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Cinquenta e cinco cadáveres andando

Para a surpresa geral dos mais desconfi ados, o rapaz tinha boa desenvoltura na vida de estrada, e não atrasou os novos companheiros. Senomar também não tinha grandes motivos para segui-los, mas parecia ter apreciado a companhia do grupo, e decidira ajudá-los em troca da ajuda que recebera em Ahlen.

— Não nos deve nada — sentenciou Artorius. — Está livre para seguir seu caminho! — Ah, mas eu insisto — dizia Senomar, com prazer e um sorriso que mal cabia no rosto magro.

Muitos dias se passaram em mais esta viagem, e, por instinto, todos secretamente desejavam uma oportunidade de pegar em armas. O longo período de tranquilidade dava a impressão de que os deuses estavam provocando-os para que se descuidassem, apenas para então despejar-lhes outra surpresa ruim.

Não chegou a haver surpresa: Ellisa viu de longe a primeira quebra da monotonia. — Um acampamento — disse ela. — Talvez cinquenta homens.

De fato, ao longe, as fogueiras, as tendas, o burburinho e o fedor que denunciavam a presença de um pequeno exército.

O melhor e o pior dos homens afl orava na vida de claustrofobia ao ar livre de um exército em marcha. Por um lado, geralmente os soldados se tornavam irmãos; capazes de ações improváveis e impensadas uns pelos outros. Realizavam, em defesa dos companheiros, façanhas que nunca teriam feito pelas próprias famílias, quando no clima inebriante do batalhão. Bêbados de lealdade, os soldados diziam que nenhum vínculo é maior do que aquele dos irmãos em armas. E eram irmãos em armas homens que, sem as armas, talvez nem dignassem um olhar uns para os outros. Por outro lado, o grande ajuntamento de pessoas que viviam pela espada — pessoas que, com raras exceções, tinham a rudeza e belicosidade comuns à vida de lâminas — produzia uma quantidade assombrosa de dejetos morais e físicos. Um exército em marcha era um bando de irmãos leais e bravos, sim — mas também era um bando de homens que bebiam muito e procuravam lutas, homens que viam as caras uns dos outros até não as suportarem mais, homens que enchiam os campos de imundície e que atraíam prostitutas, bandoleiros e até mesmo um ocasional vendedor de alucinógenos.

Um exército em marcha era portanto um ninho de bravura e obscenidades, e um exército que não via um inimigo há muito era um ninho de violência latente e medo imaginado. Este era o caso do pequeno grupo que os aventureiros tinham encontrado.

Vallen fez-se notar em cima de uma colina, e os primeiros sentinelas já deram a notícia ao resto do acampamento. Os demais aventureiros juntaram-se a ele, e, com um certo alívio, viram um alto estandarte de Th yatis ser erguido às pressas, no meio da confusão de tendas e homens desocupados.

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Gregor deu um largo sorriso.

— São homens de valor! Estão sendo liderados por um servo da Fênix.

Liderou os companheiros descendo a colina com pressa, o cavalo branco galopando. Da parte do acampamento, uns quatro soldados se destacavam, tentando parecer garbosos, enquanto recebiam repreensões gritadas de um cavaleiro que terminava de ajeitar as últimas partes da armadura da placas. Gregor estava animado porque, após sair do ambiente infecto de sua família, caíra agora em um local de esperada camaradagem. Paladinos e outros servos de Th yatis muitas vezes lideravam tropas do regente de Tyrondir, e, sob as bênçãos do Deus da Ressurreição, os homens tinham a fama de adquirir coragem espantosa e vigor imorredouro. Ainda mais que os outros aventureiros, Gregor ansiava por um combate, e a perspectiva de seguir um grupo como aquele prometia muitos inimigos e vitórias gloriosas.

Após terminar de ajustar a armadura pesada, o cavaleiro galopava rumo a Gregor. Os dois se encontraram bem no meio de uma planície tostada pelo sol, enquanto os aventureiros se aproximavam com calma e os soldados esbaforidos carregavam o estandarte pesado, tentando chegar logo ao seu líder.

— Roderick Davranche! — anunciou-se o cavaleiro, em cima de seu corcel irrequieto. — Paladino de Th yatis e capitão do exército de Tyrondir. Comandante destas tropas.

— Gregor Vahn! — e um pequeno riso de desdém. — Paladino de Th yatis que não precisa de títulos pomposos nem empregos preguiçosos no exército.

