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S ERVIÇO S OCIAL

A P ARTICIPAÇÃO , A M UDANÇA E OS M OVIMENTOS DE RECONCEPTUALIZAÇÃO

A relação do Serviço Social com a «participação» e a «mudança» tem sido eventualmente um dos eixos de maior tensão na profissão, desde as dinâmicas clássicas instaladas pela adesão ao espírito protector do modelo social beverigdeano até à visão de Desenvolvimento Local e de Desenvolvimento Participativo, no pólo oposto, que se legitimou na década de 60 como um dos modelos de Desenvolvimento em que os assistentes sociais se envolveram. A título de exemplo, refere-se o ‘desenvolvimento comunitário’ que foi utilizado em vários períodos pelo governo inglês com o objectivo de preparar países colonizados para a independência e foi definido pela ONU como uma forma de

“…designar os esforços da população, aliados aos do governo, para melhorar a situação económica, social e cultural das comunidades, integrá-

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las na vida da nação e torná-las capazes de contribuir decisivamente para o progresso nacional” (ONU, documento 2/1956).

Ora este pressuposto de «aliança» entre os interesses, poderes e os esforços de populações e governos constitui um dos constrangimentos/dilemas que ainda hoje subsiste na profissão e que faz parte da tal «matriz moderna» de que atrás se falou. Helena Mouro ilustra esse constrangimento, a propósito da relação entre o Serviço Social Comunitário e o Desenvolvimento referindo que:

“Pese embora o facto de o Serviço Social na Comunidade ter estado mais adstrito ao exercício alargado da acção social ou da solução de problemas do que a questões intrínsecas ao desenvolvimento local (…), o certo é que, se por um lado (…) valorizava a participação como meio de descomprimir tensões ou de exercitar a cidadania, quando integrava a vertente da acção social fazia com que a sua função política se tornasse complexa, na medida em que a sua relação com o desenvolvimento podia tornar-se parasitária” (2009:113).

Esta citação evidencia a possibilidade da «acção social» se confinar a uma intervenção estritamente micro social, tornando-se assim «parasitária» em processos de mudança mais estruturais, eventualmente por não descolarem de uma «comunidade imaginada» (Anderson, 1983) que, em nome do que era «comum» a todos, atribuía o poder legítimo ao estado.

Para esta reflexão, assume importância o conceito de Desenvolvimento Alternativo como um processo de ‘conscientização’ social e político cujo objectivo a longo prazo é reequilibrar a estrutura de poder na sociedade, salvaguardar o meio-ambiente e a natureza, amplificar as formas e os meios de participação das pessoas na gestão dos seus próprios assuntos e redistribuir o rendimento de forma menos assimétrica.

O carácter ideológico da profissão e a sua vinculação ao aparelho de Estado, agravada pela burocratização do sistema de protecção social e pela própria segmentação do social, tem dificultado uma reflexão endógena e aprofundada sobre o futuro profissional. Helena Mouro defende que “A crise do capitalismo

arrastou consigo uma crise do Serviço Social” (Mouro, 2001:49), que acabou

por o deixar colado ao estigma de uma acção profissional “moralizadora e

normativa”.

Uma das tendências do corpo profissional no sentido de uma «revalorização da prática» procura reinventar as «funções do Serviço Social» na contemporaneidade. Recorda-se que o tema das «funções» constitui-se como

107 um pólo privilegiado de análise durante toda a década de 70, denotando uma grande preocupação em definir e delimitar os espaços ocupacionais da profissão e o seu papel no processo de mudança. Na verdade, o que estava em jogo era a questão da sua identidade específica e distintiva, aliada à convicção de que a clarificação das funções de Serviço Social levaria à superação dos dilemas profissionais (Martinelli, 2006:23).

Já em Ander-Egg (1975) se identificam seis tendências para o Serviço Social e classifica-as de acordo com o enfoque que sugerem: enfoque no científico; no tecnológico-metodológico; no ideológico-político; na profissionalização; na prática e no compromisso existencial.

