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S ERVIÇO S OCIAL

O REFERENCIAL DO C APITALISMO E DA P OBREZA

O processo de crescimento e consolidação profissional desenvolveu-se a par com o crescimento do Capitalismo, conceptualmente sustentado em modelos concebidos em função de interesses político-religiosos que pretendiam naturalizar as desigualdades sociais. Se o Capitalismo equivale a transformar o indivíduo em mercadoria, o que o torna obrigado a encontrar um comprador da sua força de trabalho se quiser satisfazer as suas necessidades elementares, pelo contrário, o Estado-providência é «o capitalismo com rosto humano», um sistema de mercado onde a oferta e a procura de trabalho não regem toda a vida social num processo a que Esping-Andersen (1999) chama «desmercantilização».

Na verdade, como nos recordam os liberais, o indivíduo moderno devia aprender a medir os riscos e a sociedade desenvolvida supostamente oferecia- lhe os meios para se segurar em função do grau de risco. Mas, na prática, a apreciação dos riscos, tanto quanto a possibilidade de assumir os seus custos individualmente é muito desigualmente partilhada e nalguns casos, como nas situações de crise cíclica, impossível de prever. E, como também refere este autor, o capitalismo pode produzir o melhor e o pior: o melhor – numa concepção utilitária da existência mas que, aparentemente, foi suficiente para satisfazer a procura de sentido durante bastante tempo com um crescimento económico e de nível de vida difíceis de alcançar noutro regime económico; o pior, na medida em que se faz acompanhar de crises brutais que colocam fora do mercado de trabalho cada vez maior número de pessoas que se encontram impossibilitados de satisfazer as suas necessidades e de verem reconhecida a sua cidadania.

90 O que se passa ao nível macro social passa-se igualmente ao nível individual. Quando, por uma qualquer razão, uma pessoa se encontra incapacitada de «ganhar o seu pão» – por acidente, doença, velhice, desemprego, … – não encontra resposta no ideário liberal e a instalação do capitalismo de mercado equivale analiticamente ao enfraquecimento ou ao desaparecimento do conjunto de solidariedades primárias e de barreiras jurídicas ou morais que protegiam os indivíduos.

Vale a pena recordar que a opacidade da pobreza era quase total até à década de 70 do século passado. Até à I Guerra Mundial prevaleceu a ideia optimista do progresso no mundo, fundada na supremacia absoluta da ciência e da tecnologia, na exploração dos recursos do planeta tidos como inesgotáveis e no desabrochar das capacidades humanas para produzir riqueza e controlar o meio ambiente. Seguiu-se um profundo sentimento de desespero, quando se tornou moda falar sobre o «declínio do Ocidente».

A Grande Depressão, o Fascismo, a II Grande Guerra e o Holocausto forneceram amplas provas de pessimismo que, só foi ultrapassado nos anos 50 do pós-guerra, quando a Europa e o Japão conseguiram reconstruir as economias com impressionantes taxas de crescimento económico. Na sociedade da abundância e dos milagres económicos não havia observações substantivas da pobreza.

“A crise económica mundial, desencadeada no início dos anos 70, pelo primeiro choque petrolífero, veio pôr em evidência as limitações de um modelo desenvolvimentista, reduzido à vertente do crescimento económico, baseado no pressuposto da energia barata e, portanto, numa exploração massiva e não controlada dos recursos naturais. (…) Por outro lado, este modelo também não conseguiu corresponder às expectativas de um bem-estar crescente e generalizado, à escala de cada país e à escala planetária, contribuindo para uma maior igualdade e para uma justiça social” (Martins, 1999: 62).

Apenas na sequência de um conjunto de movimentos que agitaram o mundo durante a década de 60 é que a pobreza ganha dimensão pública e muita gente começa a chamar a tenção para a reapreciação da doutrina do desenvolvimento. Vozes dissonantes avisaram da eminência da destruição planetária, como por exemplo, em 1972, o Clube de Roma (um grupo de gestores, engenheiros e cientistas de várias nações) que publicou ‘The limits of Growth’. Esta publicação marcou uma época e provocou uma reacção em

91 cadeia de estudos para refutar ou confirmar a mensagem central de que um sistema de recursos finitos, como a Terra, não podia sustentar infinitamente um crescimento (populacional e produtivo) cumulativo.

A este primeiro momento cuja tónica foi colocada nos ‘limites de crescimento’, seguiu-se um segundo momento em que se tornaram evidentes os efeitos devastadores do modelo desenvolvimentista ao nível ambiental, conduzindo na direcção do que Max-Neef (1992) chamou de «suicídio colectivo».

