• Nenhum resultado encontrado

A organização política

No documento HISTÓRIA GERAL DA ÁFRICA (páginas 143-146)

O ideal confesso da sociedade egípcia, portanto, era uma monarquia forte, considerada como o único meio de dar ao país o impulso necessário ao seu bem -estar. O soberano era a personificação do serviço público: o termo “faraó” vem da expressão per -ao, que designava no Antigo Império a “Grande Casa” do príncipe, incluindo sua residência e seus ministérios, e que no Novo Império passou a designar a pessoa do rei. Este possuía uma natureza diferente do resto da humanidade: as lendas sobre sua predestinação, os quatro nomes canônicos e os epítetos que acrescentava a seu nome, o protocolo que o cercava, as cerimônias que acompanhavam suas aparições e decisões, a multiplicação infinita de suas imagens, cartuchos e títulos nos edifícios sagrados, suas celebrações jubilares, o estilo de sua sepultura (pirâmides menfitas, tumbas talhadas tebanas) – tudo isso acentuava a diferença. Uma das demonstrações mais evidentes do desgaste periódico da autoridade faraônica e de certas pressões sociais é a adoção, por parte de um número cada vez maior de indivíduos, de estilos de tumbas13,

temas iconográficos e textos funerários antes reservados apenas ao rei. Além disso, embora a monogamia pareça ter predominado entre os mortais, em geral o rei -deus desposava várias mulheres, por vezes sua irmã ou mesmo suas filhas. A sucessão real cerca -se de algum mistério. Com certeza, era costume que o filho sucedesse ao pai no trono, conforme o modelo mítico de Osíris e Hórus,

13 O fenômeno de diferenciação do tratamento póstumo dos reis e, posteriormente, de usurpação progressiva dos privilégios funerários do soberano pelos indivíduos comuns ocorre com frequência. O primeiro ciclo começou durante o Antigo Império e foi acelerado pelo enfraquecimento do poder real durante o Primeiro Período Intermediário; todavia, não se pode mais sustentar que naquela época tenha havido uma democratização repentina dos privilégios funerários.

82 África Antiga

o protótipo do filho que sepulta o pai e vinga sua morte. Algumas vezes, como na XII dinastia, o princípio da hereditariedade tem como consequência a coroação prematura do sucessor. Mas não se deve pensar que o direito de realeza fundamentava -se apenas na transmissão hereditária masculina por primogenitura. Os poucos soberanos que nos falam de seus antepassados enfatizam que foram escolhidos livremente pelos pais como lugar -tenentes e seus herdeiros prováveis (Séti I, Ramsés II, Ramsés III, Ramsés IV). Contudo, as palavras das fórmulas pelas quais se reafirmava a “legitimidade” do rei são idênticas, quer em se tratando do filho mais velho do predecessor, quer de um adventício. Cada soberano herdava a “realeza de Rá, a função de Shu, o trono de Geb”, sendo assim o sucessor direto dos deuses que criaram e ordenaram o mundo; cada um era “escolhido” pelo deus de sua cidade de origem. O rei, predestinado a sua posição, era gerado pelas próprias obras do deus -Sol (mito figurativo da teogamia)14, e, no Novo Império, a designação ou reconhecimento

do novo rei pelo oráculo de Âmon era a garantia da legitimidade do novo monarca. Desse modo, um “direito divino” direto superava a legitimidade dinástica. Na realidade, cada reinado era um reinício. Era o ritual que fazia e mantinha o soberano, e cada vez que ele agia como sacerdote ou legislador, as mesmas purificações, as mesmas funções e os mesmos ornamentos renovavam sua “aparição como rei”. Comparado a um deus, algumas vezes adorado durante sua existência como um verdadeiro deus Amenófis III ou Ramsés II, por exemplo, através de seus prodigiosos colossos –, o faraó assumia um papel sobrenatural sem, contudo, pretender seriamente a posse de dons sobrenaturais; pelo contrário, era acima de tudo o homem exemplar, que dependia dos deuses e que devia servi -los15.