Os dois homens desmontaram (ambos com certa difi culdade por causa das armaduras) e caminharam lentamente até estarem a dois palmos de distância um do outro. Atrás, aventureiros e soldados se entreolhavam, incertos.

— Quem não tem coragem para a vida de exército não deveria falar tão grosso — disse Roderick Davranche. — Você é um aventureiro; vá salvar princesinhas e procurar artefatos mágicos. Vá se enfi ar em masmorras e deixe a luta para os homens de verdade.

— Posso me enfi ar em masmorras — respondeu Gregor, alto para que todos ouvissem. — Mas não me aventuro dentro de sua barraca, tamanho é o fedor!

Ambos deram uma gargalhada simultânea. Em seguida, puxaram-se para um abraço bruto e carinhoso, e o metal das duas armaduras explodiu em clangor. Houve um suspiro de alívio por parte dos aventureiros e soldados.

— Gregor Vahn! — exclamou Roderick, com prazer inconfundível na voz grave. — Seu patife miserável! Finalmente retorna para servir ao seu reino?

— Ainda não, meu bom arremedo de guerreiro — riu Gregor. — Quando quiser engordar e mofar em ócio, como você, virei me alistar no exército.

Mais uma vez se abraçaram, felizes como duas crianças. A esta altura, os quatro soldados que seguiam Roderick já se postavam a poucos metros, ofegantes, e os aventureiros olhavam aquilo com diversão.

— Doze — disse Roderick Davranche.

— Perdedor! — Gregor mostrou os dentes. — Dezesseis. Roderick soltou um urro.

— Isso não é possível! Bem, mesmo sendo provavelmente mentira, lhe devo um barril de cerveja.

Do alto de seu cavalo, Ashlen não entendia nada.

— Sobre o que eles estão competindo? — perguntou, para ninguém em específi co. A voz de terremoto de Artorius veio, pouco abaixo:

— O número de vezes em que morreram.

— Venha, meu caro Gregor Vahn — exclamava Roderick. — Seja bem-vindo o seu traseiro covarde e o de seus amigos! Venham conosco ao acampamento, ao menos para comer um pouco de lavagem.

E, após gritar algumas ordens para os soldados, andou, com Gregor ao lado, ambos falando sem cessar. Mais atrás, os aventureiros seguiam. Entraram todos no acampamento, e sentiram o calor das fogueiras, viram o emaranhado das tendas, ouviram o burburinho dos homens e cheiraram o fedor das imundícies. Estavam em um exército.

Os homens daquele exército não bebiam muito. Não havia prostitutas acompanhando-os. A disciplina se mantinha, mesmo após muitos dias sem batalha. Isso podia ser algo bom, um sinal de liderança forte e aderência rígida à conduta militar. Ou podia ser sinal de pura inexperiência.

— Olhe, são crianças — disse Masato.

Eram crianças. Os aventureiros se sentavam junto a Roderick Davranche, sob uma lua tímida e amarela, comendo uma ração modesta enquanto ouviam seu relato. À volta, os soldados; crianças. De fato, aqueles eram rapazes tão ou mais jovens quanto Ashlen, e a maioria, claramente, não sabia usar direito as armas que carregava. Destacavam-se dois homens mais velhos, um deles bastante gordo e cansado, o outro manco de uma perna, que faziam as vezes de ofi ciais naquele bando de guerreiros verdes. No meio do grupo precário, o imponente Roderick era alvo de incessantes olhares bobos de admiração.

— Somos cinquenta e seis ao todo — dizia Roderick. — Apenas quinze ou vinte já viram combate. Estou aqui para transformá-los em homens.

Os aventureiros, em especial os mais aptos em armas, achavam incerta uma tal transformação. Embora lembrassem muito bem de quando eram tão patéticos quanto aqueles garotos, nunca haviam sido (ou não admitiam haverem sido) tão desprovidos de talento. Os soldados não cuidavam direito das armas, deixando lâminas enferrujarem e armaduras de couro mofarem. Ou, ao contrário, tinham tamanha devoção pelos equipamentos que carregavam- nos o tempo todo, fi cando exaustos sem necessidade depois de poucas horas. Não tinham a

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malícia de militares calejados, o que, embora signifi casse muito entusiasmo juvenil e esperanças largas, também signifi cava pouca efi ciência real. Ao invés de aliviarem os temores com vinho e mulheres, mantinham-se em um perpétuo estado de vigília tensa; o que seria muito bom se pudesse ser sustentado. Mas, invariavelmente, os corpos e almas jovens fraquejavam.

