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SEU EXAME CRÍTICO

No documento A Bíblia, o Alcorão e a Ciência (páginas 51-57)

Causa perplexidade a diversidade das reações dos comentadores cris- tãos perante a existência desse acúmulo de erros, incertezas e contradições. Alguns o admitem em parte e não hesitam, em suas obras, em abordar pro- blemas espinhosos. Outros se desviam alegremente das afi rmações inaceitáveis, ocupam-se em defender o texto palavra por palavra e procuram convencer com declarações apologéticas e grande esforço de argumentos frequentemente inesperados, esperando fazer esquecer o que a lógica rejeita.

R.P. de Vaux admite, em sua Introdução à Tradução do Gênesis a exis- tência dessas críticas e concorda até mesmo que elas são bem fundamentadas, mas, para ele, a reconstituição objetiva dos acontecimentos do passado é sem interesse. Que a Bíblia tenha tomado, escreve ele em suas anotações, “a lembran- ça de uma ou várias inundações desastrosas do vale do Tigre e do Eufrates, que a tradição tivesse aumentado as dimensões de um cataclismo universal” pouco importa; “somente, e é o essencial, o autor sacro revestiu essa lembrança com um ensinamento eterno sobre a justiça e a misericórdia de Deus sobre a malícia do homem e a salvação dada ao justo”.

Assim é justifi cada a transformação de uma lenda popular em um acontecimento em escala divina - e como tal propõe-se a oferecer à crença dos homens – a partir do momento em que um autor a utilizou para lhe servir de ilustração a um ensinamento religioso. Uma tal posição apologética justifi ca todos os abusos humanos na confecção das escrituras, de onde se pretende que elas sejam sagradas e contenham a Palavra de Deus. Admitir tais ingerências humanas no divino é cobrir todas as manipulações humanas dos textos bíblicos. Sob uma visão teológica, toda manipulação torna-se legítima e justifi cam-se, assim, as dos autores “Sacerdotais” do século VI, com preocupações legalistas que culminaram nas narrações fantasistas que se conhecem.

Um número importante de comentadores cristãos achou engenhoso explicar os erros, incertezas e contradições nas narrações bíblicas, dando prio- ridade à desculpa que tinham os autores bíblicos de se expressar em função dos fatores sociais de uma cultura ou mentalidades diferentes, e disso resultou a defi nição de “gêneros literários” particulares. A introdução desta expressão

na dialética sutil dos comentadores dissimula então, todas as difi culdades. Toda contradição entre dois textos teria como explicação a diferença na maneira de se expressar de cada autor, seu “gênero literário” particular. Certamente, o argumento não é admitido por todos, pois, verdadeiramente, falta-lhe seriedade. Ele não está, entretanto, totalmente em desuso em nossos dias, e ver-se-á, a pro- pósito do Novo Testamento, de que maneira abusiva se tentam explicar assim as contradições fl agrantes dos Evangelhos.

Uma outra maneira de fazer aceitar o que a lógica rejeitaria, se se aplicasse ao texto litúrgico, é envolver o texto em questão de considerações apologéticas. A atenção do leitor é desviada do problema crucial da verdade mesma da narração, para se fi xar em outros problemas.

As refl exões do cardeal Daniélon sobre o Dilúvio, apresentado na

revista Dieu Vivant9 sob título “Dilúvio, Batismo e Julgamento”, decorrem desse

modo de expressão. Ele escreve: “A mais antiga tradição da Igreja viu na teologia do Dilúvio uma fi gura de Cristo e da Igreja”. “É um episódio de uma signifi cação eminente”... “um julgamento que atinge a raça humana inteira”. Após ter citado Orígenes que, nas suas Homélias sobre Ezechiel, fala do “naufrágio do universo inteiro salvo na Arca”, o cardeal evoca o valor do número oito “expressando o número de pessoas salvas pela Arca (Noé e sua mulher, seus três fi lhos e suas três esposas)”. Ele retoma por sua conta o que escrevia Justino no “Dialogo”. “Eles ofereciam o símbolo do oitavo dia, no qual nosso Cristo apareceu res- suscitado dos mortos”, e ele escreveu: “Noé, primogênito de uma nova criação, uma imagem do Cristo que realizou o que Noé havia representado”. Ele pros- segue a comparação entre, de uma parte, Noé, salvo pela madeira da Arca e pela água que faz fl utuar e, de outra parte, a água do batismo (“água do Dilúvio de onde nasce uma humanidade nova”), e a madeira da Cruz. Ele insiste sobre o valor desse simbolismo e conclui dando importância à riqueza espiritual e doutrinal do sacramento do Dilúvio” (sic).

Haveria muito a dizer sobre todas essas aproximações apologéticas. Elas comentam - lembremo-nos - um acontecimento, cuja realidade não é de- fensável, em escala universal e na época em que a Bíblia o situa. Com um co- mentário como aquele do Cardeal Daniélon, volta-se à época medieval, em que era preciso receber o texto como ele era e em que toda interpretação, que não a conformista, estava fora de propósito.

