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M RUGIDO CONSTANTE DE ÁGUA INQUIETA, O CHEIRO MÁSCULO do sal, o calor de um céu que tostava a pele, e o mar infi nito, até onde chegava o horizonte. Nada era mais revigorante que o espirrar da água fria no corpo fervente e, ao cruzar o Reino de Oceano, o Deus dos Mares, Glórienn quase se sentia viva de novo. Aquele era um lugar de vida e força, um mundo coberto por ondas, sob as quais criaturas gigantescas viviam, poucas vezes mostrando suas escamas e nadadeiras e tentáculos para a superfície. Era um mundo onde os raros seres da superfície se agarravam a ilhotas minúsculas e plataformas artifi ciais, sempre aterrorizados e maravilhados com a força e a vastidão do mar, e rezando por piedade para que não afundassem. Era um terreno selvagem, vibrante, feroz. O lar de um deus masculino e enorme e orgulhoso, que dominava a maior parte de Arton.

Uma tartaruga com o tamanho de uma cidade cortava as águas sem fi m, dividindo-as em uma viagem determinada e veloz. Em suas costas, de pé e de olhos fechados, deixando que o vento lhe empurrasse a pele para trás e penetrasse em suas narinas, uma elfa em farrapos. O cabelo púrpura como se estivesse sendo puxado, as roupas em trapos grudadas ao corpo, tremulando para trás com o movimento vertiginoso da tartaruga. Glórienn abriu os braços e tentou absorver a vida que permeava o ambiente. Estava encharcada dos espirros do mar. Preferia assim: tentava achar conforto nas centenas de minúsculos seres que habitavam cada gota, na certeza de que ali estava um refúgio. Glórienn tinha vontade de mergulhar e nunca mais emergir; tinha a impressão de que a água seria morna e agradavelmente viscosa, e que iria escondê-la e protegê-la para sempre.

De repente, curvou-se com violência, segurando o estômago, e desabou sobre o casco titânico. A monstruosa tartaruga lentamente moveu a cabeça, que tinha o tamanho de vários castelos, e observou a agonia da companheira.

— Outro morreu — comentou Allihanna, a Deusa da Natureza, na voz arrastada e gutural da tartaruga gigante.

Quando conseguiu se pôr em pé de novo, Glórienn mirou a outra com olhos semicerrados. Mordia o lábio inferior, e os dentes penetraram na pele maltratada, e o sangue escorreu livre.

— Não precisa me lembrar disso, Grande Urso — de propósito, a Deusa dos Elfos usou um dos títulos menores de Allihanna. Embora reinasse sobre tudo o que era selvagem, sobre todos os animais e as plantas, recebia nomes como aquele de tribos bárbaras menos esclarecidas. O despeito aplacou um pouco o sufocamento no peito de Glórienn, mas ela sabia que não signifi cava nada. Um dia, talvez, ela pudesse ter pensado em si mesma como a magnífi ca Deusa dos Elfos, e na outra como uma tosca divindade selvagem, mas agora ela era uma mendiga, uma suplicante que necessitava da ajuda de Allihanna e do Oceano, e de todos os outros.

No entanto, Allihanna ignorou a sutileza no discurso de Glórienn.

— Nunca saberei como manter uma conversa — disse a Deusa da Natureza, a título de explicação. — Estes são os seus modos civilizados.

Glórienn não disse nada. Não sabia por que Allihanna tinha concordado em ajudá-la. A piedade que motivara talvez Tanna-Toh não parecia um sentimento muito forte naquela que regia os animais; os motivos de Allihanna eram sempre inescrutáveis. Glórienn sabia que não tinha condições de exigir nada ou de manter seu orgulho. Engoliria qualquer ofensa agora, e teria todos os pedidos de perdão de que necessitasse uma vez que Ragnar fosse vencido.

Ao longe, Glórienn avistou um pequeno grupo de humanos bronzeados tentando se manter na superfície, agarrados aos destroços do que já fora um tipo de embarcação. Os humanos acenaram em desespero, sentindo, mesmo de longe, o poder que emanava das duas deusas.

— Deseja resgatá-los? — perguntou Allihanna.

— Não — disse Glórienn. Que morressem alguns humanos, como já tinham morrido tantos elfos.