Como todos os jovens, tinham muito medo, e achavam que todos os outros não o tinham. Cada um deles era uma ilha de incertezas, e, temendo a reação dos outros, fi ngia estar seguro de si. Assim nasciam bravatas tolas e mentiras frágeis, e os que tinham a maior boca acabavam mais respeitados. Procuravam apoio nos ofi ciais, mas apenas Roderick Davranche era um exemplo luminoso. Os outros dois veteranos tinham amargura demais, e ânimo desmaiado. Serviam apenas para ensinar aos jovens as coisas perniciosas: pequenas indolências, pequenas covardias, maneiras furtivas de evitar o trabalho.

Assim, sobre os ombros do capitão Roderick Davranche repousava a segurança e o caráter de cinquenta e cinco homens moles. Tarefa que, a bem da verdade, ele desempenhava com galhardia.

— Estamos caçando goblinoides — continuava o capitão, sob a lua tão jovem quanto seus homens. — E vocês?

— Caçamos um albino — respondeu Gregor. — Parece mais fácil.

Davranche era todo força e certeza. Seu crânio ossudo era apoiado por um largo queixo quadrado, que sugeria coragem. Tinha os cabelos muito rentes, emendados com uma barba do mesmo comprimento, meticulosamente desenhada. O rosto era de traços francos e pouco sutis, com emoções claras e sorriso fácil; tinha-se a impressão de ver-lhe a alma e o caráter nos grandes olhos verdes. Sua voz era alta e redonda. Como muitos paladinos do orgulhoso Th yatis, era um homem de modos exagerados e atitude confi ante. Era um bom líder e comandava respeito e admiração de todos, embora falasse sempre em palavras simples. E era, até o tutano dos ossos sólidos, um guerreiro. Discorria sobre armas e combate, exultava na batalha e desprezava sutilmente quem via como fraco. De alguma forma, lembrava muito Artorius, a quem de pronto cativou.

— Então isto é apenas uma patrulha? — disse o minotauro, que quase competia com Gregor pela atenção do novo amigo.

— Não. Estamos caçando um bando específi co, que vem atormentando as regiões vizinhas. Como somos poucos, tentamos ser discretos, mas os desgraçados logo fugiram.

Estavam todos à volta de uma fogueira, uma das muitas que havia por todo o acampamento. Gregor, Artorius, Ellisa e Masato se amontoavam, próximos a Roderick. Os demais, sem tanto interesse nas artes da guerra, haviam formado seu próprio grupo. Vallen havia surpreendido a todos, desprezando aquela conversa de lâminas, mas dissera estar farto de planejar lutas. Encarregara Ellisa de fazer quaisquer perguntas relevantes e embrenhara-se em assuntos mais amenos. Além disso, decidira fi car de olho em Nichaela.

O que se provara desnecessário, já que os jovens soldados, vendo o amarelo e verde de Lena, derramavam-se em respeitos desmedidos para com a clériga. A presença de um clérigo em um exército era muito valorizada, pois acreditava-se que as bênçãos dos deuses respingariam sobre aqueles a quem o clérigo acompanhava. Uma clériga de Lena, em especial, era vista como um ótimo agouro (por estranho que parecesse), em especial com soldados jovens. Afi nal, mais do que tudo os soldados desejavam viver.

Senomar cantava e dedilhava o alaúde, Vallen conversava com Ashlen e Rufus, e Nichaela curava um ou dois ferimentos menores nos soldados hesitantes (resultados de acidentes, pois ainda não houvera combate). Logo, Nichaela sentou-se junto aos outros e interrompeu:

— Vallen, podemos seguir com eles?

Vallen Allond, que esvaziava o cérebro com uma conversa sem importância, voltou sua atenção à clériga:

— Temos uma missão. Você sabe. — Estamos indo para o sul.

— Está certo, talvez possamos segui-los, se eles forem para o sul. — Estão indo. Eu perguntei.

Vallen olhou-a por um momento. — Por que quer segui-los?

— Porque eles precisam — disse Nichaela.

Vallen era o líder, mas a sabedoria simples de Nichaela quase sempre era ouvida, e ela sabia disso.

