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LONGA VIAGEM FOI O MELHOR DOS BÁLSAMOS. O GRUPO TEVE a chance de curar seus corpos e almas, atravessando Ahlen por mais de um mês, sobre cavalos e dentro de carroças, escoltados por soldados pomposos durante boa parte do caminho. A companhia dos homens uniformizados era estranha (após tantos haverem morrido pelas mãos dos aventureiros), mas por fi m as presenças ofi ciais foram descartadas como um inconveniente menor, e eles aproveitaram o prazer simples de estarem juntos. Até a fronteira de Ahlen houve a escolta, e depois eles foram deixados para si mesmos. As estradas ahlenienses eram um prodígio de construção e limpeza; as rodas das carroças rolavam suaves, e os cavalos caminhavam com facilidade.

— Os piores governantes fazem as melhores estradas — como dissera Senomar.

Senomar continuava com eles, e continuaria pelo menos até Cosamhir, a capital de Tyrondir e seu primeiro destino. A presença do bardo era refrescante, embora Artorius e Gregor fi zessem questão de não deixar os outros se sentirem muito à vontade com o novato. Ele, afi nal, tinha vendido a alma para um demônio. Estranho que fosse, Nichaela não parecia se importar muito com isso. Sua postura podia ser resumida à crença ferrenha de que, no fundo, Senomar era uma boa pessoa.

Vallen deixara crescer uma barba loira e desigual. Ele ainda era jovem, e isto fi cava muito evidente nos pedaços de pele rosada que os fi os dourados deixavam entrever.

— Ficou horrível — foi o veredicto risonho de Ellisa.

— Ele acha que isso vai fazer dele um guerreiro — disse Gregor.

Nada dava mais prazer a Vallen Allond do que a pura presença dos companheiros, e o fato de todos estarem relaxados o sufi ciente para fazer esse tipo de pilhérias. Ele levou Gregor ao chão em lutas amistosas de novo e de novo, a cada comentário jocoso sobre sua barba. Todos riam, e aquilo era mais o jogo de duas crianças, mas, por trás, podia-se ver dois lutadores extremamente capazes, e de igual habilidade.

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Durante aqueles dias, Vallen passava longas horas com Ellisa, cavalgando à frente do grupo em corridas e conversas infi ndáveis. Raras vezes os outros tinham visto o casal tão ferozmente unido, sempre uma mão tocando um ombro ou cintura, e ambos se agradando mutuamente, doces como gorad. Para grande irritação de Artorius, que considerava isso um risco, Vallen e Ellisa frequentemente desapareciam juntos para longe do grupo, indo voltar, muito sorridentes, depois de um longo tempo. O minotauro repreendia-os, dizendo que aquelas eram as oportunidades perfeitas para emboscadas.

— Desculpe, mas realmente não queremos ninguém montando guarda — ria Vallen. Mesmo assim, o mau humor de Artorius era raro, e ele, na maior parte das vezes, fazia parte do clima bom que havia — muito satisfeito pela volta inesperada de Gregor e por Nichaela estar em segurança. Achara em Kodai um amigo improvável, e os dois eram capazes de gastar dias envolvidos em conversas de estratégia, lâminas, armaduras e outras masculinidades. É claro, Artorius preferia não mencionar que já notara os longos olhares do samurai em direção a Nichaela. Nunca iria admitir isto, mas já considerava o estrangeiro um homem bom o sufi ciente para sua irmãzinha.

Nichaela ouvia com atenção as melodias simples e rápidas de Senomar, e Kodai era muito bom em esconder a grande irritação que isto lhe trazia. Às vezes deixava transparecer a má vontade para com o menestrel.

— As músicas são todas iguais — dizia.

— Tanto melhor — era Nichaela. — Assim, se você gosta de uma, gosta de todas. O outro ouvinte cativo de Senomar era Ashlen, que aprendera a apreciar boa música nas tavernas de Deheon, em uma adolescência raramente mencionada que sugeria muitos excessos. Ashlen e Senomar eram, de certa forma, muito parecidos — ambos bichos de cidades, trocando piadas e comentários crípticos que só faziam sentido para os dois. Não era que fossem conhecidos, ou falassem em algum tipo de jargão — apenas tinham um senso de humor muito semelhante e peculiar, que geralmente se perdia nos outros.