Neste âmbito, é importante um posicionamento na forma de perspectivar a «Questão Social» pois, ela pode ser vista como um continuum com dois pólos, um do lado do capitalismo, enquanto «conjunto de problemas económicos que

o surgimento da classe operária impôs ao curso da constituição da sociedade capitalista» (na definição de Cerqueira Filho, cit. Martins, 1999) e outro do lado

da classe operária como “expressão do processo de formação e

desenvolvimento da classe operária e do seu ingresso no cenário político da sociedade, exigindo o seu reconhecimento como classe (...) manifestação no quotidiano da vida social da contradição entre o proletariado e a burguesia” (na

concepção de Marilda Iamamoto, cit. Martins, 1999). E se a «questão social» era, desde a revolução industrial até à crise do início da década de 70, a questão das condições de vida dos trabalhadores e dos mecanismos de exploração e dominação capitalista geradores de desigualdades sociais, alguns autores defensores do Welfare State concluem que nos países desenvolvidos essa questão tendeu para a sua resolução com o pacto social em que se fundaram os Estados – Providência e as economias do bem-estar.

Por seu lado a «actividade profissionalizada» dos assistentes sociais vai-se consolidando como resultado da intervenção do Estado nos países industrializados, com medidas de política social, a par com outras intervenções de âmbito não estatal promovidas por vários grupos sociais e patronais.

As mudanças do último século na organização do capitalismo – o seu alcance global, as inovações tecnológicas revolucionárias, a centralização em empresas e instituições financeiras gigantes e transnacionais – resultaram no aumento de assimetrias (no interior das regiões dos países ditos desenvolvidos, entre países ‘ricos’ e países ‘pobres’, entre o norte

92 industrializado e o sul subdesenvolvido), e na exclusão de grande número de pessoas pobres do mundo, da participação económica, social e política.

“A pobreza foi, durante todo esse tempo, ou bandeira de sectores conservadores da velha tradição filantrópica e assistencialista, ou objecto de interesse antropológico pelo subproletariado desadaptado em relação à evolução do capitalismo moderno, ou ainda, vector de interpretação das estruturas do subdesenvolvimento em países periféricos ou semi- periféricos” (Capucha, 2000: 9).

Mas o conceito de Pobreza (Costa, 1985) evoluiu de uma formulação que privilegia sobretudo os rendimentos familiares e as necessidades de sobrevivência para uma formulação que reflecte diferentes contributos, evidenciando uma progressiva desmultiplicação do conceito por várias dimensões que procuram enquadrar novas realidades associadas à pobreza - nomeadamente as dicotomias que nos dão conta da multiplicidade de significados que o conceito pode assumir: pobreza absoluta/relativa, pobreza objectiva/subjectiva, pobreza tradicional/nova pobreza, pobreza rural/urbana, pobreza temporária/duradoura, entre outros.

Em torno da pobreza enquanto fenómeno social surgem múltiplas abordagens teóricas, das quais se destacam a abordagem socioeconómica e a abordagem culturalista. Na primeira, a pobreza é associada a situações de privação por relação à subsistência e às necessidades básicas resultantes da insuficiência de recursos económicos. Na óptica de Luís Capucha (1992), os estudos realizados nesta perspectiva limitam-se a descrever situações e categorias mais vulneráveis à pobreza, privilegiando a utilização de metodologias extensivas e segmentadas por dimensões.

Na segunda abordagem, a pobreza é associada ao conceito de ‘cultura da pobreza’ e centra-se no carácter antropológico de comunidades, famílias e indivíduos, sendo privilegiadas as relações interindividuais, as representações e práticas sociais, as estratégias de vida, a organização familiar, os padrões de consumo e os sistemas de valores que configuram modos de vida diferenciados afectos à vivência da pobreza, que com frequência se transmitem intergeracionalmente (Ferreira, 1997). Nesta tradição de análise faz-se recurso a técnicas qualitativas, introduzindo na análise dos modos de vida das pessoas pobres, as dimensões simbólica e espacial do fenómeno da pobreza e privilegiando as micro-análises (Capucha, 1992).

93 Partimos assim, da concepção de que existe relação entre os modos de «estudar» e entender a pobreza e a(s) luta(s) contra a pobreza, o(s) modo(s) de conceber a política e as políticas sociais, as medidas e os instrumentos através dos quais se pretende travar esse combate e a focagem na territorialização da pobreza e nos processos de distribuição do rendimento. Nos finais da década de 80 do século passado por influência francesa, surge o conceito de «exclusão social» com a pretensão de substituir o conceito de pobreza. No entanto, e apesar das tentativas de explicitação, vai tendo uma utilização bastante fluida e por vezes, equívoca.