E reconfortante, entretanto, constatar que anteriormente a essa épo- ca do obscurantismo imposto, podem-se depreender tomadas de posição bem

lógicas, como a de Santo Agostinho que procede de uma refl exão singularmen- te adiantada para seu tempo.

A época dos Padres da Igreja, os problemas de crítica textual tinham sido colocados, pois Santo Agostinho os evoca em sua Carta n° 82, da qual a passagem mais características é a seguinte:

“Foi unicamente nesses livros da Escritura que chamamos canônicos que aprendi a dar uma atenção e um respeito tais que eu creio fi rmemente, que nenhum dos seus autores se enganou, escrevendo. Quando nesses livros eu reencontro uma afi rmação que parece contradizer a verdade, então não duvido que, ou bem o texto (de meu exemplar) não seja falível, ou então que o tradutor não reproduziu corretamente o texto original, ou ainda que minha inteligência não seja defi ciente”.

Para Santo Agostinho, não era concebível que um texto sacro pu- desse conter erros. Santo Agostinho defi nia muito claramente o dogma da inerência. Diante de uma passagem parecendo contrária à verdade, ele visualizava a pesquisa de uma causa e não excluía a hipótese de uma origem humana. Uma atitude assim é a de um crente dotado de senso crítico. Na época de Santo Agostinho, não existia a possibilidade de confrontação entre o texto bíblico e a ciência. Uma ampla visão idêntica à sua permitiria superar muitas difi culdades levantadas em nossa época pela confrontação de certos textos bíblicos com os conhecimentos científi cos.

Os especialistas de nosso tempo se esforçam, muito ao contrário, em defender o texto bíblico de toda acusação de erro. R.P. de Vaux nos dá, na sua Introdução ao Gênesis, as razões que o levaram a essa defesa a qualquer preço do texto, mesmo se ele é manifesta, histórica ou cientifi camente inaceitável. Ele nos recomenda não olhar a história bíblica “segundo as regras do gênero histó- rico, como os modernos praticam”, como se pudessem existir várias maneiras de escrever a história. Contada de maneira inexata, a história fi ca - todo mundo admite - um romance histórico. Mas aqui, ela escapa às normas decorrentes de nossas concepções. O comentador bíblico recusa todo controle das narrações bíblicas pela geologia, pela paleontologia, e pelos dados da pré-história. “A Bíblia não depende, escreve ele, de nenhuma dessas disciplinas, e se quisesse confron- tá-la com os dados dessas ciências, não se poderia chegar senão a uma oposição irreal ou a um conformismo fi ctício10”. É preciso notar que suas refl exões são

feitas a propósito do que no Gênesis não está de modo algum de acordo com os dados da ciência moderna, em especial os onze primeiros capítulos. Mas,

se algumas narrações são perfeitamente verifi cadas em nossos dias, nesse caso certos episódios dos tempos dos patriarcas, o autor não deixa de invocar os conhecimentos modernos para apoiar a verdade bíblica. Ele escreve11:

“As suspeitas que recaíam sobre essas narrações deveriam ceder dian- te do testemunho favorável que lhes trazem a história e a arqueologia orientais”. De outro modo: se a ciência é útil para confi rmar a narração bíblica, nós a invocamos, mas se ela a invalida, fazer-lhe referência não é admissível.

Para conciliar o inconciliável, isto é, a teoria da verdade da Bíblia com o caráter inexato de certos fatos relatados nas narrações do Antigo Testamento, teólogos modernos aplicaram-se em rever os conceitos clássicos da verdade. Seria sair do plano deste livro, fazer uma exposição detalhada das considerações sutis desenvolvidas longamente nas obras que tratam da verdade da Bíblia, como a de O. Loretz (1972), Qual é a Verdade da Bíblia?12. Contentemo-nos em

mencionar simplesmente seu julgamento concernente à ciência:

O autor nota que o Concílio Vaticano II “evitou fornecer regras para distinguir entre erro e verdade na Bíblia. Considerações fundamentais mostram que isto é impossível, pois que a Igreja não pode decidir da verdade e da falsi- dade dos métodos científi cos, de tal maneira que ela resolveria, em princípio e de modo geral, a questão da verdade da Escritura”.

E bem evidente que a Igreja não saberia se pronunciar sobre o valor de um “método” científi co como meio de acesso ao saber. Trata-se aqui de ou- tra coisa. Não se trata de discutir as teorias, mas de fatos bem estabelecidos. E necessário ser um grande clérigo, em nossa época, para saber que o mundo não foi criado e que o homem não apareceu sobre a terra há trinta e sete ou trinta e oito séculos, e afi rmar que essa estimativa saída das genealogias bíblicas possa ser falsa sem risco de se enganar? O autor citado aqui não poderia ignorá-la. Suas afi rmações sobre a ciência não têm outro fi m senão desviar o problema, para não ter de tratá-lo como deveria ser tratado.