O único ensimesmado era Rufus, mas mesmo ele tinha o espírito nas alturas. Durante muito tempo o elogio de Vallen o sustentou, e ele foi capaz de reunir determinação para voltar a estudar, assim que conseguiu um novo grimório. Um livro precário, muito pior do que aquele que possuía antes, mas mesmo assim útil. E Rufus até mesmo treinava conjurar feitiços que não estivessem “memorizados duas vezes”, para não se aterrorizar tanto ante a falta de memória, e até mesmo esquecera o delicioso sonho de achbuld que tivera na estrada depois de Mergath.

Aqueles foram dias felizes. E duraram pouco, como apenas dias felizes são capazes de durar.

Gregor, depois de alguns dias, contara a história de sua volta ao mundo dos vivos. Acordara cercado de peixes um dia, e logo notara que não conseguia respirar.

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Uma Mansão em Cosamhir

— É impressionante o número de vezes que você pode se afogar antes de aprender a controlar seus refl exos — dissera.

Mas por fi m ele foi capaz de evitar engolir água demais e, mesmo com os pulmões cheios até a metade de água salobra, conseguiu, com muito esforço, nadar até a superfície. Foram outros tantos dias até chegar a uma praia, e muitos mais até que fosse capaz de andar e retomar o rastro dos companheiros. Infelizmente, ninguém é muito solícito com um estranho esfarrapado e comido por peixes.

O corpo de Gregor estava em estado deplorável, embora viesse a se curar (com a ajuda de Nichaela) no decorrer da viagem. A carne carcomida aparecia em muitos lugares, e o rosto era tão medonho que afastava mesmo os olhares dos amigos, e ele por fi m decidiu cobri-lo até que sarasse. Algumas cicatrizes e uma tosse duradoura foram as únicas marcas que Gregor Vahn levou de seus dias marinhos de afogamento constante.

— Th yatis olhava por mim — concluiu o paladino.

No início, Gregor não podia estar mais feliz com a sua volta ao grupo, e mesmo a dor horrenda das múltiplas feridas não era capaz de pesar seu espírito. Mas, à medida que se aproximavam de Cosamhir, e em especial depois que cruzaram a fronteira de Tyrondir e a viagem chegava ao fi m, ele se tornava cada vez mais taciturno. Os outros sabiam a razão (embora, é claro, Senomar e Kodai não soubessem, e o bardo não se privasse de fazer perguntas). Cosamhir era a cidade natal de Gregor, e lá ele havia deixado um passado que preferia ignorar.

— Vamos lá, o que é? — insistia Senomar. — Depois eu conto — mas nunca contava.

O clima tinha atingido seu pico de calor, e agora se preparava para esfriar de novo. O rosto de Azgher, o Deus Sol, estava brilhante e orgulhoso como nunca, pendurado em todo o seu esplendor redondo no céu. Era possível, durante a viagem, notar o gradual afastamento de Ahlen. As estradas fi cavam um pouco piores, as árvores fi cavam um pouco mais verdes, e por fi m eles foram atacados e tiveram de trucidar duas dúzias de bandidos gnolls, uma raça de homens- hienas de temperamento hidrofóbico e disposição traiçoeira. Os humanoides hostis eram uma das marcas que diferenciavam Tyrondir. Ao contrário do vizinho Ahlen, o “Reino da Fronteira” era marcado, desde seu início, por uma história de armas e guerra, em maior ou menor escala.

Tyrondir fi cava na fronteira entre Ramnor, o continente norte, onde se localizava o poderoso Reinado; e Lamnor, ou Arton-Sul, uma terra misteriosa onde reinavam os elfos e outros povos pouco conhecidos (ou assim se achava). Depois da Grande Batalha, o confl ito ancestral que expulsou de Arton-Sul os povos que viriam a migrar para o norte e formar o Reinado, Tyrondir se formou num território de disputas. Logo abaixo do reino, havia a poderosa Khalifor, uma cidade fortifi cada que se encarregara, durante muitos séculos, de barrar a volta dos exilados a Arton-Sul. Khalifor existia por uma razão simples e pouco amistosa, e isto não colaborara em nada para a amizade entre a cidade independente e o reino de Tyrondir. No entanto, com o tempo Khalifor passou a fazer parte do reino, de fato mesmo

que não em nome, e hoje em dia ninguém mais queria retornar a Lamnor. Os séculos haviam se passado, e o que havia no continente sul fora esquecido, e uma civilização maravilhosa fora construída ao redor de uma colossal estátua de Valkaria, a Deusa da Humanidade. Hoje em dia ninguém mais precisava de Lamnor, e Khalifor não precisava barrar a passagem de ninguém. Ou, pelo menos, assim se acreditava.