Apesar de defender que, hoje o conceito de «exclusão social» é pouco útil, parece-me importante colocá-lo em perspectiva a partir de algumas posições defendidas por autores que me serviram de referência, em determinada altura, mesmo sabendo que a sociologia contemporânea tende a privilegiar o estudo da ruptura e não da coesão. Segundo Capucha (1998), a exclusão resulta de uma desarticulação entre as diferentes partes da sociedade e os indivíduos, gerando uma ‘não-participação’ num conjunto mínimo de benefícios que definem um membro de pleno direito dessa sociedade, opondo-se claramente à noção de integração social.

A exclusão surge nesta elaboração como a agudização das desigualdades, indissociável dos seus mecanismos de produção, resultando numa dialéctica de oposição entre aqueles que efectivamente mobilizam os seus recursos de participação social (recursos que ultrapassam a esfera económica e englobam os que derivam dos capitais cultural e social dos actores sociais) e aqueles que, por falta desses mesmos recursos, estão incapacitados de o fazer.

Já a sociologia do século XIX se debruçou bastante sobre os mecanismos de exclusão social como podemos recordar em Durkheim com a distinção estabelecida entre solidariedade mecânica e orgânica. A exclusão é concebida como um produto de um défice de coesão social global, não se reduzindo a fenómenos individuais nem a simples agregações de situações (Lamarque, 1995). Acrescem ao carácter cumulativo, dinâmico e persistente da exclusão, os processos de reprodução, através da transmissão geracional, e a evolução que constituem simultaneamente causa e consequência de múltiplas rupturas na coesão social, implicando dualismos e fragmentação social.

94 Desta forma, os processos de exclusão são pensados como estando ligados à quebra de laços de solidariedade e ao risco de marginalização, à desintegração do sistema de actividade associada às mutações económicas e de organização do trabalho e à desintegração das relações sociais e familiares, assumindo também a forma de uma ruptura dos laços simbólicos (Xiberras, 1996). Esta noção, cuja origem pode ser procurada nos mecanismos estruturadores do funcionamento das sociedades modernas, remete para uma crise estrutural que abala os fundamentos das sociedades contemporâneas.

Martine Xiberras (1996) afirma que a exclusão é resultado da dificuldade de integração ou de inserção, colocando essa dificuldade do lado dos indivíduos que não conseguem cumprir as normas sociais ou alcançar os níveis socialmente considerados como regulares. A autora para definir o conceito coloca em relação o «espaço de referência que provoca a rejeição» e «as

formas» pelas quais a exclusão se produz. Nesta óptica, a exclusão social é

produzida quando a “sociedade não oferece a todos os seus membros a

possibilidade de beneficiar dos direitos nem de cumprir alguns deveres que lhe estão associados” (1996:28). Xiberras chama ainda a atenção para o facto de

que as sociedades tendem a aceitar a diferença ou o desvio, quando esses fenómenos acontecem apenas num determinado ponto em relação às respectivas «representações normalizantes», mas que a acumulação de diferenças ou desvios já é bastante inadmissível.

A análise da vulnerabilidade à pobreza e à exclusão social implica uma dimensão subjectiva que englobe, quer o sentido dado às suas vivências pelas populações caracterizadas como desfavorecidas, quer os modos de adaptação das mesmas aos constrangimentos situacionais que as rodeiam. Um dos autores portugueses que se debruça sobre esta questão refere que:

“…o conceito de pobreza, analisado enquanto situação de escassez de recursos de que um indivíduo, ou família, dispõem para satisfazer necessidades consideradas mínimas, acentua o aspecto distributivo do fenómeno (a forma como os recursos se encontram distribuídos entre os indivíduos e/ou famílias na sociedade). Já o conceito de exclusão social acentua os aspectos relacionais do fenómeno, quando encaramos este conceito enquanto situação de inadequada integração social” (Pereirinha, 1992:170).

95 Não parece irrelevante privilegiar os aspectos distributivos ou relacionais do fenómeno da pobreza, sendo que a mudança de designação socialmente utilizada vem acentuar a inadaptação individual, responsabilizando os indivíduos pelas suas condições de vida.

