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S ERVIÇO S OCIAL

D A « DESCOLONIZAÇÃO DISCIPLINAR » À T RANSDISCIPLINARIDADE

Na perspectiva transdisciplinar que tentei adoptar neste trabalho fiz a revisão da literatura de Serviço Social mas também me apoiei numa vasta literatura científica disponível sobre a profissionalização de outras profissões sociais, nomeadamente de professores por a considerar inspiradora e útil para pensar sobre os assistentes sociais.

Neste percurso não pude deixar de me confrontar com vários dilemas e com a própria ambivalência do processo de profissionalização, nomeadamente nos dois aspectos que lhe são indissociáveis: 1) a existência de profissionais para quem a definição, o acesso e o exercício são objecto duma codificação elaborada, e onde emergem organizações profissionais que pretendem ganhar controlo sobre o conteúdo e o bom uso desses códigos; 2) e a acentuação do valor acordado para a competência no exercício profissional num ‘corpus’ de saber, saber-fazer e saber-ser que comporta ele mesmo poderosos factores de institucionalização. Importante também será não esquecer o alerta das visões

170 radicais de Serviço Social que questionam a profissionalização, interrogando até que ponto ela é favorecida pelo sistema educativo do trabalho social, em detrimento dos interesses das comunidades oprimidas e dos clientes individuais (Payne, 1997:301).

Neste entendimento, torna-se importante conhecer as formas como o Serviço Social tem sido institucionalizado e controlado (e quais os papeis que desempenhou nestes processos) e as formas como se tem relacionado com a rede de ocupações e profissões com quem partilha o campo de intervenção – o que remete necessariamente para equacionar também a sua profissionalidade, enquanto conjunto articulado de saberes e atitudes requeridas pelo exercício profissional e o seu profissionalismo, enquanto conjunto de princípios éticos e valores orientadores do trabalho profissional. Payne a este propósito identifica três conjuntos de forças que constroem o trabalho social:

“…aquelas que criam e controlam o trabalho social como uma ocupação; aquelas que criam clientela entre pessoas que procuram ou são enviadas para receber assistência do trabalho social e aquelas que criam o contexto social no qual o trabalho social é praticado” (1997:33).

Reconhecendo a existência de fragilidades no Serviço Social, admite-se que essas fragilidades também lhe conferem especificidade na abordagem holística das «situações-problema» e na hipótese de recurso ao pensamento complexo. A complexidade do seu objecto e o seu lugar particular no cruzamento entre o social, o político, o jurídico e o psicológico são encaradas como características, ou seja, simultaneamente fragilidades e potencialidades.

Contudo, estas características podem também ter tradução na dificuldade em

“…definir uma identidade profissional que é por essência flutuante, pela perda de referenciais e pela dificuldade em se tornar explicitável, para o exterior e para os próprios, o que os trabalhadores sociais são e o que fazem, porque fazem de determinada maneira e não de outra, o que eles esperam dessa acção e que sentido tem ela, para eles próprios mas também, ou sobretudo, para as pessoas com quem trabalham» (Riffault, 2007:3).

Apesar das fragilidades mencionadas sobre o conhecimento próprio de Serviço Social existem posições contemporâneas, como a de Malcolm Payne (1997:23), que defendem que existe “…um paradigma do trabalho social, que é

socialmente construído e no qual todas as ‘teorias’ e práticas correntes podem ser encaixadas.” Esta posição pode ser particularmente relevante se em vez de

171 procurarmos uma «teoria» de conjunto para toda a nossa prática, utilizarmos misturas de ideias de diferentes fontes.

Esta hipótese de «misturar ideias» traz por um lado, desafios complexos e aconselha a um bom entendimento sobre a proveniência dessas «ideias» mas, por outro, abre um caminho de especificidade que é, em parte, semelhante ao que os profissionais mobilizam na prática e, onde a explicitação é, de facto, fundamental para dar inteligibilidade e validade a essas «misturas». Na terminologia do Serviço Social a esta «mistura» chama-se «sincretismo». Este é um termo de origem grega que significa a tentativa de conciliar doutrinas de diversas origens, utilizado particularmente na Teleologia e na Mitologia da Religião e que afirma uma unidade subjacente ou a influência exercida por uma religião nas práticas de outra. O termo que faz parte do léxico profissional é conceptualizado por José Paulo Netto (2001) que, entre outros autores, o aborda como «um princípio constitutivo do Serviço Social» que traz uma marca identitária mas que é simultaneamente «um problema a ultrapassar» e uma «virtude» que lhe confere plasticidade.