E Gregor Vahn se tornava mais sombrio, enquanto o sol atingia o seu ápice e começava a decair. O ano já ia morrendo e as torres espiraladas de Cosamhir já surgiam, enquanto o paladino se calava e obcecava-se em polir armas, armadura e escudo.

Quando o grupo adentrou os esplêndidos portões de Cosamhir, Gregor era um cavaleiro imponente e magnífi co, todo metal brilhante, com um pequeno mas orgulhoso estandarte de Th yatis a pender de seu cavalo branco. Só destoava seu rosto, que, por trás do cavanhaque bem-aparado, carregava uma expressão pesada de poucos amigos.

— Ainda não entendi — dizia Senomar. — Deixe-o — era a única resposta de Vallen.

E realmente era difícil entender. Nos portões de Cosamhir, Gregor tomou a frente do grupo, portando-se com altivez serena. Os guardas, vendo seu símbolo da Fênix, curvaram- se em respeito, permitindo a passagem do grupo sem nenhuma pergunta. Os cavalos dos aventureiros trotavam com graça pelas ruas calçadas da cidade, liderados pelo corcel branco de Gregor Vahn, e todos olhavam-nos como heróis. O paladino parecia exalar um brilho que se derramava sobre os companheiros, e era claro que, naquela cidade, ele era muito respeitado. Não que muitos soubessem o seu nome — Gregor, por escolha própria, passava a maior parte do seu tempo longe de casa, desde que se ordenara no serviço da Fênix — apenas o símbolo de Th yatis era o sufi ciente para comandar tanta admiração.

O culto a Th yatis, o Vitorioso sobre a Morte, era raro na maior parte do Reinado. A ressurreição e a profecia, os domínios do Deus Fênix, não eram elementos presentes na maior parte das vidas simples do povo e, portanto, o imponente deus não era lembrado em muitas preces. Contudo, em Tyrondir, por alguma razão, o nome da Fênix era muito evocado. Havia símbolos de Th yatis adornando lojas, abençoando casas, em mais de um templo. Talvez por viver na fronteira entre o velho e o novo, Tyrondir apreciava a doutrina de renovação da Fênix. Seus clérigos e paladinos (raríssimos) tinham mais do que uma ponta de satisfação em servir a uma divindade tão seleta — chamavam a si mesmos de “poucos e orgulhosos”. Mesmo assim, apreciavam Tyrondir e em especial Cosamhir, onde tinham um forte, um local onde eram respeitados e obedecidos, um lugar que poderiam chamar de lar, de onde quer que viessem. Menos Gregor, que era natural dali.

Ele foi rápido em instalar os amigos em uma boa taverna. Deixou-os descansando em camas de palha fresca e comendo para espantar a fadiga da viagem, enquanto empertigou-se (sem nunca tirar a armadura) e anunciou que tinha assuntos a tratar.

— De novo, que mistério é este? — disse Senomar.

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Uma Mansão em Cosamhir

— Vou com você — era Vallen, e ele aceitou. Não admitiu, contudo, mais ninguém. Os dois cruzaram a cidade colorida, repleta de aromas e visões curiosas, andando sem pressa sobre seus grandes cavalos. Passaram em silêncio por ruas largas e atarefadas; por distritos comerciais onde homens esforçados prosperavam; pela sede da guarda, cheia até as bordas de soldados efi cientes; pelo mercado imenso, onde muitos vendedores empurravam as maravilhas de seus produtos e onde um urso de chapéu dançava para a alegria das crianças, em troca dos Tibares das mães. Em silêncio. Quebrado por Vallen Allond:

— É sempre a mesma coisa, não é?

— Sim — disse Gregor, muito quieto. — Sempre a mesma coisa.

À medida que eles avançavam, as ruas fi cavam menos estreitas, mais vazias e agradáveis. As construções fi cavam maiores, e o burburinho animado diminuía. Eles avançavam e viam cada vez mais riqueza, numa zona afável e amena, onde até mesmo o sol parecia brilhar mais comedido. Sem notar, Gregor fazia o cavalo diminuir o passo.

— Podemos esperar um pouco, se você quiser — disse Vallen. — Parar em algum lugar para beber algo.

— Não — Gregor mal abriu os lábios. — Melhor acabar com isso de uma vez.

Foram vistos de longe pelos sentinelas postados frente ao grande jardim de uma casa opulenta, pintada de branco e dourado. Um dos guardas saiu, atabalhoado, para dentro da casa, enquanto Gregor deixava a cabeça pender.

