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A noite das máscaras (ou o Palácio Rishantor)

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A Noite das Máscaras (ou o Palácio Rishantor)

É claro que Vallen, Ellisa, Rufus e Ashlen não sabiam de nada disso. Apenas abriam caminho pela multidão frenética, as cabeças zumbindo da algazarra infernal da Noite das Máscaras. O calor era sufocante — o dia já fora quente, e mesmo agora, no início da noite, o ar permanecia abafado, como se o céu fosse uma tampa que estava muito baixa sobre suas cabeças. Na verdade, todo aquele calor emanava das centenas de corpos que se colavam, esfregavam, chocavam, na dança incompreensível dos ahlenienses em festa.

Rufus se sentia tonto. O cansaço de nadar por entre os membros suarentos, o confi namento da enorme máscara de coruja e o ar grosso e quente eram demais para sua constituição frágil — ele sentia a consciência querendo fugir e os olhos se fechando contra a sua vontade.

— Ali!

A voz de Ashlen acordou Rufus. O garoto apontava o objetivo deles — o Palácio Rishantor. Por um momento, tudo pareceu silêncio. A gritaria, a cacofonia e as vozes e canções que lutavam ao redor deles continuavam; mas eles não ouviam. Por um momento, só houve o confi rmar mudo dos planos feitos anteriormente. Os quatro se olharam, por detrás dos rostos artifi ciais. Vallen e Ellisa não queriam nada mais do que trocar um beijo, mas não arriscaram mostrar as faces.

Aquela era a única noite do ano em que plebeus podiam entrar no Palácio Rishantor. Os quatro penetraram pela imensa porta aberta, constantemente nadando através da multidão. Os habitantes de Th artann aproveitavam aquela noite de excessos para conhecer o palácio, para ver suas frivolidades, luxos e requintes acintosos, para tentar roubar algo, para talvez aproveitar alguns momentos furtivos com algum membro da nobreza. É claro que a maioria dos roubos eram notados e punidos com rigor pelos guardas fantasiados, e é claro que não havia como diferenciar nobres de limpadores de chaminé naquela noite — mas os ahlenienses mantinham a ilusão. Ahlen era um reino de ilusões.

Os corredores do palácio eram largos, sufi cientes para quatro homens passarem lado a lado, mas mesmo assim eram apertados para a quantidade de pessoas que estava lá. O salão principal, grande como uma praça, era uma gigantesca orgia. Assim que entraram no enorme ambiente iluminado por centenas de velas e candelabros e inúmeros focos de luz mágica, os aventureiros foram tomados pelo cheiro sufocante de vinho, urina, vômito e sexo. A multidão lá era ainda mais selvagem, como um bando de criaturas primais liberando todos os seus instintos de uma só vez. Não tinham pudores em realizar qualquer tipo de ato no meio dos outros, não tinham controle e não tinham rosto. Havia aqueles que já se estiravam, desfalecidos, nos cantos do salão. Estes eram roubados de tudo o que possuíam, menos suas máscaras. Havia os que não trajavam mais roupas, mas que ainda mantinham as máscaras. As máscaras permaneciam. Sempre.

O grupo atravessou em horror o salão, levando quase tanto tempo quanto haviam demorado para percorrer a cidade. Lá fora, vago sob o rugir dos ahlenienses, um trovão. Eles tinham uma ideia vaga de como se mover pelo palácio, embora não houvessem conseguido

um mapa verdadeiro — isso era um item poderoso demais. Percorreram corredores labirínticos, subiram escadas de mármore cobertas de imundície, e por fi m chegaram a uma área onde o número de pessoas espremidas era menor. Mais um trovão ribombava as janelas de vidro colorido. O ar naquela saleta ainda fervia, mas parecia fresco para os pulmões cansados dos quatro, que haviam respirado o bafo dos foliões por horas. Junto deles naquele lugar, havia apenas dez ou quinze almas — alguns dançando enfraquecidos, os membros pendentes, mas a maioria caída pelo álcool, e um bardo incompetente que assassinava um ritmo popular em um alaúde desafi nado.

— Devemos estar chegando perto — disse Ellisa, encostando a comprida cara de gazela no ouvido coberto de pele de lobo de Vallen.

