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OS QUATRO EVANGELHOS Suas Origens, Sua Historia

No documento A Bíblia, o Alcorão e a Ciência (páginas 64-68)

Nos escritos dos primeiros tempos do cristianismo, a menção aos Evan- gelhos não se faz anão ser muito posteriormente às obras de Paulo. É somente no meio do século II, exatamente após 140, que aparecem as testemunhas relativas a uma coleção de escritos evangélicos, ao passo que, “desde o início do século II, muitos autores cristãos davam a entender claramente que conhe- ciam um grande número de epístolas paulinienses”. Essas constatações, expostas na, Introdução a Tradução Ecumênica da Bíblia, Novo Testamento, editada em 197220, merecem ser relembradas de improviso, ao mesmo tempo em que é útil

sublinhar que a obra à qual a referência é feita, e o resultado de um trabalho coletivo, que agrupa mais de cem especialistas católicos e protestantes.

Os evangelhos que mais tarde vão tornar-se ofi ciais, quer dizer canôni- cos, foram conhecidos muito tardiamente, embora sua redação estivesse ter- minada no início do século II. Segundo a Tradução Ecumênica, começam-se a citar as narrações que lhes pertencem lá pela metade do século II, mas “é quase sempre difícil decidir se as citações são feitas, segundo os textos escritos que os autores tinham sob os olhos, ou se eles se contentaram em evocar de memória os fragmentos da tradição oral”.

“Antes de 140, lê-se nos comentários dessa tradução da Bíblia, não existe

em todo caso nenhum testemunho, segundo o qual ter-se-ia conhecido uma coleção de escritos evangélicos”: Esta afi rmação vai perfeitamente ao encon- tro do que escreveu Tricot (1960) em seus comentários da sua tradução do Novo Testamento: “Bem cedo, desde o início do segundo século, escreve ele, estabelecer-se-ia o uso de dizer “o Evangelho” para designar os livros que, lá por 150, São Justino chamava também “As Memórias dos Apóstolos”. As afi rmações deste tipo são, infelizmente, bastante frequentes para que o grande público tenha falsas noções sobre a data da coleção dos Evangelhos.

Os Evangelhos formam um todo, mais de um século depois do fi m da missão de Jesus, e não logo depois dela. A Tradução Ecumênica da Bíblia calcula ao redor de 170 a data em que os quatro Evangelhos adquiriram estatuto de literatura canônica.

A afi rmação de Justino, qualifi cando seus autores de apóstolos, não é

mais admissível hoje em dia, como se verá.

Quanto à data da redação dos Evangelhos, A. Tricot afi rma que o de Mateus, o de Marcos e o de Lucas foram redigidos antes de 70: isto não é aceitável, salvo, pode ser, para Marcos. Esse Comentador se esforça, após muitos outros, em apresentar os autores dos Evangelhos como apóstolos ou compa- nheiros de Jesus e recua, a partir daí, as datas da redação, que os situam muito perto da época em que Jesus viveu. Quanto a João, que A. Tricot faz viver até por volta do ano 100, os cristãos estão habituados, há muito tempo, a vê-lo representado muito perto de Jesus em circunstâncias solenes, mas é bem difícil afi rmar que ele é o autor do Evangelho que leva o seu nome. O apóstolo João (como Mateus) para A. Tricot e outros comentadores, é a testemunha autoriza- da e qualifi cada dos fatos que narra, enquanto que a maioria dos críticos não mantém a hipótese segundo a qual ele teria redigido o quarto evangelho.

Mas, então, se os quatro evangelhos em questão não podem razoavel- mente ser considerados como as “memórias” dos apóstolos ou de companhei- ros de Jesus, qual é a sua origem?

O. Culmann, no seu livro O Novo Testamento21, escreve, a esse respeito

que os evangelistas eram apenas “porta-vozes da comunidade cristã primitiva que fi xou a tradição oral. Durante trinta ou quarenta anos, o Evangelho existiu quase que exclusivamente sob a forma oral: ora, a tradição oral transmitiu, so- bretudo, palavras e narrações isoladas. Os evangelistas urdiram as ligações , cada um à sua maneira, cada um com personalidade própria e suas preocupações

teológicas particulares, entre as narrações e as palavras que eles receberam da tradição ambiente. O agrupamento das palavras de Jesus, como cadeia de narra- ções por fórmulas de ligação muito vagas tais como “depois disso”, “logo” etc.; em suma, o ‘’quadro” de sinóticos22 são, portanto, de ordem puramente literária

e não de fundamento histórico”.

O mesmo autor continua: «É preciso notar, enfi m, que são as necessida- des da predicação do ensinamento do culto, mais que um interesse biográfi co que orientaram a comunidade primitiva na fi xação dessa tradição sobre a vida de Jesus. Os apóstolos ilustravam as verdades da fé que eles pregavam, contando os acontecimentos da vida de Jesus, e seus sermões é que davam lugar à fi xação das narrações. As palavras de Jesus foram transmitidas particularmente num ensinamento catequético da Igreja primitiva».