— Rumo ao cadafalso — disse o paladino, numa ironia sem humor.

O sentinela restante, um senhor forte de meia-idade e olhos atentos, curvou-se quando os dois guerreiros chegaram próximos.

— Mestre Gregor — fez uma rebuscada mesura. — Nossos corações se enchem de alegria com a sua chegada.

— Olá, Th elgus — disse Gregor, sem prestar atenção. — Como tem passado?

Não esperou a resposta do guarda para cruzar os portões, feitos de fi nas barras de metal retorcido em padrões complexos. Desmontou e, em instantes, meia dúzia de jovens cavalariços estavam tomando conta dos dois corcéis. Mais um instante e havia uma ama gorducha a lhe dar as boas-vindas.

— Jovem Gregor! — dizia a mulher, com felicidade óbvia e genuína nos olhos. — Como nos alegra. Que bom que retornou.

— É só por alguns dias, Lenora — disse Gregor, e Vallen pôde notar carinho verdadeiro (embora relutante) no rosto do amigo.

— E o senhor é mestre Vallen, não é mesmo? — continuou a mulher, mal conseguindo conter o sorriso no rosto bochechudo. — Irei preparar algo para comerem, imediatamente!

Vallen sorriu e falou alguma amenidade, e os dois continuaram por um caminho de imaculadas pedras cinzentas, que cruzava o jardim verde brilhante. A mulher saiu apressada, confundindo-se com as muitas dobras do vestido de ama. À frente, a porta principal se abriu.

— Sabe que, quando garoto, eu nunca entrei por esta porta? — disse Gregor, súbito. — Nem uma vez sequer. Usava a entrada dos empregados.

— Corra atrás de Lenora. Ela foi por lá — Vallen tentou um comentário leve. A mulher já havia sumido por uma entrada lateral.

— Eu já corro atrás de você, Vallen — havia um travo amargo na voz de Gregor. — Corro atrás de você para escapar desta casa.

Cruzaram a porta aberta para adentrar uma sala imensa, inteiramente decorada em ouro e seda, com janelas gigantescas de vidro transparente, por onde o sol entrava em abundância.

— Mestre Gregor Vahn! — a voz de um servo anunciou o nome com um entusiasmo estridente e exagerado. — E companheiro!

Uma pequena (mas feroz) horda de empregados cercou os dois aventureiros, recolhendo suas armas. Estranhamente, Gregor sentia mais vontade do que nunca de ter uma boa espada e um escudo, mas os equipamentos desapareceram por uma das muitas portas laterais, para uma ala da mansão longe da vista.

Gregor ignorou as muitas atenções desmedidas do batalhão de serventes uniformizados, parando para cumprimentar e chamar pelo nome apenas alguns poucos, invariavelmente idosos. Vallen tentou manter a boa educação. Seguiram no que parecia uma jornada sem fi m, atravessando a sala encharcada de sol para um corredor largo que se abria para diversos cômodos. Toda a casa era clara ao extremo, mas em nenhum ponto os muitos candelabros ornamentados estavam acesos. Um cheiro suave de fl ores, incensos e limpeza permeava todo o ambiente, e havia muitos ambientes amplos e cantos confortáveis e convidativos, cheios de sofás e almofadas. Mesmo assim, quem olhasse para o rosto de Gregor pensaria que ele entrava na pior das masmorras.

Seguiu, dois passos à frente de Vallen, até chegar a uma biblioteca imensa com um pé- direito mais alto que dois homens, as paredes forradas de estantes. Havia poltronas e pequenas mesas, quase todas preenchidas por livros empilhados. A madeira era de um marrom escuro e grave, enquanto que tons de carmesim e vinho faziam os tecidos estofados. No centro daquele ambiente estava uma cadeira altiva e pouco confortável, onde se sentava uma senhora de aparência distinta. Embora fosse claro que já avançava em anos, a mulher conservava uma beleza elegante. Bebericava um licor, e, embora estivesse cercada por livros, não lia nada.

— Senhora — disse Gregor, mal conseguindo disfarçar uma careta.

— Meu fi lho — disse a mulher, com um sorriso calculado. — Seja bem-vindo.

— O marido de sua irmã comprou mais uma oficina de vidreiro — disse lady Helen Vahn, a mãe de Gregor Vahn, entre um gole e outro de uma bebida forte. — Está realmente prosperando.

