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A PRIMEIRA NARRAÇÃO DA CRIAÇÃO

No documento A Bíblia, o Alcorão e a Ciência (páginas 39-44)

A primeira narração ocupa o capítulo primeiro e todos os primeiros ver- sículos do segundo capítulo. Ele é um monumento de inexatidões do ponto de vista científi co. É preciso encarar sua crítica, parágrafo por parágrafo. O texto reproduzido aqui é o da tradução, segundo a Escola Bíblica de Jerusalém: - Capítulo 1°, Versículos 1 e 2:

“No princípio criou Deus os céus e a terra. E a terra era sem forma e vazia; e havia trevas sobre a face do abismo; e o espírito de Deus se movia sobre a face das águas”.

Pode-se bem admitir que, quando a Terra não havia sido criada, o que vai transformar o universo, tal como nós o conhecemos, estava mergulhado nas trevas, mas mencionar a existência das águas nesse período é uma alegoria pura e simples: é provavelmente a tradução de um mito. Ver-se-á na terceira parte deste livro que tudo leva a pensar que, no estágio inicial da formação do universo, existia uma massa gasosa; colocar água aí é um erro.

- Versículos 3-5:

“Que haja luz e houve luz. Deus viu que a luz era boa e separou a luz das trevas. Deus chamou a luz, Dia e às trevas, Noite. E houve uma tarde e uma manhã: primeiro dia”.

A luz que percorre o universo é a resultante de reações complexas que passam ao nível das estrelas, sobre as quais voltaremos na terceira parte desse livro. Ora, nesse estágio da criação, as estrelas não tinham ainda sido formadas, segundo a Bíblia, pois “as luzes” do fi rmamento não são citadas no Gênesis, a

não ser no Versículo 14, como uma criação do quarto dia “para separar o dia da noite”, “para clarear a terra”, o que é rigorosamente exato. Mas é ilógico citar o efeito produzido (a luz) no primeiro dia, situando a criação do meio de pro- dução desta luz (as luzes) três dias mais tarde. Além disso, colocar no primeiro dia a existência de uma tarde e uma manhã é puramente alegórico: a tarde e a manhã, como elementos de um dia, só são concebidos quando da existência da terra e sua rotação sob a iluminação de sua estrela próxima: o Sol.

- Versículos 6-8:

“Deus disse: haja fi rmamento no meio das águas e que ele separe as águas e das águas e assim se fez. Deus fez o fi rmamento, que separou as águas que estão sob o fi rmamento das águas que estão acima do fi rmamento, e Deus chamou fi rmamento, o céu. E houve uma tarde e houve uma manhã: segundo dia”.

O mito das águas continua aqui com a separação delas em duas camadas por um fi rmamento que, na narração do Dilúvio, vai deixar passar as águas de cima que vão se despejar sobre a terra. Essa imagem de uma cisão das águas em duas massas é cientifi camente inaceitável.

- Versículos 9-13:

“Deus disse: “que as águas que estão debaixo do céu se reúnam em uma só massa e que apareça o continente”, e assim se fez. Deus chamou o continente “terra e a massa das águas “mar” e Deus viu que era bom.” Deus disse: “que a terra produza verdura: as ervas dando sementes segundo sua espécie, as árvores dando segundo sua espécie frutos contendo sua semente”. E Deus viu que isto era bom. E houve uma tarde e uma manhã: terceiro dia”.

O fato de que numa certa época da história da terra, quando ela estava recoberta de água. Continentes tenham emergido é bem aceitável cientifi camen- te. Mas que um reino vegetal bem organizado, com uma reprodução por grãos, apareça antes que exista o sol (isto será, diz o Gênesis, pelo quarto dia) e que se estabeleça o revezamento dos dias e das noites é absolutamente insustentável. - Versículos 14-19:

“Deus disse: “haja luzeiros no fi rmamento do céu para separar o dia da noite, que eles sirvam de sinais, tanto para as festas como para os dias e os anos;

que eles sejam os luzeiros no fi rmamento do céu para clarear a terra”. E assim se fez. Deus fez os dois luzeiros maiores: o grande luzeiro como potência do dia e o pequeno luzeiro como potência da noite, e as estrelas. Deus os colocou no fi rmamento do céu para clarear a terra, para comandar o dia e a noite, para separar a luz e as trevas, e Deus viu que era bom. Houve tarde e houve manhã: quarto dia”.

Aqui a descrição do autor bíblico é aceitável. A única crítica que se pode fazer a esta passagem é o lugar que ocupa no conjunto da narração. Terra e Lua surgiram, sabe-se, de sua estrela original, o Sol. Colocar a criação do Sol e da Lua, depois da Terra, é absolutamente contrário às noções mais solidamente estabelecidas sobre a formação dos elementos do sistema solar.

- Versículos 20-30:

‘’Deus disse: “Que as águas fervilhem um fervilhar de seres vivos e aves voem por sobre a terra contra o fi rmamento do céu”, e assim se fez. Deus criou as grandes serpentes do mar e todos os seres vivos que deslizem e que se movem nas águas seguindo sua espécie, e toda raça alada segundo sua espécie e Deus viu que isso era bom. Deus abençoou e disse: sejai fecundos, multiplicai- -vos e enchei a água dos mares e que os pássaros se multipliquem sobre a terra. E houve uma tarde, uma manhã: quinto dia”.

Esta passagem contém afi rmações inaceitáveis.

O aparecimento do reino animal se fez, diz o Gênesis, a princípio, a partir dos animais marinhos e das aves. Segundo esta narração bíblica, é somente no dia seguinte - ver-se-á nos versos subsequentes - que a própria terra vai ser povoada de animais.