Os comentadores da Tradução Ecumênica da Bíblia não evocam de outro modo a composição dos Evangelhos: formação de uma tradição oral sob a infl u- ência da pregação dos discípulos de Jesus e de outros pregadores; conservação desses materiais que se encontrará afi nal, nos Evangelhos para a pregação, para a liturgia, para o ensinamento dos fi éis; possibilidade de uma consubstanciação23

precoce sob a forma escrita de certas confi ssões de fé, de certas palavras de Jesus, de narrações da Paixão, por exemplo; recursos dos evangelistas a essas formas escritas diversas, assim como aos dados da tradição oral para produ- zir os textos “adaptando-se aos diversos meios, respondendo às necessidades das Igrejas, exprimindo uma refl exão sobre a Escritura, retifi cando os erros e replicando ao mesmo tempo aos argumentos dos adversários. Os evangelistas teriam assim recolhido e escrito, segundo sua perspectiva pessoal, o que lhes era dado pelas tradições orais”.

Uma tal tomada de posição coletiva, que emana de mais de cem interpre- tadores do Novo Testamento, católicos e protestantes, difere notadamente de linha defi nida pelo Concílio do Vaticano II, na constituição dogmática sobre a revelação elaborada entre 1962 e 1965. Encontrar-se-á mais adiante uma primeira referência a esse documento conciliar, relativo ao Antigo Testamento. O Concí- lio pôde declarar, a esse respeito, que os livros que o compuseram “continham o imperfeito” e o “caduco”, mas ele não formulou semelhantes reservas a pro- pósito dos Evangelhos. Muito ao contrário, pode-se ler o que segue:

“Não escapa a ninguém que entre todas as Escrituras, mesmo aquelas

22 - Os três Evangelhos: de Marcos, Mateus e Lucas.

23 - Presença de Cristo na eucarisƟ a, como a entendem os luteranos; União de dois ou mais corpos em uma só substância

do Novo Testamento, os Evangelhos, possuem uma superioridade merecida no sentido de que eles constituem o testemunho por excelência sobre a vida e os ensinamentos do Verbo encarnado, nosso Salvador. Sempre, e em tudo, a Igreja manteve e mantém a origem apostólica dos quatro Evangelhos. Com efeito, o que os Apóstolos pregaram, sob a ordem de Cristo, em seguida, eles mesmos e os homens de sua grei24, sob a inspiração divina do Espírito, nos transmitiram

em escritos que são o fundamento da fé, a saber o Evangelho quadriforme, segundo Mateus, Marcos, Lucas e João”.

“Nossa Santa Madre Igreja sustentou e sustenta fi rmemente, e com a maior constância, que os quatro Evangelhos, dos quais ela afi rma sem hesitar a historicidade, transmitem fi elmente o que Jesus, o fi lho de Deus, durante sua vida entre os homens, realmente, fez e ensinou para sua salvação eterna, até o dia em que foi levado ao céu... Os autores sacros compõem logo os quatro Evangelhos de maneira a nos confi ar sempre sobre Jesus as coisas verdadeiras e sinceras”.

É a afi rmação, sem nenhuma ambiguidade, da fi delidade da transmissão dos atos e palavras de Jesus pelos Evangelhos.

Não se nota muita compatibilidade entre esta afi rmação do Concílio e aqueles dos autores precedentes citados, notadamente:

“Não é preciso tomar ao pé da letra” os Evangelhos, “escritos de cir- cunstâncias” ou ‘’de combate” nos quais os autores “consignam por escrito as tradições de as comunidades sobre Jesus”. (R.P. Kannengiesser).

Os Evangelhos são textos “adaptados aos diversos meios, respondendo às necessidades da Igreja, exprimindo uma refl exão sobre a Escritura, corrigindo os erros, enfrentando ao mesmo tempo os argumentos dos adversários. Os evangelistas reconhecem também e puseram por escrito, segundo sua perspec- tiva pessoal, o que lhes era dado penas tradições orais” (Tradução Ecumênica da Bíblia).

É evidentíssimo que, entre conciliar a declaração e as tomadas de posição mais recentes, nos ensinamentos em presença de afi rmações que se contradizem. Não é possível conciliar a declaração do Vaticano II, segundo a qual se deverá encontrar nos Evangelhos uma transmissão fi el dos atos e palavras de Jesus, com a existência desses textos de contradições, incertezas, impossibilidades na- turais e afi rmações contrárias à realidade das coisas devidamente estabelecidas.

Ao contrário, se olharmos os Evangelhos como a expressão de pers- pectivas próprias dos coletores das tradições orais pertencentes a comunidades diversas, como escritos de circunstâncias ou de combate, não podemos nos espantar por encontrar nos Evangelhos todos esses defeitos, que são a marca de sua confecção pelos homens em tais circunstâncias. Eles podem ser absolu- tamente sinceros, embora relatem fatos dos quais eles não põem em dúvida a exatidão, fornecendo-nos narrações em contradição com as dos outros autores ou, então por razões de rivalidades de ordem religiosa entre comunidades, apre- sentam as narrações de vida de Jesus, segundo uma óptica bem diferente da dos adversários.

Já vimos que o contexto histórico está de acordo com esta última ma- neira de conceber os Evangelhos. Os dados que possuímos sobre os próprios textos a confi rmam totalmente.

No documento A Bíblia, o Alcorão e a Ciência (páginas 64-68)