A lembrança de todas essas posições, tomadas pelos autores cristãos diante dos erros científi cos dos textos bíblicos, ilustram bem o mal-estar que elas trazem, e a impossibilidade de defi nir uma posição lógica que não a de re- conhecimento de sua origem humana, e da impossibilidade de as aceitar como

11 - Introdução ao Gênesis, p. 34. 12 - Do Centurion, Paris.

fazendo parte de uma revelação.

Este mal-estar reinante nos meios cristão, referente à revelação, foi traduzido por ocasião do Concílio Vaticano II (1962-1965), onde foi preciso nada menos que cinco redações, para que se chegasse a um acordo sobre o texto fi nal, depois de três anos de discussões, e que fi ndou “esta dolorosa situação que ameaçou enterrar o Concílio”, segundo a expressão de Monsenhor Weber, na sua introdução do documento conciliar n°94 sobre a Revelação13.

Duas frases desse documento, concernentes ao Antigo Testamento (Cap. IV, p. 53), evocam as imperfeições e a caducidade de certos textos, de uma maneira que não permite nenhuma contestação:

“Considerada a situação humana que precede a salvação instaurada por Cristo, os livros do Antigo Testamento permitem a todos conhecer quem é Deus e quem é o homem, assim como a maneira pela qual Deus, em sua justiça e em sua misericórdia, age com os homens. Esses livros, apesar do que conte- nham de “imperfeito” e de “caduco” (sic), são, entretanto, testemunhas de uma verdade pedagógica divina”.

Não seria melhor dizer, pelos qualifi cativos de “imperfeito” e de “ca- duco” aplicados a certos textos, que estes podem prestar-se à crítica e até serem abandonados? O princípio está claramente admitido. Este texto faz parte de uma declaração conjunta que, por ter sido defi nitivamente votada por 2.344 votos contra 6, não perfaz essa aparente quase-unanimidade. Com efeito, encon- tramos nos comentários do documento ofi cial, sob a assinatura de Monsenhor Weber, uma frase que corrige manifestamente a afi rmação da caducidade de certos textos, contidos na declaração solene do Concílio: “Sem dúvida certos livros da Bíblia israelita têm um alcance temporário e contêm neles qualquer coisa imperfeita”.

“Caduco”, expressão da declaração ofi cial, não é seguramente sinô- nimo de “alcance temporário”, expressão do comentador, e, quanto ao epíteto “israelita”, curiosamente acrescido por este último, ele sugeriria que o texto conciliar pôde criticar a única versão em hebreu, o que não é exata pois foi simplesmente o Antigo Testamento que, por ocasião desse Concílio, foi objeto de um julgamento concernente à imperfeição e à caducidade de algumas de suas partes.

CONCLUSÕES

É preciso olhar as Escrituras bíblicas, não as revestindo artifi cialmente com qualidade que se queira que elas possuam, mas examinando objetivamente o que elas são. Isto implica não somente o conhecimento dos textos, mas ainda da sua história. Esta última permite, com efeito, fazer uma ideia das circunstân- cias que conduziram aos remanejamentos textuais ao longo dos séculos, à lenta formação da compilação tal, como nós a possuímos, com subtrações e adições numerosas.

Estas noções tornaram perfeitamente plausível que se possa encon- trar ao Antigo Testamento, em versões diferentes de uma mesma narração, contradições, erros históricos, dúvidas e incompatibilidades com os dados cien- tífi cos bem estabelecidos. Estas últimas são absolutamente naturais em todas as obras humanas antigas.

Como não encontrá-las nos livros escritos sob as condições em que foi elaborado o texto bíblico?

Antes mesmo que os problemas científi cos pudessem ser colocados, numa época em que não se podia, portanto, julgar senão duvidosos ou contra- dições, um homem de bom senso como Santo Agostinho, considerando que Deus não podia ensinar aos homens o que não correspondia à realidade, colo- cou o princípio da impossibilidade da origem divina de uma afi rmação contrária à verdade. Ele estava prestes a excluir de todo o texto sacro o que lhe pareceu que, por esse motivo, devia ser excluído.

Mais tarde, em uma época em que se constatou a incompatibilidade com os conhecimentos modernos de certas passagens da Bíblia, houve recusa em seguir tal atitude. Assistiu-se então â eclosão de toda uma literatura, visando a justifi car a conservação na Bíblia, contra tudo e contra todos, dos textos que ali não teriam mais o seu lugar.

O Concílio Vaticano II (1962-1965) atenuou fortemente essa intran- sigência, introduzindo uma ressalva para “Os livros do Antigo Testamento que contêm o imperfeito” e o “caduco”. Permaneceu, ela um voto piedoso ou será ela seguida de uma mudança de atitude perante o que não é mais aceitável no século XX, nos livros que eram destinados a ser, fora de toda manipulação hu- mana, apenas “as testemunhas de uma verdadeira pedagogia divina”?

EVANGELHO

No documento A Bíblia, o Alcorão e a Ciência (páginas 51-57)