emprego que faz pesar os seus custos crescentes sobre o trabalho.

Esping-Anderson realiza uma abordagem complexa dos Estados-providência colocando em evidência que eles não são apenas uma criação do movimento

103 socialista e que o movimento operário e o liberalismo económico tomaram igualmente parte dessa construção numa teia de interesses e compromissos – não esquecendo que já o projecto social de Bismarck era de natureza conservadora e visava o reforço do poder central e que os Estados-providência trazem também a marca da igreja católica. Mas a forte mobilização do movimento operário é apenas uma pré-condição para a nascença de um Estado-providência na via social-democrática, enquanto a sua manutenção e enraizamento foram essencialmente função da capacidade de criar interesses comuns entre a classe operária e a classe média. Esping-Anderson coloca ainda em evidência os efeitos de interacção entre outros factores: a capacidade de construir aliança com o campesinato, mas também o modo de formação da classe operária, a estrutura económica, as preferências ideológicas e políticas dos fundadores dos primeiros tipos de regimes, o percurso histórico dos primeiros regimes de protecção social e as preferências induzidas no seio das classes médias.

Sobre os cenários de futuro, este autor indica que é preciso levar a sério a crise actual dos Estados-providência. Se as crises precedentes foram sobretudo crises de legitimidade política, a crise actual é também efeito de alterações profundas nos pressupostos de democraticidade existentes entre os Estados e os cidadãos. Neste âmbito, o cidadão passa a ser responsabilizado pelo seu destino, quando tudo parece estar fora do seu controlo.

Sousa Santos a propósito refere que “…a sua responsabilização é a sua

alienação; alienação que, ao contrário da alienação marxista, não resulta da exploração do trabalho assalariado mas da ausência dela” (1994: 28).

Este fenómeno é o que Robert Castel (1995) designa de «nova questão social» no âmbito da qual ser excluído já não é sinónimo de ser explorado pelo capital (paradoxalmente, ter trabalho e ser explorado é quase um privilégio), mas ser excluído passa a significar «estar a mais». Como refere Sousa Santos,

“Esta metamorfose do sistema de desigualdade em sistema de exclusão ocorre tanto a nível nacional como a nível local. (…) A nível nacional, a exclusão é tanto mais séria quanto até agora não se inventou nenhum substituto para a integração pelo trabalho. (…) A erosão da protecção institucional, que sendo causa, é também um efeito do nono darwinismo social” (1994: 27).

104 Com o desenvolvimento destas concepções e estratégias políticas, o Serviço Social (que deteve uma posição hegemónica na respectiva área de intervenção), alarga o seu campo de actuação profissional e passa a orientar a sua actuação por uma concepção tecnologizante da gestão do social. Contudo, este alargamento veio evidenciar fragilidades na identidade histórica do exercício profissional: por um lado, o Serviço Social (sobretudo norte americano) pretendia determinar o seu espaço profissional em função de uma articulação entre as necessidades histórico-sociais e os interesses de crescimento e valorização profissional; por outro lado, a estratégia seguida para desenvolver o Serviço Social europeu, optou por instalar-se na dinâmica do processo político e adaptar-se às necessidades instrumentais da política social. Este eclectismo redundou num processo descontínuo de qualificação e numa certa descaracterização da actuação profissional

“...ligada a um processo social em que o serviço Social na sua intervenção profissional começou a confundir o acidental com o essencial, a ter um comportamento profissional imitativo, a empenhar-se na resolução de conflitos secundários, a dimensionar o exercício profissional de uma forma difusa e a investir num discurso profissional estereotipado” (Mouro, 2001:47).

A par disto, a vinculação ao aparelho do Estado (tornado o maior empregador), contribuiu para esvaziar o imaginário profissional, numa altura em que a “bandeira” empírica do Serviço Social choca com um movimento das Ciências Sociais marcado pelo Positivismo e onde se começa a dar conta de uma cidadania «reclamada» pelos indivíduos e pelos grupos contra as instituições e respectivas racionalidades (Stoer e Magalhães, 2005).

Os assistentes sociais, que como outros trabalhadores sociais, têm enfrentado dificuldades de se desvincular da meta narrativa da modernidade, situaram-se privilegiadamente do lado das instituições, assumindo a lógica do contrato social moderno através da «cidadania atribuída», que se veio a revelar incapaz tanto de traduzir o reconhecimento da cidadania participada como de responder à «cidadania reclamada».

“Esta grande narrativa da modernidade, portanto, legitimava, por um lado, a acção dos estados nacionais na sua centralidade; e, por outro, a determinação de quem são os «eles», de quem são os «outros». Actualmente, mesmo os discursos e as práticas mais envolvidas com o respeito pela diferença, pela alteridade, são frequentemente vítimas da matriz moderna de que partem. Continuam a ser estes discursos o locus em que se determina o que é a diferença, o que é a diferença aceitável

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(tolerada) e quem é verdadeiramente o Outro e o eventual «bom» interlocutor” (Stoer e Magalhães, 2005:98).

Esta «matriz moderna», onde a recomposição do contrato social e as formas emergentes de cidadania não têm lugar, tem colocado grandes dilemas aos trabalhadores sociais e às suas intervenções.

Isto significa que existem tensões, com tradução quer na educação, quer na acção social, no sentido de reivindicar uma justiça cultural e socioeconómica, com base na(s) identidade(s) e numa política de reconhecimento da diferença. Nestas «áreas», problemas como o absentismo, o insucesso escolar ou a não adesão dos «utentes» às medidas que lhes estão destinadas, questionam se os vários «outros» já não atingiram uma situação de «intolerância» face à generosidade de que são objecto, precisamente por se recusarem como objecto e pretenderem assumir a voz de sujeitos de si.

Esta «intolerância» faz-nos reflectir, como actores da política redistributiva que ficam frequentemente enleados e parados no seu desenvolvimento, sobre uma eventual renovação do campo e sobretudo da acção dos trabalhadores sociais que dependerá da capacidade de descentração de lógicas de desenvolvimento já esgotadas (e de uma cidadania que era sobretudo social) e contemplará o apelo da «cidadania reclamada» como uma das suas vertentes.

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