De fato, estavam. À medida que avançavam, errando os corredores e antessalas tanto quanto acertavam, o número de festejantes rareava, e aumentava o de soldados mascarados. Eles desejavam chegar até a parte do Palácio Rishantor que era fechada aos plebeus — mesmo na louca Noite das Máscaras. Os guardas prestavam atenção no grupo, mas eles não eram os únicos a percorrer aqueles corredores, e raros eram os soldados que não desejavam estar livres dos uniformes e armas para que pudessem se juntar aos festejos. Mais raros ainda eram aqueles que não haviam se rendido ao vinho. Portanto, o caminho dos aventureiros foi bastante fácil até chegarem ao último corredor — que acabava em uma porta pesada de madeira e ferro, protegida por meia dúzia de soldados.

Era impossível ver se os tais guardas estavam alcoolizados como a maioria ou se permaneciam sóbrios. Usavam máscaras brancas e sem ornamentos, assim como todos os membros da guarda. Em seus rostos havia sorrisos congelados, numa fenda que mal deixava entrever uma sombra dos lábios, e não revelava nada da face atrás. Os aventureiros se aproximaram com cuidado, fi ngindo uma conversa. Ashlen cambaleava, imitando os bêbados que infestavam a cidade.

— Não podem passar daqui — disse um dos guardas, agarrando sua alabarda com mais força. Não tomavam, ainda, nenhuma ação contra os quatro: eles estavam, ainda, em território permitido.

Ashlen continuou cambaleando na direção dos homens, tropeçando nos próprios pés enquanto arengava como um bêbado, misturando assuntos e palavras e enrolando a língua.

— Onde é o salão principal? — deixou as palavras escorrerem. — É melhor irem embora — começou o guarda.

Antes que ele pudesse terminar a frase, Ashlen havia enterrado uma adaga em seu estômago. Os outros cinco tiveram tempo de começar um alerta, mas foram calados pelas fl echas de Ellisa, que foram certeiras em três gargantas. Os últimos dois, no meio do movimento para golpearem com as alabardas, foram tombados por Inverno e Inferno, as lâminas irmãs de Vallen, que rugiram rapidamente, e voltaram às bainhas ocultas na mesma velocidade com que saíram.

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— Pronto — bufou Ellisa.

— A pior parte do trabalho — murmurou Ashlen enquanto despia os corpos.

Os quatro arrastaram os cadáveres até uma sala próxima e retiraram tudo o que poderia ser útil ou usado como disfarce. Começaram a vestir as roupas de guardas.

— Também odeio isto — Vallen colocou um elmo, apertou as tiras embaixo do queixo e ajeitou a máscara sobre o rosto. — Mas é o lado ruim. Eles não precisavam morrer, mas trabalhavam para o inimigo. Pena.

— Precisavam mesmo? — disse Ashlen enquanto vestia uma cota de malha. — Eram eles ou nós — cortou Ellisa.

Todos eles odiavam fazer aquele tipo de coisa — enfrentar aqueles que não tinham nada a ver com uma missão, mas que se interpunham no caminho. Gregor invariavelmente se recusava a fazer este tipo de coisa, mas por vezes era inevitável. Doeu em Vallen perceber que a ausência do amigo agora era um benefício.

— Além do mais, eles serviam a Ahlen — disse Vallen Allond, tentando se convencer. Aquele tinha sido o principal argumento para apaziguar suas consciências: Ahlen era um lugar de vilezas, e enfrentar as forças ofi ciais do reino não era tão ruim. Eles haviam repetido isso até que suas almas parassem um pouco de arder.

Ellisa, como qualquer um deles, trocava suas roupas sem constrangimento. Apenas Rufus, tentando ser furtivo, roubava um ou outro olhar para as costas nuas da guerreira. Ele lutou com a cota de malha e depois com a túnica, e desistiu.

— Não consigo vestir isso — disse por fi m. Todos se viraram. Ellisa exasperada.

— Que diabos! — gritou. — Até mesmo eu posso vestir sem problemas! — Calma — interrompeu Vallen, observando o mago.

A visão de Rufus metido na cota de malha e tentando colocar a túnica era mesmo risível. O estômago proeminente brigava contra o tecido de metal, forçando-o ao máximo. A túnica não entrava — estava presa, retesada, no meio do peito. Rufus nunca passaria por um guarda. Além disso, sua pele, desacostumada a armaduras, já começava a se esfolar.

— Você fi ca jogado em um canto, fi ngindo estar bêbado — sentenciou Vallen.