Apesar da distância temporal arriscar-me-ia a dizer que estas tendências se mantêm, embora de forma combinada e em cruzamento com novas tendências (de modelo(s) de formação, de inscrição no mercado de trabalho e nas organizações e ainda de perdas substanciais de legitimidade de intervenção), num campo cheio de constrangimentos e cada vez mais partilhado entre «interventores voluntários» e «interventores de muitas outras formações». No caso do Serviço Social Europeu, a sua estratégia de afirmação alia-se à estratégia de legitimação ideológica do capitalismo, mantendo vestígios do seu humanitarismo cristão. O exercício profissional situa-se entre as solicitações do mercado empregador e a gestão do social, ainda muito marcado por um conjunto de funções que visam, em última análise, neutralizar as tensões sociais.

É no contexto destas tensões que emergem movimentações internas, quer com a produção de estratégias alternativas de reconstrução dos espaços de intervenção profissional, quer com o reconhecimento da necessidade de maior cientificidade, de que é exemplo o “Movimento de reconceptualização” ou o “Movimento da Geração 65” - Movimento criado no sul do Brasil que se destacou pelo debate crítico da Metodologia do Serviço Social, centrando-se na reconceptualização da profissão, onde para além da análise histórica da natureza do Serviço Social, eram também discutidas as suas funções no quadro de um processo de mudança social.

Deste movimento destacam-se participantes como Herman Kruse, José Lucena Dantas e Maria Lúcia Carvalho da Silva. Na América Latina e, particularmente no Brasil, entre 1960 e 1964, existiram experiências de pequenos grupos de

108 assistentes sociais, apoiados pelas Escolas de Serviço Social do Nordeste, que se envolveram no Movimento de Educação de Base, apresentando uma postura profissional fundamentada na análise crítica da sociedade, evidenciando as contradições do sistema capitalista e requerendo mudanças estruturais. Este Movimento nascido em 1958 teve um crescimento considerável ao lado dos Centros de Cultura Popular e dos Movimentos de Cultura Popular, tendo sido iniciada uma campanha de mobilização nacional contra o analfabetismo (Pinto:1986).

Estes Movimentos nasceram do interesse de intelectuais, políticos e estudantes em promover o envolvimento do povo no processo de participação política e na tomada de consciência da problemática brasileira no final da década de 50. A perspectiva educativa caracterizou-se pela adequação de métodos pedagógicos e visava um processo de conscientização e participação política de que Paulo Freire (1980) é um dos autores mais divulgados, na mudança significativa do homem à condição de «sujeito».

O seminário de Araxá, em 1967, na herança destes movimentos comprometidos com a actuação sobre as causas dos problemas sociais conduz ao «Movimento de reconceptualização» que traduzia as preocupações das próprias ciências sociais nesse momento e a inadequação dos métodos tradicionais à realidade ‘subdesenvolvida’ do Brasil e da América Latina.

Por seu lado, a grave situação socioeconómica existente na América Latina facilitou a penetração das ideias socialistas, ampliando a influência das ciências sociais e mostrando que as mudanças internas no Serviço Social, quer em termos de metodologia, quer em termos de ideologia, ocorrem a partir de influências externas.

Este debate encobria um sério impasse com o qual o Serviço Social se via envolvido, na medida em que as suas práticas restritivas, reducionistas e micro-sociais não conseguiam responder de forma efectiva aos complexos problemas que se viviam. Assim, no seu parágrafo 34, o Documento de Araxá resultante do Seminário de 1967 afirma que: “…impõe-se a reformulação do

Serviço Social em novas linhas de teoria e de acção para melhor servir à pessoa humana e à sociedade” (1984:13).

109 Este questionamento sobre a identidade profissional foi fecundo e teve consequências no alargamento do debate interno sobre os princípios, os valores e as metodologias do Serviço Social. Porém, não foi hegemónico e criou várias linhas ou tendências que segundo Helena Mouro (2009), se manifestaram a partir de diferentes concepções teóricas e algumas cisões entre o Serviço Social Europeu (tido como mais conservador), o Serviço Social da América do Norte (mais reformista) e o Serviço Social da América Latina (mais revolucionário).

