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A ORIGEM DOS EVANGELHOS

No documento A Bíblia, o Alcorão e a Ciência (páginas 80-84)

O apanhado geral que demos dos Evangelhos, e que emerge do exa- me crítico dos textos, leva a adquirir a noção de uma literatura “descosida (desconexa), cujo plano se ressente de continuidade” e “cujas contradições pa- recem insuperáveis”, para retomar os termos do julgamento exarado pelos comentadores da Tradução Ecumênica da Bíblia, a cuja autoridade importa fazer referência, tão graves são as consequências das apreciações sobre esse assunto. Viu-se que noções sobre a história religiosa contemporânea do nascimento dos Evangelhos poderiam explicar certos caracteres dessa literatura desconcertante para o leitor que refl ete. Mas é preciso ir mais longe e pesquisar o que podem nos apresentar os trabalhos publicados na época moderna sobre as fontes que os Evangelistas buscaram, para redigir seus textos; é igualmente interessante, examinar se a história dos textos depois do seu estabelecimento é susceptível de explicar certos aspectos que eles apresentam em nossos dias.

O problema das fontes foi abordado de modo muito simples na época dos Padres da Igreja. Nos primeiros séculos da era cristã, a fonte não poderia ser senão o Evangelho que os manuscritos completos apresentam como o primeiro, quer dizer o Evangelho de Mateus. A questão das fontes se colocava

somente para Marcos e para Lucas; João consistia um caso completamente à parte. Santo Agostinho considerava que Marcos, segundo na ordem tradicional de apresentação, tinha se inspirado em Mateus, que ele tinha resumido, e que Lucas, vindo em terceira posição nos manuscritos, se serviu de dados de um e de outro; seu prólogo, do qual falamos acima o sugere.

Os exegetas dessa época podem, do mesmo modo que nós avaliar o grau de convergência dos textos e reencontrar um grande número de ver- sículos comuns a dois ou três dos sinóticos. Os comentadores da Tradução Ecumênica da Bíblia os calculam, em nossos dias, aproximadamente assim:

Versículos comuns aos três sinóƟ cos 330

Versículos comuns a Marcos e Mateus 178

Versículos comuns a Marcos e Lucas 100

Versículos comuns a Mateus e Lucas 230

Ao passo que os versículos próprios a cada um dos três primeiros evan- gelistas são de

330 para Mateus, 53 para Marcos e 500 para Lucas.

Dos Padres da Igreja até o fi m do século XVIII, um milênio e meio se passa sem que seja levantado qualquer problema novo sobre as fontes dos evan- gelhos: conformava-se com a tradição. Não é senão na época moderna, que se percebe, perante esses dados, que cada evangelista, retomando as informações encontradas nos outros, efetivamente construiu uma narração à sua maneira, segundo suas perspectivas pessoais. Reservou-se, então, um lugar importante à coleta dos assuntos da narração, de um lado na tradição oral das comunidades de origem e, de outro, numa fonte escrita comum aramaica, que não foi reen- contrada. Essa narração escrita teria podido formar um bloco compacto ou ser constituída de múltiplos fragmentos de narrações diversas, que teriam servido a cada evangelista para edifi car sua obra original.

Pesquisas mais aprofundadas conduziram, após cerca de um século, a teorias mais precisas que vão se complicar com o tempo. A primeira das teorias modernas é aquela chamada das “duas fontes de Hoitzmann” (1863). Segundo ele, como O. Culmann e a Tradição Ecumênica o acentuavam, Mateus e Lucas foram inspirados, de um trado por Marcos e, de outro, por um documento comum hoje perdido. Além disso, os dois princípios tinham cada um à sua disposição uma fonte própria. Chegamos então ao esquema seguinte:

Culmann critica o esquema nos seguintes pontos:

1. A obra de Marcos, da qual ser serviram Lucas e Mateus, não deveriam ser o Evangelho desse autor, mas uma redação anterior;

2. Uma importância sufi ciente não foi atribuída nesse esquema à tradição oral, que é capital, porque ela, só ela, conservou durante trinta ou quarenta anos as palavras de Jesus e as narrações de sua missão, não tendo sido cada evange- lista senão o porta-voz da comunidade cristã que fi xou a tradição oral.