Rufus concordou em silêncio, retirando com alívio os equipamentos. Ellisa, balançando a cabeça em desaprovação, terminou de vestir o uniforme de guarda, ostensivamente voltada para Rufus. Concedeu ao mago a visão de um pedaço fugidio de seio.

Eles esconderam os corpos dos guardas e se prepararam. Ellisa ainda trajava a capa pesada por cima de tudo.

— Isso vai denunciá-la — disse Vallen.

— Isso também — era Ellisa, apontando para as duas espadas embainhadas na cintura do amante.

— Prefere que eu mostre o meu arco? — disse Ellisa, abrindo parcialmente a capa e mostrando um pedaço da haste de madeira. — Esta é a única maneira de escondê-lo.

— Prefi ro que não o leve.

— Sou quase inútil com uma espada — disse Ellisa, abaixando a máscara branca e sorridente sobre o rosto. — Não se preocupe.

Fazendo um gesto para Ashlen, ela se dirigiu à porta.

— Espere! — ainda disse Vallen. Aproximou-se da guerreira e, levantando sua máscara, pousou um beijo carinhoso em seus lábios. — Tome cuidado.

Ela não disse nada. Usando um molho de chaves que pertencera a um dos guardas, abriu a porta pesada. Entrou junto a Ashlen na parte restrita do Palácio Rishantor.

Rufus, como sempre em que estava sozinho com um dos companheiros, sentia-se desconfortável. Ele estava encostado, deitado como se em torpor, em uma das imensas paredes do palácio. Os cantos da parede haviam sido usados como latrina desde o início do dia: fediam a urina e excrementos.

— E então, o que fazemos? — disse Rufus.

O barulho vindo dos andares abaixo era imenso, e a voz do mago vinha abafada e vibrante de dentro da armação coberta de penas. Rufus teve de repetir duas vezes, até que Vallen entendesse a pergunta.

— Ainda não sabe? — disse Vallen, impaciente. Eles haviam repassado o plano várias vezes antes de colocá-lo em prática.

— Sim, já sei — disse Rufus. — Só queria confi rmar — falou isso em voz baixa. Não soube se Vallen ouvira. De qualquer forma, não recebeu uma resposta.

O plano fora repassado diversas vezes: Ashlen e Ellisa entrariam na parte restrita do palácio e buscariam por qualquer sinal da passagem do albino, ou qualquer pista de sua próxima localização. Segundo o que eles sabiam, o criminoso procurava o herdeiro não nascido do regente Th orngald Vorlat, o que levava seu rastro à perigosíssima ala privativa, onde o regente e sua esposa efetivamente moravam. É claro, eles haviam tentado obter as informações sem entrar na boca da serpente, mas houve um limite para o que os Tibares e a língua ágil do jovem Ashlen puderam arrancar. Em certo ponto, fi cara mais arriscado seguir fazendo perguntas inconvenientes do que tentar uma incursão furtiva — e a Noite das Máscaras estivera próxima, o que tornava o momento ideal. Vallen e Rufus iriam fi car de guarda até que o sinal de Ellisa — uma fl echa marcada, disparada por uma janela — os avisasse de que o objetivo havia sido cumprido. Uma fl echa assobiante seria o sinal de que havia problemas, e neste caso os dois invadiriam o setor restrito, descartando a furtividade, para socorrê-los. Ellisa e Ashlen ainda tinham a missão de achar uma saída de esgoto e abrir uma passagem

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para o time que havia entrado por lá — Artorius, Masato e Nichaela. Estes três, não sendo humanos e, portanto, criminosos automáticos em Th artann, fi cariam de prontidão para agir apenas em último caso. Todos eles esperavam que não se chegasse a esse ponto.

Vallen maldizia seu azar em permanecer com Rufus. Sem seus feitiços, o mago era um estorvo em combate. O próprio Vallen já tentara ensinar a ele alguns movimentos com a espada, mas fora inútil. Era melhor que Masato fosse seu companheiro como sentinela (sua pele amarelada e olhos rasgados poderiam ser facilmente escondidos por uma fantasia), mas todos haviam concordado que era melhor deixar um homem a mais para proteger Nichaela. Vallen não discordava — a segurança da clériga, como sempre, era uma prioridade —, mas seria melhor ter mais alguém. Diabos, pensava Vallen, por que Gregor não pode estar aqui?