Nas sociedades actuais e segundo Paugam (1996), o debate sobre os fenómenos de ruptura e de crise identitária que trespassam e caracterizam os processos de exclusão já não se restringe à argumentação sobre o carácter desigualitário da sociedade e sobre o fenómeno de pauperização que lhe é inerente. A noção de exclusão ultrapassa a de desigualdade, conferindo-lhe um outro sentido, assente não na oposição de interesse entre grupos sociais, mas essencialmente sobre a fragilidade, fundada na ausência de reivindicações organizadas e de movimentos com potencialidades ao nível do reforço da coesão identitária das populações menos favorecidas (Paugam, 1996:15). A tipologia de beneficiários dos serviços de acção social definida por Paugam e utilizada para operacionalizar o conceito de «desqualificação social» considera este processo de etiquetagem e a diversidade de estatutos que definem as identidades pessoais e os sentimentos subjectivos da situação vivenciada em três categorias: intervenção pontual (os fragilizados), intervenção regular (os assistidos) e infra-intervenção (os marginais). Nesta linha, estas representações são, na sua constituição, objecto de um processo de etiquetagem e de estigmatização que as reforça e que reforça as dificuldades de integração social acrescidas pela incapacidade destas categorias sociais superarem o processo de etiquetagem que as identifica como desfavorecidas. Como também defende Capucha,

“A exclusão social liga-se, precisamente, à falta de oportunidades e à incapacidade dos grupos com menores recursos materiais, culturais e sociais e com menor capital político para expressarem os seus interesses e para reivindicarem a ruptura com as condições e as imagens que os marcam” (2000: 10).

Ainda segundo o mesmo autor na relação entre os conceitos de ‘desenvolvimento’ e ‘pobreza’, o que tende a ficar esquecido é o lado activo dos agentes, sobretudo quando a análise se remete para o nível das estruturas de rendimento, das condições de vida ou das relações com o emprego e a segurança social; e também a questão do território (que era lateral na tradição

96 marxista, mas era central na tradição culturalista da Escola de Chicago) que coloca em contexto as formas de organização da sociedade e a crise de identidade e de filiação social vivida pelas pessoas.

Neste quadro faz sentido e, utilizando uma expressão de Bruto da Costa (1985) falar da «agonia de um paradigma» para referir o esgotamento do modelo desenvolvimentista. Como também fará sentido, lembrar que a partir dos anos 70 e 80 do século passado começou a emergir uma outra concepção de desenvolvimento sintetizada na expressão «pensar globalmente, agir localmente».

A emergência deste novo paradigma, é marcada por 3 aspectos principais: a multidimensionalidade, uma lógica qualitativa e uma valorização do local (Canário, 1999: 63), mas arriscaria a dizer que não foram estes os aspectos que têm prevalecido, apesar da sua inequívoca presença. A recusa da mediação dos aparelhos centrais do Estado, preparou o terreno para a regulação descentralizada que, assentou em procedimentos de implicação, dando lugar a um novo tecido institucional, na procura de transferir para a base os problemas e os conflitos que emergiam ou se concretizavam localmente. Através da «Glocalidade» (Pensar Global e Agir Local) era pretendido conseguir no plano local, as convergências possíveis sobre as questões que afectam a vida económica e social, através do confronto e do debate entre adversários que desta forma se transformariam em parceiros, obrigados a encontrar soluções. Mas segundo a voz crítica de Marília Andrade,

“Os novos dispositivos de acção e os novos procedimentos, respondem exactamente a uma despolitização progressiva da vida pública e a um controle dos espaços públicos políticos, já que a acção pública se reduz a um nível estritamente gestionário e imediato. Ou seja, a tensão entre o presente e o futuro desaparece, as políticas sociais tendem a ser operacionalizadas no plano local, territorialmente ao nível dos municípios (o infra-estatal), por vezes sem que sejam transferidas para o local, as condições necessárias a essa gestão” (Andrade, 2001: 90).

Mais uma vez, foi possível segundo a mesma autora, constatar a distância entre o pensamento teórico e os resultados práticos obtidos pela aplicação das medidas de política de base local, dado que não foram atingidos os objectivos previstos: i) não foram reduzidos os problemas e a importância dos conflitos; ii) não ficou facilitada a arbitragem; iii) nem contribuiu para a mobilização da sociedade e para a coesão e restabelecimento dos laços sociais.

97 No discurso político a noção de «progresso» passou a ser substituída pela de «mudança social», alvitrando a possibilidade do nascimento de um «social do terceiro tipo» que, num registo próximo de Bourdieu, seria um social que passou para o campo da sociedade, tentando abranger quer o campo do Estado, quer o campo do mercado. Nesta linha e, apesar da profissão de assistente social ter sido “…frequentemente convertida em instrumento de

realização do capital, razão pela qual a crítica e a autocrítica realizadas pela profissão remetem ao acervo técnico-instrumental e não à sua instrumentalidade ao capitalismo, donde a perspectiva integrativa e adaptativa, de carácter reformista” (Y.Guerra, 2001:273), não se podem esquecer

movimentos e profissionais que apostaram em «renovações» (mais do que em «revoluções») comprometidas com processos de mudança social.