Quatro mulheres tornaram -se faraós: curiosamente, as duas primeiras (Nitócris e Sebeknefru) assinalam o fim de uma dinastia, e as outras duas (Hatshepsut e Tauosré) passaram à posteridade como usurpadoras. Eram pródigas as honras demonstradas à mãe, esposas e filhas do rei. Algumas princesas do Médio Império e principalmente, em tempos posteriores, Teye, primeira esposa de Amenófis III, e Nefertári, primeira esposa de Ramsés II, receberam honras excepcionais. Ahhotep, durante o governo de Amásis e Ahmés -Nefertári, durante o governo de Amenófis I, parecem ter exercido uma influência determinante em questões políticas ou religiosas. A atribuição da função ritual de “divina esposa de Âmon” a princesas ou rainhas mostra o papel indispensável da feminidade

14 BRUNNER, H. 1964. 15 POSENER, G. 1960.

83

O Egito faraônico: sociedade, economia e cultura

e da mulher no culto do deus cósmico. Contudo não existe prova positiva de um regime matriarcal no conceito egípcio de realeza16 e, em particular, não está

absolutamente demonstrada a teoria de que na época amósida o direito dinástico era normalmente transmitido através da mulher.

Um estudo das listas de títulos dos funcionários superiores e inferiores e dos poucos textos legislativos e administrativos que chegaram até nós dá uma noção razoavelmente precisa da organização governamental: governo dos nomos, hierarquia do clero e distribuição das obrigações religiosas dos sacerdotes, administração real ou sacerdotal das terras aráveis, dos rebanhos, das minas, dos silos, dos tesouros, do transporte fluvial, da justiça, etc. Organogramas engenhosos, se não rigorosos – que evidentemente variavam de acordo com o período – comprovam a existência de práticas sofisticadas de gerência e de técnicas de secretariado e contabilidade bastante avançadas (cabeçalhos, classificação, tabelas com estorno, etc.). Esse trabalho de escrituração era, não obstante, eficaz. Provavelmente o poder do Egito no exterior dependia mais de sua organização avançada do que de sua agressividade, e os monumentos, que resistiram ao tempo, seguramente devem sua existência à perícia dos escribas na manipulação em grande escala do trabalho humano e dos materiais pesados. No ápice do sistema situava -se o tjaty ou “vizir”, para usar uma designação tradicional da egiptologia. Esse primeiro -ministro, responsável pela ordem pública, era comparado ao deus Tot, “coração e língua do Sol Rá”; era, antes de tudo, a suprema autoridade legal na Terra, depois do faraó e do ministro da justiça. Alguns vizires que serviram durante vários reinados consecutivos devem ter dominado a vida política do país. Contudo o tjaty (ou os dois tjaty durante o Novo Império) não era o único conselheiro do rei, nem necessariamente o principal. Muitos dignitários vangloriavam -se de terem sido consultados por seus soberanos a portas fechadas ou de terem sido escolhidos para missões especiais. Na época imperial, o governador da Núbia, um “filho real” honorário, quase soberano em seu próprio território, obedecia diretamente ao faraó. Em realidade, o poder político dos ministros ao que parece não se refletia exatamente na hierarquia administrativa. Algumas personalidades, como o escriba de recrutamentos Amenófis, filho de Hápu, um arquiteto que paulatinamente foi levado ao nível dos deuses por sua sabedoria, ou Khamois, o sumo sacerdote de Ptah e um dos numerosos filhos de Ramsés II17, com certeza

foram tão influentes quanto os vizires de seu tempo. O despotismo radical

16 Dados úteis em GROSS -MERTZ, B. 1952.

84 África Antiga

da monarquia faraônica entregava à Residência a resolução dos principais conflitos políticos. A proscrição da memória de diversos altos funcionários não apenas Senmut e outros íntimos de Hatshepsut, mas também servidores de soberanos menos contestados (dois príncipes reais e Usersatet, vice -rei da Núbia durante o governo de Amenófis II) – é o testemunho mudo das crises governamentais.

No documento HISTÓRIA GERAL DA ÁFRICA (páginas 143-146)