As trovoadas continuavam, e as janelas tremiam. Vallen e Rufus estavam postados próximos a uma janela, para poderem ver a fl echa de Ellisa. Mais um trovão e a chuva começou a cair furiosa, acrescentando o tamborilar constante das gotas à algazarra da Noite das Máscaras.

Depois de metade de uma hora, Vallen e Rufus ainda esperavam, e Ellisa e Ashlen haviam encontrado uma saída de esgoto. Os dois haviam percorrido o interior — calmo e silencioso — do setor restrito do palácio, descido diversas escadarias, até chegarem a um subsolo que possuía uma grade por onde escorria a chuva trazida por canaletas. Embaixo da abertura, Artorius e os outros esperavam.

— Tudo certo? — grunhiu Ellisa, forçando a grade até que abrisse.

— Temos um novo amigo — disse Artorius a contragosto. De alguma forma, ironia na voz de um minotauro era uma coisa muito estranha.

Ellisa notou o jovem alto e magro, o corpo desengonçado completamente coberto de negro, nas sombras do esgoto.

— Senomar — disse o bardo com um sorriso largo. — Ele era prisioneiro — começou Nichaela.

— Que seja, não temos tempo! — Ellisa ajudou a clériga a escalar até a superfície, enquanto Artorius e Masato subiam por conta própria, olhando ao redor. — Rápido, alguém pode vir.

Ellisa e Ashlen haviam despistado boa parte dos funcionários e guardas do castelo para chegar até aquele subterrâneo úmido. Na verdade, poucos empregados iam àquele lugar, mas Ellisa odiava correr riscos inúteis. Em sua jornada pelo setor restrito de Rishantor, ela e Ashlen haviam se escondido e blefado — a lábia do jovem Ashlen era letal, e ele convencia guardas e serviçais com a mesma facilidade com que obtinha informações em cidades desconhecidas. De fato, as mentiras de Ashlen já lhes haviam salvado a vida diversas vezes, e, naquela missão em particular, eles deviam sua sobrevivência mais a ele do que a qualquer outro membro do grupo.

— Conseguimos isto — disse Masato, estendendo os uniformes dos quatro guardas que haviam derrubado antes.

— Ótimo. Vistam — disse Ellisa. Depois, olhando para Artorius: — Ou não.

— Eu me escondo em algum lugar — disse o minotauro. — Precisa que algum de nós lhes acompanhe?

— Não. Dois fazem menos barulho que três.

— Eu posso ir! — disse Senomar, recém terminando de sair do esgoto. — Sei ser quieto. — Nem pensar — disse Ellisa. Ela odiava recém-chegados, principalmente no meio de missões como aquela. Eram um fator novo, ainda não calculado, e era impossível dizer o risco que trariam. Mas só falou: — Esse seu fedor vai atrair todos os guardas do reino.

— É verdade — resignou-se Senomar.

Enquanto Ellisa e Ashlen vigiavam, apreensivos, os outros vestiram os uniformes de guarda. Nichaela fi cava estranha metida na túnica e cota de malha, mas mesmo assim poderia enganar alguém de longe — era curioso como sua feminilidade exalava através do uniforme, muito mais do que a de Ellisa. Artorius fi cou em um canto e cobriu-se com uma lona, parecendo um monte enorme de entulho.

— O assobio de uma fl echa, certo? — disse Masato.

— O assobio de uma fl echa — confi rmou Ellisa. Todos fi cariam de ouvidos atentos para o som inconfundível de uma das fl echas assobiadoras, prontos para deixarem de lado a discrição se a situação pedisse armas.

— Que Lena esteja com vocês — ainda disse Nichaela.

— Acho que Lena vai querer distância disto — Ellisa deu uma risada sem humor. Ela e Ashlen prosseguiram. O jovem notava, algo assustado, que a guerreira estava só um pouco mais nervosa que o normal.

A língua criativa de Ashlen lhes garantiu segurança por mais uma boa parte do labirinto de mármore e tapeçarias. Eles passaram por um arco largo, uma abertura atrás da qual se realizava o grande evento da Noite das Máscaras — o baile das famílias nobres.

Nenhum daqueles rostos mascarados signifi cava nada para eles, mas no amplo salão de baile estavam as pessoas mais poderosas do reino venenoso de Ahlen. Inimigos ferrenhos, que não desejavam nada além de cortar a garganta uns dos outros, conversavam em voz baixa, trocando gracejos enquanto ouviam as melodias comedidas dos excelentes bardos que se revezavam.