Chega-se assim a esta noção: a de que os Evangelhos, tais como nós os possuímos, trouxeram-nos o refl exo do que as comunidades cristãs primitivas conheceram da vida e de suas concepções teológicas, dos quais os evangelistas foram os porta-vozes.

As pesquisas mais modernas da crítica textual sobre as fontes dos Evan- gelhos evidenciaram um processo muito mais complexo ainda que a formação dos textos. A Sinopse dos Quatro Evangelhos, obra de R. P. Benoit e R. P. Bois- mard, professores da Escola Bíblica de Jerusalém (1972-1973), chama a atenção sobre a evolução dos textos em várias etapas, paralelamente a uma evolução da tradição, o que implica consequências que R. P. Benoit expõe, nesses termos, apresentando, parte do livro, obra de R. P. Boismard: “[. . .] as formas de palavras ou de narrações, resultantes de uma longa evolução da tradição, não têm a mesma autenticidade que aquelas que se encontram na origem. Alguns leitores desta obra serão, possivelmente, surpreendidos ou perturbados ao se inteirarem de que tal palavra de Jesus, tal parábola, tal prognóstico de seu destino, não tinham sido ditos, como nós os lemos, mas que foram retocados e adaptados por aqueles que nô-los transmitiram. Para aqueles que não estão acostumados a esse tipo de enquete histórica, há nisso uma fonte possível de admiração, quando não de escândalo”.

Esses retoques do texto e sua adaptação, praticados por aqueles que nô-

Marcos Documentos Comuns

-los transmitiram, efetuaram-se segundo um modo do qual R. P. Boismard nos dá o esquema muito complexo, que é um desenvolvimento da teoria dita das duas origens. O esquema foi estabelecido depois de um trabalho de exame e de comparação de textos, que é impossível resumir. O leitor interessado deverá, para mais detalhes, reportar-se à obra original publicada em Paris nas edições du Cerf.

Quatro documentos de base, chamados A.B.C. e Q., representam as fontes originais dos Evangelhos (ver o esquema geral).

O documento A. é um documento emanado do meio judeu-cristão, que inspirou Mateus e Marcos.

O documento B. é uma reinterpretação do documento A., para uso das igrejas pagão-cristãs: ele inspirou todos os evangelistas, menos Mateus.

O documento C. inspirou Marcos, Lucas e João.

O documento Q. constitui a maior parte das fontes comuns a Mateus e Lucas; é o “documento comum” da teoria das duas origens citadas acima.

Nenhum desses documentos de base culmina na redação dos textos de- fi nitivos que nós possuímos. Entre eles e a redação fi nal se colocam as redações intermediárias que o autor chama: Mateus intermediário, Marcos intermediá- rio, Proto-Lucas e João. São esses quatro documentos intermediários que vão resultar nas últimas redações dos quatro Evangelhos e como sugestão para a redação dos outros Evangelhos. É preciso reportar-se ao esquema geral para apanhar todos os circuitos complexos postos em evidência pelo autor.

Os resultados dessa pesquisa escriturária são de uma importância consi- derável. Eles demonstram que os textos dos Evangelhos que têm uma história (ela será tratada mais adiante) têm também, segundo a expressão de R. P. Bois- mard, uma «pré-história», quer dizer, que eles sofreram, antes do aparecimento das últimas redações, modifi cações, por etapas, dos documentos intermediários. Assim se explica, por exemplo que uma história bem conhecida da vida de Jesus, a pesca milagrosa, seja apresentada, já a vimos, para Lucas como um acon- tecimento ocorrido durante a sua vida e, para João, como um episódio de suas aparições depois da ressurreição.

M. – E. BOISMARD

SINOPSE DOS QUATRO EVANGELHOS

No documento A Bíblia, o Alcorão e a Ciência (páginas 80-84)