A tartaruga se afastou rapidamente, deixando para trás as vozes que imploravam e, logo, a visão patética dos náufragos. A vingança, assim como o mar, era implacável.

— É aqui — decretou Allihanna.

Glórienn assentiu em silêncio. A majestosa tartaruga se desfez em milhares de peixes de todos os tamanhos, e os peixes mergulharam dentro da água infinita. Glórienn mergulhou também.

A Deusa dos Elfos se sentiu abraçada, assim que a água a envolveu. Estar sob o mar era como estar nos braços de um pai forte e protetor. Glórienn sentia-se como uma criança, ao mesmo tempo temerosa e apaixonada por algo tão maior que ela, tão incompreensivelmente vasto e constante. Era o oceano.

Glórienn seguiu o cardume de milhares de peixes que era Allihanna. Dentro em pouco, as duas estavam a quilômetros de profundidade, num mar muito mais impenetrável que o maior abismo de Arton. Cordilheiras de corais se estendiam até onde a vista alcançava; serpentes viajavam com seus longos corpos ondulantes e, de tão compridas, sua passagem demorava horas. Milhões de olhos viam as duas deusas, e um ciclo frenético de caça e alimentação vibrava

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naquele mundo encharcado. O sol que escaldara os corpos na superfície conseguia penetrar, de alguma forma, até as maiores profundezas, deixando a água clara e agradável.

Glórienn sentia inveja. Naquele momento, desejava não ser deusa, ser apenas mais um peixe ou polvo ou minúsculo habitante das gotas, e se deixar afundar ali. Mas, sendo a Deusa dos Elfos, tudo aquilo só lhe lembrava do que o seu Reino não era.

Um grupo de dezenas de elfos-do-mar seguia as duas. A princípio, Glórienn pensou que as criaturas de pele azulada e cabelos verdes lhe prestavam homenagem, vendo-a como a mãe da raça de que descendiam. Mas logo ela viu que, na verdade, os elfos-do-mar zombavam. Eles não sentiam medo, não se sentiam maravilhados com a presença divina; faziam cabriolas e riam uns para os outros da fraqueza daquela visitante. Enfurecida, Glórienn perguntou-se como podiam simples mortais fi carem tão indiferentes à sua passagem. E então ela soube: os elfos viviam sempre em contato com seu deus. Ali não tinham medo de nada. Eram os fi lhos preferidos, superiores, príncipes de tudo. E zombavam da derrota de Glórienn, a mãe de seus primos secos.

Tanto melhor que não tivesse notado que, ao contrário dela, Allihanna era coberta de terror e admiração. Animais marinhos grandes como fortalezas seguiam a deusa com reverência, e milhares de peixes se juntavam ao seu cardume, deixando de lado sua individualidade para serem, também, Allihanna. À medida que afundava, ela fi cava mais forte.

Por fi m, o palácio de coral de Oceano surgiu. Era uma construção monstruosa, caótica, linda e terrível. Os corais cresciam selvagens, sem uma arquitetura lógica, e portas e janelas pipocavam por todos os lados. Os súditos de Oceano, que se moviam pelo Reino livres das limitações da superfície, entravam e saíam por todos os lados, celebrando sua capacidade de movimento. O coral, em alguns lugares, era afi ado como navalhas, e em outros era arredondado e liso. Em todos, era colorido e majestoso, e estava sempre crescendo. Os elfos-do-mar que seguiam Glórienn se juntaram aos que circulavam à volta do palácio, e logo, centenas das criaturas dançavam em troça ao redor da deusa. Glórienn tremia de fúria, vergonha e tristeza. Começou a sentir a pontada atrás do peito, que era o sinal de que outro de seus fi lhos morria no ataque da Aliança Negra. Olhava para todos os lados e só via os elfos-do-mar em gargalhadas, e os peixes impassíveis que podiam ou não ser Allihanna, e a água eterna, invencível, avassaladora. Quis se afogar, mas não podia, então sentia as lágrimas inundando-a por dentro, fazendo o que o mais bravio dos mares não era capaz.

Súbito, todos os elfos desapareceram, nadando frenéticos para todas as direções, sem olhar para trás. A maioria dos peixes e animais também sumiu, e sobrou pouca vida ao redor de Glórienn, até que só restava um tubarão moroso, que era Allihanna. Glórienn sentiu a água se tornar mais quente e mais áspera, e as correntes fi carem mais fortes, e a pressão sobre cada centímetro do seu corpo fi car maior. E sentiu a majestade que acompanhava a presença de um dos outros deuses.