— Certo — decidiu o guerreiro. — Vamos segui-los — o albino era uma preocupação constante, mas apressar-se parecia, de alguma maneira, pouco efi ciente. O fugitivo sempre fora bom em despistar-lhes, por mais que corressem e deixassem tudo de lado. Por que não ajudar alguém no caminho?

E, sob uma lua fraca, por decisão de Nichaela, começaram o que seria sua curta vida de exército. Também começavam a rumar para o desastre, mas não havia como saberem disso, e talvez seja melhor que nós também não saibamos ainda.

— Eles são muito jovens, Vallen, veja como são jovens — dizia Nichaela, montada em seu cavalo, acompanhando, ao lado de seu líder, as cinco dezenas e meia de soldados. — Alguns nem sabem segurar as armas direito. Veja aquele — apontou um rapaz imberbe e esmaecido. — Vai fi car com bolhas nas mãos, agarrando o cabo da espada daquele jeito.

Fazia pouco mais de dois dias que eles marchavam junto a Roderick e os cinquenta e cinco soldados de Tyrondir, mas Vallen já se arrependia. Grupos grandes eram lentos, e a distância que seria facilmente percorrida com dez homens virava um desafi o de fôlego e paciência

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quando se tinha o quíntuplo. Vallen quisera, mais de uma vez, separar-se daquele exército lamentável e voltar a seguir o rastro fresco do albino, mas Nichaela e Gregor insistiam para que continuassem ali. A clériga apiedara-se dos soldados-crianças, e o paladino desfrutava da companhia de um antigo amigo, que se ordenara junto com ele no serviço a Th yatis.

Podia-se ver com facilidade porque Gregor Vahn e Roderick Davranche eram próximos: ambos eram muito parecidos. Criados em famílias ricas, haviam, ao mesmo tempo, decidido abdicar dos confortos para uma vida de difi culdades e glórias em nome da Fênix. Embora Davranche não sofresse as mesmas agruras familiares de Gregor, era capaz de entender pelo que passava o amigo. Isto dava a Gregor a oportunidade rara de se abrir em uma torrente de reclamações e memórias ruins, que servia para lavar a alma. Gregor e Roderick haviam ingressado nos treinamentos para a ordem de Th yatis juntos e sozinhos, pois há vários anos não surgiam jovens com a vocação. Tiveram anos de estudo e prática com armas juntos, apenas os dois, e isso servira para transformar-lhes de colegas em irmãos. Seus caminhos haviam divergido mais tarde, mas o vínculo permanecia. Embora os aventureiros vivessem o presente e o futuro junto a Gregor Vahn, Roderick tinha vivido com ele o passado.

Naqueles dois dias, Roderick havia explicado com mais exatidão a demanda de suas tropas verdes. Caçavam um grande bando de goblinoides, que há meses saqueava e aterrorizava a região, e esperavam encontrar as criaturas dentro em breve, pois haviam pego seu rastro, levando para sul, pouco antes de se encontrarem com o grupo. Embora, como se sabia, humanoides hostis nunca houvessem sido raridade em Tyrondir, sua incidência aumentara nos últimos anos.

— Dizem que há um exército organizado dos monstros em Lamnor — explicava Roderick. — Dizem que estes bandos são apenas os primeiros batedores. Dizem que, em breve, Khalifor será tudo o que segurará uma invasão em massa. Bobagens, é claro.

Segundo Roderick Davranche, as histórias sobre um exército goblinoide eram improváveis e exageradas. A cidade de Khalifor, ressentida há muito com Tyrondir e o Reinado, periodicamente inventava falácias semelhantes, tentando arrecadar mais dinheiro e tropas. Roderick afi rmava — e todos concordavam — que os goblinoides eram caóticos demais para sustentarem uma organização daquele tipo. As diferentes raças lutavam entre si o tempo todo, e dentro de cada raça enfrentavam-se as tribos. Mesmo dentro de pequenos núcleos os monstros disputavam entre si o poder. A ideia de que todos se unissem numa frente organizada era risível. Tudo aquilo era um exagero, um boato que crescera como bola de neve porque as criaturas andavam um pouco mais ousadas e numerosas.

— E não é arriscado enviar homens tão jovens nesta missão? — disse Vallen.