Uma das características, muito difundida na literatura do Serviço Social sobre a profissão é de que esta não construiu uma teoria própria, dispõe sim de uma história. E é essa história que a particulariza enquanto tipo de especialização de trabalho colectivo, gestada nos cruzamentos da intervenção do Estado na sociedade civil, como resposta às exigências da expansão monopolista do capital, através do recorte das políticas sociais (Iamamoto, 1992).

A propósito da inexistência de uma teoria própria, revela-se a importância de explicitar o Serviço Social nos seus diferentes «fazeres», «dizeres» e «pensares» e será bom lembrar, nas palavras de Jacques Riffault (2007) que:

“Trabalho Social construiu-se como um universo multireferencial em que a quase-saturação deste ponto de vista testemunha a riqueza e a vivacidade das práticas sobre a complexidade do real, mas também, e é um dos seus paradoxos, a fragilidade das suas bases teóricas e conceptuais” (Riffault 2007:2).

Como refere um dos assistentes sociais entrevistados:

“O Serviço Social é uma coisa tão aberta, tão humanista que acaba por se esboroar. Não tens suporte nenhum, o pessoal agarra-se aonde? Não consegue. E perante outras profissões tu não te consegues implantar, tu

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não consegues arranjar nada muito parecido ao projecto de Arquitectura, que seja o teu projecto de Serviço Social “ e continua dizendo, “Às vezes sinto-me como os tocadores de ouvido, como aqueles tipos que nunca foram para a escola e que não sabem ler uma pauta. Os tipos tocam música tão bem como os outros. Mas são uma espécie de músicos analfabetos. Nós como andamos muito atrás das modas, é o seguinte, andamos ainda a estruturar o que os outros andam a desestruturar” António (AF1).

Quer na voz do paradoxo nomeado por Riffault, quer na voz deste assistente social contemporâneo, a «colonização» do Serviço Social pelas «modas» de outras fontes disciplinares, faz lembrar as culturas de transmissão essencialmente oral (como, por exemplo, a cultura cigana) em que ao orgulho da pertença, se misturam sentimentos de inferioridade em relação à «cultura- norma» e de receio de explicitação e divulgação dos seus códigos e normas culturais, como se ao fazê-lo pudessem trair os seus traços identitários mais profundos. Esta analogia com uma etnia que tradicionalmente recorre aos serviços onde trabalham assistentes sociais e com quem muitas vezes, estes profissionais, têm relações tensas, contribui para colocar a questão da importância socialmente atribuída às profissões estar em relação com os «públicos» que abrange. E, nesta linha, não será de excluir a perspectiva de que, como que por osmose, os assistentes sociais fiquem em posição tão mais vulnerável e «excluída» quanto a sua «clientela» o for – uma profissão de «pobres» e «excluídos» numa visão linear e redutora, mas que existe na contemporaneidade e que privilegia a importância dicotómica dos profissionais que trabalham «para, ou com, os sectores mais abastados das sociedades» e os que trabalham «nos contextos de discriminação, pobreza e exclusão social».

A visão do Assistente Social confinado ao domínio exclusivo da pobreza e da «disfunção social», ocupado prioritariamente com a redistribuição de recursos, a normatividade e o controle social, comprometido com as respostas e procedimentos organizacionais, é limitativa mas destaca vertentes da profissão como «agente de adaptação» que privilegiam um efeito paliativo centrado nas pessoas e nos seus problemas, em detrimento de uma intervenção preventiva e estrutural nas sociedades.