— Onde ele está? — perguntou Glórienn. — Onde está Oceano?

— Aqui — respondeu a Deusa da Natureza. — Ele está aqui, não sente? Ele é tudo isto. Glórienn percebeu. Percebeu a razão do poder daquele Reino, e do que sentia ao mergulhar naquelas águas. Oceano tinha um palácio, sim, e podia ter ali uma forma humanoide ou animal. Mas, em sua forma mais pura, ele era o Reino, assim como talvez pudesse ser todo o mar de Arton.

As ondas chiaram, as águas se agitaram, jogando para todos os lados o lodo do solo marinho, e, desse rugido, formaram-se palavras:

— O que desejam nos meus domínios, deusas criadoras?

Oceano respeitava os deuses que eram pais e mães. Ele próprio fora o pai e o berço de toda a vida em Arton, e tinha em maior conta aqueles que houvessem contribuído para essa vida. Allihanna em especial talvez fosse o mais próximo de uma companheira que o estranho Oceano poderia ter.

— Vim pedir a sua ajuda, Senhor dos Mares — disse Glórienn, com reverência genuína. Não sabia para onde olhar quando falava, sentia-se tola e infantil ao dirigir-se a todo o mundo ao seu redor.

— Não me chame por esta alcunha — disse o mar. — Eu não governo, Deusa dos Elfos: eu sou.

Glórienn se movia inquieta na vastidão.

— Ela pede a sua ajuda — Allihanna interrompeu o silêncio. — Haverá uma tempestade, Oceano, e ela deve ocorrer.

O mar se agitou por um instante. Na superfície, uma ilha foi tragada por uma onda que, antes de cair, obscureceu o céu.

— Vocês são deusas do seco. Nada do que ocorre na superfície é de meu interesse — mas era tangível a delicadeza maior com a selvagem Allihanna.

Um outro tubarão se aproximou. Em seguida, mais um e mais um, e logo peixes, e moluscos e crustáceos e seres invisíveis, e Allihanna foi se tornando todos eles.

— Os outros farão disso seu interesse — replicaram os milhares de animais. — Viemos aqui para garantir que suas marés não sejam afetadas por línguas mais habilidosas.

Glórienn estava tonta. Ouvia o diálogo entre o mar, que era todo o universo à sua volta, e os animais incontáveis, que preenchiam quase cada centímetro, a ponto de fazerem da água um caldeirão fervilhante. Das profundezas junto ao palácio de coral até a superfície agitada e nos céus como as gaivotas, Allihanna se estendia por centenas de quilômetros.

— A língua sente o sal e a garganta bebe a água — disse Oceano. — Mas as palavras se embaralham no fundo do mar, e nada ruge mais alto que as ondas.

Mas as gaivotas piaram furiosas, e os tubarões abriram suas bocas de muitos dentes, e surgiram vozes em animais que não deveriam tê-las, e até aqueles pequenos demais para serem visíveis arranjaram uma maneira de fazerem barulho. Allihanna gritou.

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— Ouça-nos, Oceano! Ouça-nos e verá que falamos o que é certo! Toda tempestade passa pelo mar!

E de fato, em resposta ao rugido monstruoso que deixou em pânico quase todos os habitantes daquele Reino, veio um maremoto. Montanhas de água que desafi avam tocar o céu se ergueram e caíram de novo; ilhas foram destruídas como folhas secas; milhares se afogaram e outros tantos foram simplesmente destroçados porque Oceano estava irritado.

Glórienn girava quase desfalecida, perdida em meio à fúria dos animais e das águas. — Seja apenas um, Oceano! — rugiu Allihanna. Sua presença ali crescia, e agora quase todos os animais que habitavam o Reino já eram ela. — Respeite Glórienn, que também é mãe de uma raça!

Em instantes, o mar infi nito se acalmou. A água mais uma vez plácida e transparente. As bolhas que turvavam a visão subiram ao ar acima, e o mundo foi sereno.

— Venham ao meu palácio — disse a água.

Glórienn sentiu o abraço de pai severo se desmanchar. Agora, ao seu redor, apenas o molhado frio. Allihanna permitiu que os animais fossem de novo eles mesmos, e muitos sofreram ao deixarem a magnifi cência da deusa.

