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Cronologia egípcia

No documento HISTÓRIA GERAL DA ÁFRICA (páginas 40-45)

A Pedra de Palermo, o Papiro de Turim e as listas reais dos monumentos tornam-se ainda mais importantes para a história do Egito se levarmos em conta que os egípcios não adotavam eras contíguas ou cíclicas, como as de nossos sistemas – antes ou depois de Cristo, da Hégira ou das Olimpíadas. Seu cômputo baseia-se na pessoa do próprio faraó; cada data é estabelecida tendo como referência o faraó que reinava no tempo em que o documento foi redigido. Por exemplo, uma estela poderá trazer a data: “Ano do faraó N, segundo mês de Akhet (estação), oitavo dia”, mas a contagem começa novamente a partir de 1 quando o governante seguinte sobe ao trono. Esse costume explica a importância de se conhecerem os nomes de todos os faraós que reinaram, e a duração de cada reinado, para estabelecer a cronologia. O Papiro de Turim e a Pedra de Palermo nos teriam fornecido essas informações essenciais se tivessem permanecido intactos. Infelizmente isso não aconteceu, e os outros documentos que preenchem as lacunas dessas duas fontes principais ainda não são suficientes para que tenhamos uma lista completa e exata dos faraós do Egito. Não só a ordem de sucessão continua controversa para alguns períodos em que o Papiro de Turim e a Pedra de Palermo não fornecem referências, como a própria duração exata do reinado de alguns soberanos ainda é desconhecida. Na melhor das hipóteses, temos apenas a mais antiga data conhecida de um determinado faraó, mas seu reinado pode ter durado até muito depois da construção do monumento que traz essa data.

Mesmo com essas lacunas, a soma de todas as datas fornecidas pelas fontes de que dispomos perfaz um total de mais de 4 mil anos. Essa é a cronologia longa, aceita pelos primeiros egiptólogos até 1900. Percebeu-se, então, que

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uma tal extensão de tempo era inadequada: estudos de textos e monumentos mostraram que em certos períodos vários faraós reinaram ao mesmo tempo (havendo, portanto, dinastias paralelas) e como por vezes ocorria, um faraó podia tomar um de seus filhos como corregente. Dado que cada governante datava seus monumentos tendo como referência seu próprio reinado, havia algumas superposições; somando-se os reinados das dinastias paralelas e aqueles dos corregentes aos reinados dos soberanos oficiais, chegava-se, necessariamente, a um número total muito superior ao real.

Provavelmente teria sido impossível resolver esse problema se uma peculiaridade do antigo calendário faraônico não nos tivesse fornecido uma referência cronológica segura, por estar esse calendário relacionado a um fenômeno astronômico permanente, cujo cálculo era fácil estabelecer. Referimo- nos ao aparecimento da estrela Sótis – a nossa Sirius – coordenado com o nascer do Sol, na latitude de Heliópolis-Mênfis. É a isto que se chama “nascer helíaco de Sótis”, fenômeno que foi observado e anotado na Antiguidade pelos egípcios. Essas observações forneceram as datas “sotíacas”, nas quais se baseia atualmente a cronologia egípcia.

No princípio, os egípcios, como a maioria dos povos da Antiguidade, parecem ter utilizado o calendário lunar, principalmente para estabelecer as datas das festas religiosas. Mas, ao lado desse calendário astronômico, usavam um outro. Sendo os egípcios um povo camponês, seu dia-a-dia era fortemente marcado pelo ritmo da vida agrícola: semeadura, maturação, colheita, preparação de novas sementes. Ora, no Egito, o ritmo agrícola do vale é condicionado pelo Nilo, e suas mudanças é que fixam as datas das várias operações. Assim, não há nada de surpreendente no fato de que, paralelamente ao calendário religioso lunar, os antigos habitantes do vale utilizassem também um calendário natural baseado na repetição periódica do evento mais importante para a sua subsistência: as cheias do Nilo.

Nesse calendário, a primeira estação do ano, Akhet em egípcio, marcava o começo da enchente. As águas do rio subiam pouco a pouco e cobriam a terra ressecada pelo verão tórrido. Os campos permaneciam encharcados durante quatro meses aproximadamente. Na estação seguinte, a terra, que pouco a pouco emergia da inundação, ficava pronta para a semeadura. Era a estação Peret – literalmente, “sair” –, termo que, sem dúvida, faz alusão à terra que “sai” da água e, ao mesmo tempo, à “saída”, ao despontar da vegetação. Terminada a semeadura, o camponês aguardava a germinação e a maturação dos grãos. Na terceira e última estação, os egípcios colhiam e estocavam a colheita. Depois

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figura 2 A Pedra de Palermo. (Fonte: A. H. Gardiner, “The Egypt of the Pharaohs”, Oxford University Press, 1961.)

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figura 3 O Papiro de Turim. (Fonte: A. H. Gardiner, “The Royal Canon of Turin”, Oxford, 1954. Foto Griffith Institute, Ashmolean Museum, Oxford.)

disso, tinham apenas que esperar a nova enchente e preparar os campos para a sua chegada. Essa era a estação Shemu.