Em concomitância, existem muitas outras vertentes e formas de exercício que nos levam a defender para esta profissão uma plasticidade cultural onde as

173 transformações que foram ocorrendo ao longo do tempo resultaram mais de “um processo contínuo de decomposição e recomposição ideológica e cultural

que se desenvolveu ao longo da sua trajectória de vida social” (Mouro,

2009:123), do que de profundas rupturas identitárias. Por exemplo e, ao longo da sociedade industrial, a sua função na intervenção comunitária foi condicionada essencialmente pela filosofia institucional do projecto de intervenção e pelas características ideológicas do processo de gestão do social - até então com a orientação Franco-belga sob influência da doutrina social da Igreja católica (encíclica Rerum Novarum, 1891entre outras), e depois com o desenvolvimento metodológico do «modelo funcional» de origem positivista. Neste âmbito, será importante recordar a importância de duas fortes influências que também marcaram as dinâmicas e a herança do percurso histórico do Serviço Social: o Positivismo e o Funcionalismo.

Augusto Compte, considerado o «pai» do Positivismo, surge como filósofo na primeira metade do século XIX, em França, e empenha-se numa filosofia com 3 temas básicos: i) a filosofia da história, visando mostrar como uma certa maneira de pensar (filosofia positivista) devia imperar para que a sociedade pudesse ser reconstruída através de uma reforma intelectual do homem; ii) a fundamentação e classificação das ciências segundo a filosofia positiva; iii) a sociologia, responsável pelos processos de modificação da sociedade, através da reforma das instituições.

Compte defende também (entre muitos outros aspectos de uma vasta produção não abordada) o conceito de grupo social, combatendo o individualismo inspirado em Rousseau e fornecendo uma concepção de sociedade como um organismo biológico, onde o conjunto de órgãos funciona em perfeito equilíbrio. Nesta explicação a «ordem social» ganha um papel relevante como garante do tal equilíbrio e regularidade, que são aspectos importantes e fundamentais para mostrar a influência positivista no Serviço Social. Segundo este paradigma o que é normal é o que está em equilíbrio e mantém a regularidade do sistema, sendo essa regularidade que lhe confere a noção de normalidade. O que ocorre fora dos padrões da normalidade é considerado desvio e torna-se patológico no sistema social.

174 O funcionalismo social, por sua vez, parte do princípio de que a sociedade é um todo orgânico e que cada parte tem uma função específica para a manutenção equilibrada do todo e que o funcionamento social será definido e controlado a partir do estabelecimento de regras e normas que estarão fundamentadas pela consciência colectiva.

Vários aspectos do funcionalismo influenciam o Serviço Social, entre eles, o objectivo de procurar a adaptação e integração do homem no meio social em que vive (pois o indivíduo não ajustado corresponde a uma disfunção do sistema social), o pressuposto da neutralidade, a dicotomia teoria-prática e a própria metodologia do Serviço Social, expressa na tríade Serviço Social de Casos, de Grupos e de Comunidade (Pinto, 1986).

Durkheim protagoniza uma influência marcante com questões como, por exemplo, «a coesão e o equilíbrio através do princípio da integração», o conceito de «solidariedade social», o conceito de «consciência colectiva» e a noção de que os factos sociais devem ser tratados como exteriores ao interventor. Posteriormente o modelo funcionalista de Émile Durkheim foi aperfeiçoado por antropólogos e sociólogos como o britânico R. Radcliffe- Brown, com os conceitos de «processo», «estrutura» e «função».

A partir de 1950, a sociologia americana, principalmente através de Talcot Parsons e Robert Merton, vai detalhar o conceito de estrutura social e definir os conceitos de «status» e «papel» para explicar as desigualdades sociais.

A influência do funcionalismo no Serviço Social faz-se notar através do tecnicismo expresso no agir profissional e na prática asséptica e descomprometida que, segundo Vicente Paula Faleiros (1981), revela na sua suposta neutralidade um compromisso com a estrutura social vigente.

A relação muitas vezes ambígua estabelecida entre o Serviço Social e as correntes de pensamento em voga (sejam a título do exemplo utilizado, o Positivismo ou o Funcionalismo ou, mais recentemente as abordagens Sistémicas, Criticas e Ecológicas) recoloca-se a questão da importância dos profissionais reflectirem e se posicionarem sobre «em que medida» aderem à «reprodução» das correntes de pensamento em voga e «em que medida» podem contribuir para a produção de conhecimento.