Glórienn e o tubarão solitário rumaram ao palácio. Acharam-se nos corredores vastos e labirínticos, até um salão imenso mas tão despojado quanto era o resto. Esparramado sobre um trono disforme de corais e esponjas, estava um enorme elfo-do-mar, de longos cabelos de algas e um corpo meticulosamente esculpido. Sua pele azul retesada sobre os poderosos músculos relaxados não se escondia por trás de nenhuma veste. Certeza, vaidade e orgulho. Arpão e rede.

— Ouça-nos — disse, mais uma vez, Glórienn.

— Livre-se destes trapos, bela deusa — o elfo-do-mar sorriu com dentes de tubarão. — Aqui, as roupas só servem de adorno. E não vejo como farrapos podem adornar sua forma delicada.

Glórienn manteve o olhar nos olhos de Oceano e se desfez das roupas, que fl utuaram para longe. Sentia-se pequena, sentia-se frágil, tinha que lembrar a si mesma que, se não quisesse, não precisava sentir os desconfortos dos mortais, como o frio.

— Vê? — disse Oceano, sorrindo amistoso. — Adoto esta forma para lhe prestar tributo, Deusa dos Elfos. Allihanna, veja.

— Seus súditos não tiveram uma gota de respeito — falou Glórienn, devagar e com amargura.

— Se quiser, vou dá-los como escravos às sereias.

— Oceano! — interrompeu Allihanna. Ela se impacientava com aqueles modos copiados dos mortais civilizados. E embora tivesse exigido de Oceano uma forma mais amigável a Glórienn, não tinha nenhuma intenção de se perder em jogos artifi ciais. — Prometa-nos que não irá interferir com a chegada da tempestade.

O belo elfo ponderou por um momento.

— Não vejo porque fazê-lo — falou distraído. — Considere sua visita bem-sucedida. Glórienn piscou, incrédula. Pensava em ir embora quando um dos raios de luz que entrava pelo salão brilhou mais forte. Logo, a luz dourada se intensifi cou até que Oceano e Glórienn tiveram de cobrir os olhos, e Allihanna nadou para trás de uma formação de corais. Todo o salão se encheu de incandescência, e uma voz límpida saiu do meio da luz.

— Não faça isto, Oceano. Glórienn está cega de dor e ódio, e não vê que a tempestade destruirá nossa terra. Você pode impedi-la, Oceano.

Era como se um sol brilhasse dentro do palácio. Logo, a água estava tão quente que beirava o intolerável.

— Azgher — cumprimentou o Deus dos Mares.

— Você pode impedir a tempestade, Oceano — repetiu a voz. Cada sílaba era pronunciada com perfeição, num tom quase musical. Embora o som viesse do centro da área dourada, era impossível ver sua origem. Estar na presença daquela luz já era uma agonia aos olhos; olhar diretamente para ela cegaria um deus.

— Era disso que falávamos! — urrou Glórienn. — Ele é um dos que iria tentar dissuadi- lo. Não ouça o Vigilante, Oceano. Não ouça suas mentiras.

A luz brilhou mais forte.

— Senhora dos Elfos, eu vejo tudo, e nunca minto! E se venho até aqui é porque vejo que você causará a nossa morte.

— A morte de Ragnar! — Glórienn numa voz estridente. — A morte de Ragnar! A tempestade é uma arma, não vê?

— Eu vejo tudo — repetiu Azgher. — É você que está cega.

Glórienn estava nua, no meio de um palácio muito longe de seu domínio, protegendo o rosto da luz doída. Gritava para o elfo-do-mar oculto pelo brilho cegante, como uma criança desesperada. E, naquele momento, era quase o que ela era.

— Afogue o arauto da tempestade, Oceano. Engula-o com suas ondas.

— Ele não se importa com a Aliança Negra! — esganiçou Glórienn. — Porque fica no céu, apenas observa! Mas nossos filhos sofrem com ela! Ele não é pai, Oceano! Não pode entender!

— Allihanna — disse a luz. — Por que colabora com isso?

— Não estou aqui para discutir meus motivos — rosnou a Deusa da Natureza.

— Vá embora, Azgher! — Glórienn berrou de novo. — Leve seu olho e seu veneno embora daqui!