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Uma Mansão em Cosamhir

— Que bom, mãe — disse Gregor.

Estavam os três sentados na biblioteca. Vallen já estivera aqui, e já ouvira as reclamações incessantes do amigo — lady Helen detestava livros e mal sabia ler, mas gostava de fi car na biblioteca, para que uma eventual visita a encontrasse lá e pensasse bem de sua cultura. Como de hábito também, lady Helen tinha um copo na mão, embora fosse apenas o meio da tarde.

— Acho que ainda não me apresentou seu amigo — disse a mulher.

— Sim, já o apresentei, mãe — respondeu Gregor, cansado. — Este é Vallen. Já esteve aqui duas vezes.

— Claro — lady Helen afetou. Estava evidente no rosto dela que se lembrava muito bem de Vallen. — Desculpe-me.

Vallen sorriu. Houve um silêncio desconfortável. — Quer beber algo, meu fi lho? Mestre Vallen? — É o meio da tarde, mãe. Ninguém bebe a esta hora.

— Desculpe-me então — Helen Vahn fi ngiu um riso divertido, largando o copo. — Meu fi lho é muito severo, não é mesmo?

Vallen apenas assentiu, constrangido.

— Como eu disse, o marido de sua irmã já possui quatro ofi cinas. São mais de vinte vidreiros trabalhando para ele.

Gregor resmungou alguma coisa.

— Tenho certeza de que haveria uma vaga para você em uma delas. — Mãe — começou Gregor.

— Quer dizer, não como um empregado comum. Afi nal, você é um Vahn. — Mãe.

— Rainer poderia fazer de você um sócio algum dia. — Mãe! — o paladino interrompeu com um grito.

Helen Vahn olhou para o fi lho com condescendência, esperando o que ele tinha a dizer. — Sou um guerreiro sagrado. Eu sirvo a Th yatis. Não serei um vidreiro.

— É claro que não — sorriu lady Helen. — É bom demais para isso.

— Não foi isso que eu quis dizer — tentou Gregor, mas logo desistiu, deixando a voz morrer em um resmungo baixo.

Mais um silêncio, durante o qual a distinta senhora continuou atacando a garrafa em goles comedidos.

— O pai de Gregor é dono de ofi cinas de vidraçaria, assim como meu genro — disse Helen, na direção de Vallen. — E você, Vallen? Qual o ofício de seu pai?

— Provavelmente mercenário ou bandido de estrada — disse Vallen, com toda a educação que conseguiu reunir. — Nunca o conheci. E minha mãe era prostituta. Disse que meu pai nunca pagou pelo serviço.

Seguiu-se uma conversa hostil e inócua, e Gregor parecia estar sendo torturado. Por fi m, os dois aventureiros foram convidados (quase à força) para jantar na casa. Tiveram uma hora e pouco sozinhos, enquanto lady Helen Vahn arrumava-se para a janta e mandava um garoto chamar Jezebel, sua fi lha, e Rainer, seu genro. Gregor aproveitou para desfrutar de uma das únicas coisas que lhe agradava naquela casa inamistosa: a sauna de vapor fervente. Era um luxo apenas de nobres ou dos burgueses mais ricos. Ele e Vallen suavam no aposento repleto de vapor opaco.

— Não é verdade, é? — disse Gregor. — O quê?

— Sobre seus pais.

— É verdade — Vallen deu uma minúscula risada. — Mas nem por isso você tem o direito de xingar a minha mãe.

— Desculpe.

— Pare de afetações — Vallen desferiu um soco brincalhão no enorme ombro do amigo. — Você já fez coisas bem piores comigo do que perguntar sobre minha mãe prostituta e meu pai inadimplente.

— É que apenas... — hesitou um pouco. — Eu não sabia. — Quase ninguém sabe. Só Ellisa e Nichaela. E Rufus. — Rufus? — surpreendeu-se Gregor.

— É uma longa história. Eu não escolhi contar para ele. — E agora eu.

— E agora você. Não precisa espalhar para os outros. — Certo — disse Gregor, pensativo. — Está bem.

Ambos fi caram em silêncio por um tempo, digerindo novas informações.

— Acho que todos nós temos algum podre no passado, não é mesmo? — disse Vallen, de repente. — Ninguém entra nesta vida porque quer.

— Menos Ashlen — disse Gregor. — Ele está nessa por diversão. — Menos Ashlen — concordou Vallen.

— Ainda assim, há aqueles que querem ser heróis. Eles estão na estrada por querer.