A partir dos anos 70 do século passado os processos de reconceptualização de intervenção profissional ganham visibilidade social, embora de forma diferenciada, numa nova fase de afirmação. Numa perspectiva abrangente, passou-se a assistir a um investimento no reforço da sua qualificação profissional, o que criou rupturas com um “praticismo” de carácter “doméstico” e “familiar” e contribuiu para um exercício profissional que se expressa numa mudança de práticas, agora mais voltadas para as alterações dos comportamentos sociais e para a compreensão das situações de âmbito conjuntural.

Os Movimentos de reconceptualização do Serviço Social na década de 60 não foram alheios, como vimos, aos movimentos de contestação da época e construíram posições críticas sobre as formas como o poder político orientou a intervenção no campo do social.

Na perspectiva desta trajectória, sumariamente identificada, persiste a reflexão de que o Serviço Social tem uma identidade histórica atribuída pelo capitalismo

“…e constituída de avessos – coerção, intimidação, repressão - e era, na verdade uma forma mistificada de controlo social (…) onde a função social da assistência era submetida à sua função económica, substituindo o educativo pelo assistencial e transformando a crítica em resignação, em passiva aceitação” (Martinelli, 2006:158).

Contudo, na sequência das alterações contextuais e do insucesso dos métodos tradicionais de protecção social e de ajuda social, nasce um novo método de acção que consiste em responder à reivindicação pela oferta de implicação, num princípio da «contratualidade da acção» (Donzelot, 1994). É então que surgem os procedimentos operativos baseados nas noções de ‘missão’, de

110 ‘contrato’ e ‘Metodologia de projecto’, dando lugar a políticas sociais pretensamente transversais. Mas também aí,

“…o certo é que não se encontra, na fundamentação dessas vias, uma problematização e uma configuração do social com base numa noção de social abrangente, que englobe o mundo da vida assim como o mundo da política e o mundo do pensamento de forma articulada “ (Andrade, 2001: 105).

Segundo Illich (1976), para ultrapassar os «mecanismos contra produtivos» (ou, como outros diriam, para deixar de fazer mais do mesmo) é preciso abrir crise, querer mudar a sociedade, pensar futuros - o que implica uma alteração profunda nos comportamentos individuais, sociais e no papel do Estado.

O debate está assim, instituído para além da instrumentalidade do Serviço Social (e da eficácia, ou ineficácia, dos seus resultados), gerando-se no questionamento do seu objecto, da direcção social dos resultados, nos objectivos, nas finalidades, nos princípios ético-políticos e nos fundamentos teórico-metodológicos, onde as racionalidades se confrontam e articulam.

Mas também será importante reconhecer que o Serviço Social não foi engendrado por si próprio. Ele surge como parte de uma estratégia de classe, no momento em que o Estado assume para si o tratamento das questões sociais e onde as políticas sociais inauguram um mercado de trabalho para os assistentes sociais, apostados em produzir “reformas na ordem” e em ‘integrar’ as classes mais desfavorecidas.

Estes campos de actuação contribuem para tornar o Assistente Social um elemento activo de um processo político que começou por pretender elevar o padrão médio de vida, bem como alargar o consumo de bens e serviços sociais num clima de baixa tensão social.

Mas se não naturalizarmos a vinculação orgânica do Serviço Social ao Capitalismo, podemos assumir que a história é essencialmente um movimento que se constrói a cada momento e nessa construção, traz novas possibilidades como refere Pinto,

“Uma sociedade em mudança exige de uma profissão uma postura científica de Investigação-Acção críticas e uma renovação da acção profissional, sempre atenta às transformações sociais, estruturais e conjunturais da sociedade onde exerce” (1986: 33).

111 Hoje, como ontem, são muitas as oportunidades de participação em movimentos que reivindicam mudanças e co constroem processos de aprendizagem partilhada para inventar «o novo» e «o diferente», e onde para além dos resultados que estes caminhos experimentais possam gerar, a participação dos assistentes sociais em processos participados pode constituir fonte de aprendizagem e ganho de legitimidade que lhes permitam assumir posições de paridade e de activismo com outros actores sociais que procuram reconfigurar a sua cidadania individual e colectiva.

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