Naquele momento, não havia um habitante do Reino dos Mares que não estivesse louco de terror. A presença dos quatro deuses emanava, avassaladora, para todos os cantos; a raiva e os gritos divinos foram capazes de parar corações e matar centenas de puro medo. Em Arton, os mares rugiram, e vários navios foram tragados por tempestades súbitas.

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— Basta! — rugiu o mar. Mais uma vez, Oceano era tudo. Seus súditos se regozijaram por estarem de novo envolvidos no deus, e Glórienn mais uma vez foi abraçada.

— Diga para ele, por favor — choramingou Glórienn, mas foi o único som que se ouviu. Silêncio, fora o chiado das correntes. A luz estava mais contida.

— Não farei nada — decretou o mar. — Oceano, não — tentou Azgher.

— Chega! — uma tromba d’água lambeu as nuvens. — Eu não temo qualquer tempestade que possa atacar Arton. Que venha, ou não venha, a maré permanece constante.

— Será uma ameaça a todos nós — mas já havia um desapontamento derrotado na voz de Azgher.

— Atire uma fl echa no mar, e ele irá engoli-la. Golpeie o mar com uma espada, e ele voltará a se moldar. O mar sempre triunfa, porque a água se adapta a tudo. Não me importam os confl itos do mundo seco.

— Todos irão morrer — a luz ia diminuindo, retirando-se.

— Então cobrirei de novo os continentes, e começaremos a vida mais uma vez. O mar permanece.

— Você está errado, Oceano — disse Azgher, com uma dor perceptível na voz. — Tão errado.

— Continue observando! — esbravejou Glórienn. — E verá meu triunfo! A luz desapareceu. De repente, tudo parecia muito frio, escuro e sem graça. — Isso é tudo, Glórienn — disse o mar. — Já tem sua resposta.

Glórienn assentiu para uma direção aleatória (já que o elfo sumira) e se voltou para o tubarão. A voz do animal disse para que ela se fosse, e, assim, a senhora dos elfos nadou para fora do palácio de coral. Como uma criança que acabara de ganhar um machado.

Allihanna deixou a forma do tubarão e tornou-se de novo cada animal no Reino dos Mares. Permitiu que eles continuassem com suas atividades, espalhada por toda parte, enquanto ouvia o que Oceano tinha a dizer.

— Por que colabora com Glórienn? — chiaram as ondas. — Seus fi lhos vão morrer. Às centenas.

Com piados e movimentos de nadadeiras, os animais concordaram.

— Mas eles morrerão de qualquer jeito — disse uma enguia. — Sob Ragnar ou sob a tempestade, eles morrerão.

O mar avançou e recuou, assentindo.

— Se a tempestade de Glórienn for uma arma — cantou um golfi nho. — Então ela poderá deter Ragnar... E Megalokk.

Megalokk, o Deus dos Monstros. O inimigo de Allihanna. Aquele cujos fi lhos horrendos haviam atormentado e caçado os animais por milênios. Um aliado de Ragnar. Os medos de Allihanna fi caram, afi nal, claros para Oceano.

— Os animais morrerão às centenas, sim — continuou um polvo. — Aos milhares. Mas, por mais perigosa que seja, a tempestade pode ser detida. E Megalokk...

— As memórias ainda estão frescas, não é? — borbulhou Oceano.

Foram eras de dominação dos monstros. E há tão pouco tempo havia paz! Há tão pouco tempo podiam os animais correr livres! Já há muitos séculos acabara a dominação de Megalokk, mas, para um deus, parecia um piscar de olhos. E Allihanna, que sofrera mais do que todos, tinha ainda lembranças vívidas.

— Eu já fui como ela — disse Allihanna. — Eu já fui como Glórienn é hoje. E não desejo isto a ela.

— É estranho, mas há compaixão em você, Mãe Natureza. — Por isso não sou Megalokk.

Allihanna e Oceano se permitiram estar entranhados assim um no outro, por um tempo. Depois, a deusa foi embora.

Azgher, que tudo vê, já previra que seria aquele o resultado. Mas fora preciso tentar. Seu grande olho continuaria observando, e não poderia se fechar para os horrores que viriam. E, mais do que tudo, desejaria poder chorar pelo começo da morte do seu mundo amado.