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O Cação Cego

59 O Cação Cego

iluminar direito a cidade: tudo por lá tinha um tom fosco de madeira podre e escamas de peixe, que resistia ao brilho de Azgher. O único efeito da luz do meio da tarde era aumentar a força do fedor e fazer brotar um suor cinza do povo hostil de Var Raan. Quase todos tinham roupas maltrapilhas, e até as crianças pareciam velhos.

Nada disso importava a Vallen Allond. Ele só notava que um número incomum de aldeões portava armas.

Dividiram o grupo. Enquanto a maioria foi percorrer o pequeno mercado atrás de suprimentos, Vallen, Ellisa e Ashlen entraram num dos tais prédios de pedra feia que abrigavam tipos insalubres. Artorius e Gregor haviam insistido em se juntar a eles, mas Vallen apenas disse:

— Vocês dois não vão gostar do que nós vamos ter que fazer por lá — e estava decidido. Lá dentro, diversos homens bebiam em silêncio ou grunhidos. Alguns jogos de azar eram disputados sob olhos atentos e alguns Tibares trocavam de mãos, sem que sua origem ou fi nalidade fosse questionada. A luz era fraca, o cheiro era de respiração suja e não se via o lado de fora pelas janelas escurecidas.

— Era tudo que eu esperava — disse Ashlen em voz baixa. — Procurem por um homem com perna de pau e tapa-olho!

Vallen e Ellisa não riram. Embora aquela fosse realmente uma taverna saída de histórias de piratas para assustar criancinhas, isso não era engraçado. Piratas de histórias riam e bebiam rum, e faziam andar na prancha. Piratas de verdade matavam os homens e estupravam as mulheres.

Aproximaram-se do balcão e pediram três doses de aguardente. O taverneiro, um homem de muitos pelos e poucos banhos, olhou-os por um momento e despejou as bebidas em pequenos copos sujos, sem falar nada. Ellisa sentiu os olhos em seu corpo, e dois homens em particular que prestavam muita atenção. Os dois comentaram algo em voz baixa rasgada e depois explodiram em riso. Ela não dirigiu o olhar para eles, apenas tocou com calma na espada que carregava na cintura. Houve mais comentários, desta vez em voz mais alta, e Ellisa, Vallen e Ashlen puderam ouvi-los claramente.

Diferente de Artorius, Vallen e até mesmo Gregor, Ellisa não gostava de lutar. Para ela, as armas eram um meio para um fi m. Não sentia o estouro de felicidade no começo de uma batalha, como os homens falavam. Para os que viviam a luta, havia um momento, logo após o temor maior, quando o combate se mostrava inexorável e o corpo, ignorando os apelos de cuidado da mente, era tomado por uma onda de frenesi, e os guerreiros entravam em um estado abençoado de abandono. Era quando as armas passavam a ser continuações dos braços, quando as pernas se moviam com rapidez desconhecida e quando nada ocupava o cérebro. Um combate poderia durar poucos minutos, e tinha-se a impressão de que haviam se passado horas. Tudo o que se via eram borrões e lembranças fugazes de cenas desencontradas na luta. Era realmente uma bênção, pois os que morriam em batalha não tinham tempo para

o desespero, e partiam com surpresa e rapidez misericordiosa. Contudo, Ellisa Th orn não sentia nada disso. Na luta, ela era sempre consciente e metódica. Não entendia, embora não desaprovasse, como botar a vida em risco podia ser prazeroso. Ela sabia que, por melhor que fosse o guerreiro, metal afi ado era sempre metal afi ado, e mesmo um aldeão bêbado podia ter um golpe de sorte. Para ela, era muito melhor uma posição segura e um ou dois tiros certeiros. Não que fosse covarde, apenas tinha muito a perder.

Por tudo isso, Ellisa escolheu ignorar os comentários dos clientes imundos da taverna. Sabia que Vallen, se pudesse, gostaria de esfregar a cara dos dois desgraçados no chão, mas a última coisa que eles queriam em Var Raan eram problemas. Além disso, e Ellisa sabia muito bem, uma aventureira estava fadada a ouvir com frequência comentários que fariam uma dama desmaiar.

— Onde podemos arranjar um barco? — disse Vallen ao taverneiro, empurrando uma pequena pilha de moedas.

O homem olhou-os mais uma vez. Tinha um olho verde escuro e o outro azul, mas totalmente coberto por uma película branca grossa. Era quase impossível ver a cor por baixo da membrana leitosa. Por fi m, respondeu:

— No mar — e empurrou de volta os Tibares.

Os três se entreolharam. Ashlen deu um aceno imperceptível com a cabeça e foi até uma mesa no fundo do salão, começando uma conversa de monossílabos com três sujeitos picotados de cicatrizes. Esperava arrancar deles algo mais útil.

— O dinheiro está farto, homem? — disse Vallen, aumentando a pilha de moedas. — Não precisa de mais?

O taverneiro, mais uma vez, mirou o ouro no balcão. Fungou com grande ruído. — Procurando perder os olhos, forasteiro? — disse simplesmente, e voltou a esfregar um copo com um pano enegrecido de sujeira.

Ashlen, tentando entreter seus colegas de mesa com uma história dos bordéis de Valkaria, roubou um olhar inquieto para Vallen e Ellisa. Ambos eram ótimos em cortar gargantas, pensou, mas não tão bons em usar as suas próprias. Se continuassem a mostrar dinheiro daquele jeito, os fregueses da taverna estariam em cima deles como gaviões assim que pusessem os pés do lado de fora.

— Perder os olhos? — Vallen se inclinou no balcão, mirando o homem. — Faria o favor de esclarecer isto?

— Quem tem dois olhos iguais não se aventura em Var Raan, forasteiro — cessando o esfregar do copo, o homem deixou as duas mãos para baixo, invisíveis atrás do balcão. — Não se não quiser que os dois acabem na ponta de uma adaga.

— Ouvi dizer que isso é um destino bem pior para um colleniano.

Ashlen tentou segurar seus interlocutores na mesa, mas todos se levantaram. Por todo o salão, os jogos continuavam, os Tibares trocavam de mãos, mas os olhos espiavam os três

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