— Palmas para Dimitri! — elevava-se uma voz animada, quando cessava uma apresentação.

— Um aplauso a Postellus! — Vivas a Wingaard!

Não havia como saber, mas aquela exaltação dos menestréis era uma disputa feroz, na qual cada nobre procurava que o bardo sob seu patrocínio fosse melhor que os demais. Eram

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vitórias mesquinhas e derrotas insignifi cantes, mas, naquele universo de competição, eram questões de vida ou morte. E não havia como saber, mas, por trás de aplausos e comentários agradáveis, o regente de Ahlen, Th orngald Vorlat, maldizia seus servos e se perguntava onde estaria o menestrel que mandara trazer; o tal Senomar.

Th orngald Vorlat ocupava um lugar de honra no salão, sentado em uma cadeira de espaldar alto, forrada com fi no linho tecido com fi os de ouro. Ao seu lado, uma cadeira vazia. Embora fosse incapaz de notar as sutilezas do baile, Ashlen pudera ver aquilo, e, logo que estavam afastados, comentou com Ellisa:

— Percebeu? A esposa do regente não está ali.

— Sinal de que deve estar em seus aposentos — disse Ellisa em voz baixa.

Ashlen assentiu. Havia então pelo menos uma fi gura muito importante na área para a qual eles se dirigiam.

— E isto signifi ca problemas — disse o garoto.

Ellisa seguia com os nervos rasos sob a pele, saltando a cada sombra, segurando forte o arco a cada guarda que lhes interpelava. Mas não houve problemas: Ashlen continuou ágil em suas mentiras, e a capa que Ellisa vestia foi explicada diversas vezes, sem que nunca surgisse uma dúvida. E Ellisa não precisou falar, o que com certeza denunciaria o disfarce, e em breve eles estavam às portas do seu objetivo: a ala privada, onde viviam o regente e sua esposa. Prova de que, às vezes, o pior não acontece.

— Aonde vão? — foi uma voz, abafada por uma máscara, atrás deles.

Ellisa e Ashlen podiam quase apalpar a vitória: estavam no fundo de um corredor bem-decorado, repleto de fl âmulas nas paredes e armaduras de pé, como vigias silenciosos. A metros deles estava a porta de pedra trabalhada que levaria aos aposentos privativos dos Vorlat. O chão era coberto por um longuíssimo tapete azul escuro. As janelas eram grandes e elaboradas, e a chuva martelava incessante nos vidros. Não havia aqui o cheiro decadente da festa, mal se ouviam os últimos murmúrios da comemoração abaixo.

— Aonde vão? — repetiu o guarda.

— Recebemos ordens de vir aqui, verifi car se está tudo bem — disse Ashlen. De repente, ele percebia como era estranho não haver mais guardas justamente naquele ponto.

— Mas todos receberam ordens de fi car afastados — começou o soldado.

Súbito, a capa de Ellisa se abriu, e, num instante, os braços retesaram a corda do arco e uma fl echa voou, indo parar certeira na testa do guarda, que caiu inerte. A guerreira ofegava.

— Por quê? — exclamou Ashlen, mas foi interrompido por um som estridente que levou suas mãos aos ouvidos.

Era o ruído terrível de metal raspando contra metal, um barulho doído que arrepiava os pelos das costas, fazia ranger os dentes e crispava as mãos. E se prolongava e a ele se juntavam outros ruídos iguais, e era ainda pior porque Ashlen e Ellisa viram que era um som de morte. As armaduras decorativas do corredor, quatro guerreiros silenciosos e vazios, moviam-se

para atacá-los. Portavam espadas grandes como elas próprias, que sibilavam cortando o ar e giravam em arcos imensos, por pouco não acertando os rostos dos aventureiros surpresos. As armaduras eram lentas, davam passos incertos e endurecidos, e suas juntas mal de moviam, mas os braços que brandiam as espadas eram rápidos em seus movimentos de matar, desferindo golpe em cima de golpe letal, numa série de movimentos idênticos de força incrível. O primeiro golpe de uma das imensas espadas foi contra o vazio, mas acertou o chão de grossas lajotas de mármore (em uma longa e rápida trajetória descendente), rasgando o tapete