— Esta é a missão ideal para eles — refutou Davranche. — É exatamente o que eles precisam para pegar gosto pela batalha: um combate grande e fácil, de onde possam tirar muitas glórias. Estes palermas — falou afetuosamente, fazendo um gesto que cobria todo o exército. — podem ser jovens, mas têm a disciplina de todo soldado de Tyrondir. Goblinoides, por sua vez, são covardes e desordenados. Nada podem fazer ante uma parede de escudos bem-montada.

Nichaela não tinha tanta confi ança:

— Eles precisam de ajuda, Vallen — insistia, longe dos ouvidos de Roderick. — Eles não bebem, não há mulheres! Você já viu um exército sem mulheres, Vallen? Todos estão tensos como cordas de arco.

Vallen sempre fi cava desconcertado ao ouvir Nichaela falando daquele jeito. Ele e os outros se preocupavam tanto em proteger a clériga que por vezes se esqueciam de que ela entendia e aceitava muito bem os fatos menos poéticos da vida.

— Eles precisam de prostitutas, Vallen!

— Por favor, não fale mais sobre isso — implorou o guerreiro.

Continuou Vallen assim duplamente atormentado, e passou-se mais um dia inteiro de tensão. Até que a tensão se quebrou, a corda se partiu, os homens, em um misto de alívio e desespero, estalaram de surpresa.

Um planalto. Um bosque. Uma centena de goblinoides. Uma armadilha.

— Recuar! — gritou Roderick Davranche. — Recuar, maldição! Recuar!

Já virava o enorme cavalo nervoso, berrando dentro da armadura prateada. Os homens, fi nalmente, haviam fraquejado. Os dias de inútil disciplina rígida tinham cobrado o seu preço, e a maioria estava surpresa e apavorada pela presença súbita do inimigo. Depois de privarem- se de alívio e diversão por muito tempo, os soldados não eram capazes de manter a mente clara agora, quando precisavam. Muitos corriam em direções aleatórias, outros simplesmente gritavam ou choravam. De qualquer modo, menos da metade fazia uma retirada em ordem — a única coisa que garantiria uma chance maior de sobrevivência.

Choviam flechas, grossas como cabos de vassoura. Do alto do planalto, uma algazarra medonha de vozes guturais e inarticuladas. Alguns soldados de Tyrondir pegavam os arcos para devolver o fogo, contrariando as ordens. Logo uma enorme correria se fez no alto da elevação, e, com uma nuvem de poeira, uma onda de goblinoides uivantes investiu sobre eles.

— Recuar, maldição, recuar! — gritava Roderick. Por fi m, e a muito custo, recuaram.

Os soldados conseguiram se agrupar em algo que lembrava colunas ordenadas, e desistiram de tentar salvar os desajeitados carros de boi que transportavam toda a comida e equipamentos. Foi uma corrida feia e vergonhosa, até que o pequeno exército estivesse fora do alcance das fl echas, e por todo o caminho, como frutas podres, foram caindo soldados mortos.

Os goblinoides que tinham investido pararam no meio do caminho, gargalhando do medo dos inimigos. Aquela carga não tivera o objetivo de matar, mas de amedrontar, desmoralizar.

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As bestiais criaturas zombavam dos soldados em fuga, berrando impropérios (felizmente em sua própria e desconhecida língua), fazendo gestos provocativos e agarrando os órgãos genitais.

A última fl echa descreveu sua trajetória longa, vinda do alto do planalto, e se cravou a uma boa distância das tropas aturdidas. Roderick liderara os homens até a cobertura de algumas árvores esquálidas. Enquanto os homens se reagrupavam, gritava ordens e impropérios.

Vallen rapidamente contou seu grupo: continuavam todos lá.

Roderick demoraria muito mais para estimar suas baixas. Chamou seus dois ofi ciais e todos os aventureiros, e convocou um conselho de emergência.

— Muito bem, o que faremos? — disse, meio perguntando e meio pedindo.

— Vamos lutar! — rugiu Artorius, o olhar rubro pela proximidade e distância da batalha. Ante as palavras do minotauro, houve um desânimo. Ao longe, os goblinoides arrastavam as carroças, matando os bois e tomando as provisões e equipamentos. Roderick olhava as criaturas roubando sua sobrevivência, sem temer qualquer possível retaliação. Sua cabeça parecia girar.

— Vamos atacá-los! — exasperou-se. — Não podemos fi car sem comida.

— Os homens não estão prontos — objetou um dos ofi ciais, o que era manco. De fato, olhando-se em volta via-se garotos, e nenhum soldado.