É possível – e mesmo muito provável – que, por longos anos, os egípcios tenham-se contentado com esse calendário. O ano, então, começava quando as águas subiam. A estação Akhet, assim iniciada, durava até a retração das águas, que marcava o início da estação Peret. Esta, por sua vez, terminava quando os grãos amadurecidos estavam prontos para a colheita, marcando o começo da estação Shemu, que terminava somente com o início da nova cheia. Era pouco significativo para o camponês que uma estação fosse mais longa do que a outra; o que importava era a organização do trabalho, que variava de acordo com as três estações.

Em que momento e por que razões os egípcios passaram a ligar a enchente do Nilo ao aparecimento simultâneo do Sol e da estrela Sótis no horizonte? Isso certamente será difícil de determinar. Não há dúvida de que o estabelecimento dessa relação foi resultado de observações repetidas e, ao mesmo tempo, de profundas crenças religiosas. A estrela Sótis (Sirius, em egípcio Sepedet, “a

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Pontuda”) veio, mais tarde, a ser identificada com Ísis, a cujas lágrimas se atribuíam as enchentes do Nilo. Talvez tenhamos aqui o reflexo de uma crença religiosa muito antiga, associando o aparecimento da estrela divinizada com a subida das águas. Quaisquer que sejam as razões, ao vincular o começo da cheia, e, consequentemente, o primeiro dia do novo ano, a um fenômeno astronômico, os egípcios forneceram-nos os meios para estabelecer pontos de referência concretos para a sua longa história.

Na latitude de Mênfis, o suave início da enchente ocorria em meados de julho. Poucos anos de observação parecem ter sido suficientes para mostrar aos egípcios que o início da enchente tinha uma recorrência média de 365 dias. A partir daí, eles dividiram seu ano de três estações empíricas em um ano de doze meses de trinta dias cada um. Atribuíram, assim, quatro meses para cada estação. Acrescentando cinco dias suplementares (em egípcio, os cinco heryu renepet, os cinco a mais – acrescentados – ao ano), que os gregos chamavam de epagômenos, os escribas obtiveram um ano de 365 dias, que era, de longe, o mais adequado de todos os adotados na Antiguidade.

No entanto, não era perfeito. De fato, a Terra completa a sua translação em torno do Sol não em 365 dias, mas em 365 dias e um quarto. A cada quatro anos, o ano oficial egípcio se atrasava um dia em relação ao ano astronômico, e somente a cada 1460 anos – o período sotíaco – os três fenômenos (nascer do Sol, nascer de Sótis e início da cheia) ocorriam simultaneamente no primeiro dia do ano oficial.

Essa defasagem gradual entre os dois anos teve duas consequências importantes: primeiro, permitiu que os modernos astrônomos determinassem quando os egípcios adotaram o seu calendário, tendo essa data que coincidir, necessariamente, com o início de um período sotíaco. A coincidência dos fenômenos – início da enchente e nascer helíaco de Sótis – ocorreu três vezes nos cinco milênios anteriores à Era Cristã em -1325/-1322, em -2785/-2782 e em -4245/-4242. Por muito tempo, acreditou-se que os egípcios tinham adotado seu calendário entre -4245 e -4242. Atualmente, admite-se que isso só ocorreu no início do período sotíaco seguinte, isto é, entre -2785 e -2782.

A segunda consequência da adoção, pelos egípcios, do calendário solar fixo foi um distanciamento gradual entre as estações naturais, determinadas pelo próprio ritmo do Nilo, e as estações oficiais, adotadas pelo governo, que se baseavam em um ano de 365 dias. Essa defasagem de um dia a cada quatro anos – no início, quase imperceptível – aumentava pouco a pouco para uma semana, um mês, dois meses, até que o Shemu do calendário oficial caísse no meio da estação natural Peret. Um tal descompasso não poderia deixar de chamar a atenção dos escribas

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egípcios: há textos que apontam oficialmente a diferença entre o verdadeiro nascer helíaco de Sótis e o começo do ano oficial. Essas observações permitem- nos estabelecer com uma aproximação de quatro anos as seguintes datas:

• o reinado de Sesóstris III deve incluir os anos -1882/-1879; • o ano de Amenófis I cai entre os anos -1550 e -1547; • o reinado de Tutmés III inclui os anos -1474/-1471.

Combinando essas datas com as datas relativas fornecidas pelas fontes de que dispomos – o Papiro de Turim, a Pedra de Palermo e os monumentos datados. das várias épocas –, pudemos estabelecer uma cronologia básica, a mais exata de todas as do Oriente antigo. Ela estabelece o início da história do Egito em -3000. As grandes divisões de Mâneton podem ser datadas como segue:

• III à VI dinastia (Antigo Império): aproximadamente -2750/-2200; • VII à X dinastia (Primeiro Período Intermediário): -2200/-2150; • XI à XII dinastia (Médio Império): -2150/-1780;

• XIII à XVII dinastia (Segundo Período Intermediário): -1780/-1580; • XVIII à XX dinastia (Novo Império): -1580/-1080;

• XXI à XXIII dinastia (Terceiro Período Intermediário): -1080/-730; • XIV à XXX dinastia (Baixa Época): -730/-330.

A conquista de Alexandre da Macedônia, em -332, marca o final da história do Egito faraônico e o início do período helenístico (cf. capítulo 6).

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