Certamente, a origem da vida é marinha: esta questão será considerada a terceira parte do livro. A partir daí, a terra foi, se se pode dizer, colonizada pelo reino animal, e é desses animais vivendo na superfície do solo, uma espécie particular de répteis chamados “pseudosuchiens”, que viviam na era secundária, que provêm – pensa-se - os pássaros; numerosos caracteres biológicos comuns a essas duas classes autorizam esta dedução. Ora, os animais terrestres não são mencionados pela Gênese a não ser no sexto dia, depois do aparecimento dos pássaros. Esta ordem de aparição dos animais terrestres e dos pássaros não é aceitável.

- Versículos 24-31:

“Deus disse: “que a terra produza seres vivos segundo sua espécie: ani- mais domésticos, répteis, feras segundo sua espécie” e assim se fez. Deus fez as feras segundo sua espécie, os animais domésticos segundo sua espécie e todos os répteis do solo segundo sua espécie e Deus viu que isso era bom”. “Deus disse: “façamos o homem à nossa imagem, como a nossa semelhança e que eles dominem (sic) sobre os peixes do mar, as aves do céu, os animais domésticos, todas as feras e todos os répteis que se rastejam sobre a terra”. “Deus criou o homem à sua imagem, à imagem de Deus, Ele o criou, homem e mulher. Ele os criou”. “Deus os abençoou e lhes disse: Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra e submetei-a; dominai sobre os peixes do mar, e sobre as aves do céu e sobre todos os animais que rastejam sobre a terra”. Deus disse: “Eu vos dou todas as ervas que dão semente, que estão sobre a face da terra; e todas as árvores que têm frutas que dão sementes; isto será vosso alimento. A todas as feras, a todas as aves do céu, a tudo o que rasteja sobre a terra e que é animado de vida, eu dou como alimento toda a verdura das plantas”; e assim se fez. E viu Deus tudo quanto tinha feito: e era muito bom. E houve uma tarde e uma manhã: sexto dia”.

E a descrição da conclusão da criação na qual o autor enumera todas as criaturas vivas não mencionadas anteriormente, e evoca as subsistências diversas colocadas à disposição dos homens e dos animais.

O erro, acabamos de ver, é o de ter colocado o aparecimento dos ani- mais terrestres depois dos pássaros. Mas o aparecimento do homem sobre a terra é situado corretamente depois da aparição das outras classes vivas.

A narração da criação termina pelos três primeiros versos do Capítulo 2: “Assim foram concluídos o céu e a terra, com todo seu exército (sic). Deus concluiu no sétimo dia a obra que Ele tinha feito e no sétimo dia Ele descansou, depois de toda obra que Ele havia feito. Deus abençoou o sétimo dia e o santifi cou, porque Ele tinha descansado depois de toda sua obra da criação. Esta é a história do céu e da terra, quando foram criados.

Esta narração do sétimo dia pede comentários.

Primeiro, sobre o sentido das palavras. O texto é o da tradução da Es- cola Bíblica de Jerusalém. “Exército” signifi ca aqui a multidão de seres criados, segundo toda probabilidade. Quanto à expressão “Ele descansou”, é a maneira

do diretor da Escola Bíblica de Jerusalém traduzir a palavra hebraica “Shabbath”, Que quer dizer exatamente “Ele repousou”, donde o dia do repouso judeu que é transcrito em francês por “sábado”.

É bem evidente que esse “repouso” que Deus teria tido, depois de haver efetuado um trabalho de seis dias, é uma lenda, mas ela tem uma explicação. É preciso não esquecer que a narração da criação, examinada aqui, é a tradição chamada Sacerdotal, escrita pelos padres ou escribas, herdeiros espirituais de Ezequiel, o profeta do exílio na Babilônia, no século VI A.C Sabe-se que os padres retomaram as versões Yahvista e Elohista do Gênesis, remodelaram-nas a seu critério, segundo suas próprias preocupações, de onde R.P. de Vaux escreveu que o caráter “legalista” era essencial. Demos acima um sumário disto.

Enquanto que o texto Yahvista da criação, de muitos séculos anterior ao texto Sacerdotal, não fez nenhuma menção ao sábado de Deus fatigado de seu trabalho da semana, o autor Sacerdotal o introduziu em sua narração. Ele o divi- de em dias, com o sentido muito preciso de dias da semana, e o eixo sobre esse descanso sabático, que é preciso justifi car aos olhos dos fi éis, sublinhando que Deus foi o primeiro a respeitar. A partir dessa necessidade prática, a narração da criação é conduzida com sentido aparente lógica religiosa, mas de maneira que os dados da ciência permitem qualifi car de fantasista.

Essa integração no quadro de uma semana de fases sucessivas da criação, pretendida pelo autor Sacerdotal, num objetivo de iniciação à observância reli- giosa, não é defensável do ponto de vista científi co. Sabe-se perfeitamente, em nossos dias, que a formação do universo e da terra, que será tratada na terceira parte do livro, a propósito dos dados alcorânicos concernentes à criação, foi efetuada por etapas, estendendo-se em períodos de tempos extremamente lon- gos, cuja duração os dados modernos não permitem determinar, nem mesmo aproximadamente. Mesmo que a narração terminasse na tarde do 6° dia, e não comportasse a menção do 7° dia do “sábado”, onde Deus teria repousado, mes- mo que, como para a narração alcorânica se estivesse autorizado a considerar que se trata, de fato, de períodos não defi nidos, em vez de dias propriamente di- tos, a narração Sacerdotal não seria menos aceitável, porque a sucessão de seus episódios está em contradição formal com as noções científi cas elementares.

Assim, a narração Sacerdotal da criação aparece como uma engenhosa construção imaginativa, que tinha um objetivo muito diferente que o de fazer conhecer a verdade.

No documento A Bíblia, o Alcorão e a Ciência (páginas 39-44)