• Nenhum resultado encontrado

Os Capítulos 6, 7 e 8 do Gênesis são consagrados à narração do di- lúvio. Exatamente, há duas narrações não colocadas lado a lado, mas dissociadas em passagens intricadas umas nas outras, com uma aparência de coerentes na sucessão dos diversos episódios. Há, em realidade, nesses três capítulos, con- tradições fl agrantes. Aqui, ainda, elas se explicam pela existência de duas fontes claramente distintas: a fonte Yahvista e a fonte Sacerdotal.

Como já foi visto, elas formavam uma bagunça contraditória: cada texto original foi decomposto em parágrafos ou em frases, os elementos de uma fonte alternando com os elementos de outra fonte, de forma que se possa,

por toda a narração de uma fonte a outra, dezessete vezes em aproximadamente cem linhas do texto francês.

A narração é, num conjunto, o que segue:

Sendo a perversão dos homens geral, Deus decidiu destrui-los com todos os outros seres vivos. Ele preveniu Noé e lhe ordenou a construção de uma Arca onde faria entrar sua mulher, seus três fi lhos e suas três mulheres, as- sim como outros seres vivos. Para estes últimos, as duas origens são diferentes: uma passagem da narração (de origem Sacerdotal) indica que Noé tomará um casal de cada espécie; depois, na passagem seguinte (de origem Yahvista), Deus ordena que tomasse, dentre os animais ditos puros, sete de cada espécie, macho e fêmea, e, dentre os animais ditos impuros, um só par. Mas, um pouco mais adiante, é determinado que Noé não fará entrar efetivamente na arca apenas um casal de cada animal. Os especialistas, como R.P de Vaux, afi rmam que se trata aqui de uma passagem de narração Yahvista modifi cada.

Um parágrafo (de origem Yahvista) indica que o agente do dilúvio é a água da chuva, mas outra causa do dilúvio (de origem Sacerdotal) é apresentada como dupla: a água da chuva e das fontes terrestres.

A terra inteira fi cou submersa até o cimo das montanhas. Toda vida foi aniquilada. Depois de um ano, Noé saiu da arca, que estava pousada sobre o monte Ararat depois da baixa das águas.

Acrescentamos ainda que, segundo as informações, o dilúvio tem uma duração diferente: quarenta dias de elevação para o texto Yahvista, cento e cinquenta dias para o texto Sacerdotal.

O texto Yahvista não determina em que época se coloca o aconte- cimento na vida de Noé, mas o texto Sacerdotal o situa quando Noé teria seiscentos anos. Este mesmo texto dá as indicações, por sua genealogia, sobre sua localização em relação a Adão e em relação a Abraão. Tendo Noé nascido, segundo cálculos feitos após as indicações do Gênesis, 1056 anos depois de Adão (ver o quadro dos ancestrais de Abraão), o Dilúvio aconteceu, portanto, 1655 anos após a criação de Adão. Em relação a Abraão, o Gênesis situa o dilú- vio 292 anos antes do nascimento desse patriarca.

Ora, segundo o Gênesis, o dilúvio teria atingido todo o gênero humano e todos os seres vivos criados por Deus teria sido destruídos sobre a

terra: a humanidade seria reconstruída a partir dos três fi lhos de Noé, de suas mulheres, de tal maneira que, quando, cerca de três séculos mais tarde, nascesse Abraão, ele encontraria uma humanidade refeita em sociedade. Como, em tão pouco tempo, esta reconstituição poderia ter se produzido? Esta simples cons- tatação tira do texto verossimilhança.

Mais tarde, os dados históricos demonstram sua incompatibilidade com os conhecimentos modernos. Com efeito, situa-se Abraão nos anos 1800- 1850 A.C Se o dilúvio teve lugar, como o Gênesis sugere, por suas genealogias, aproximadamente três séculos antes do Abraão, seria necessário colocá-lo no século XXI ou XXII A.C. É a época em que conhecimentos históricos moder- nos permitem afi rmar: já fl oresciam civilizações em vários pontos da Terra e cujos vestígios passaram à posteridade.

É, por exemplo para o Egito, o período que precede o Médio Im- pério (2100 A.C.), aproximadamente a data do primeiro período intermediário antes da 11ª dinastia. É na Babilônia a 3ª dinastia de Ur. Ora, sabe-se perfeitamen- te que não houve interrupção nessas civilizações, portanto, nada de destruição envolvendo toda a humanidade como a Bíblia quer.

Não se pode, por conseguinte, considerar os três textos bíblicos como trazendo aos homens uma revelação dos fatos, conforme a verdade. For- çado é admitir, se se quer objetivo, que os textos em questão, chegados até nós, não representam a expressão da verdade. Deus teria revelado outra coisa que não a verdade? Não se pode conceber, com efeito, a ideia de um Deus instruin- do os homens com a ajuda de fi cções e, mais ainda, de fi cções contraditórias. Chega-se então, naturalmente, a levantar a hipótese de uma alteração pelos homens, ou bem de tradições verbalmente de geração a geração, ou então dos textos quando essas tradições foram fi xadas. Quando se sabe que uma obra como o Gênesis foi modifi cada pelo menos duas vezes, o espaço de três séculos, como admirar-se de se encontrar nela dúvidas ou narrações incompatíveis com a realidade das coisas, depois que os progressos dos conhecimentos humanos permitiram, se não tudo saber, pelo menos, possuir de certos acontecimentos um conhecimento sufi ciente para que se possa julgar o seu grau de compatibi- lidade com as narrações antigas concernentes a estes acontecimentos? Haveria coisa mais lógica do que levar-se em conta esta interpretação dos erros dos textos bíblicos que refl etem apenas posições dos homens? É pena que ela não seja considerada pela maioria dos comentadores, tanto judeus como cristãos. Tampouco, os argumentos invocados por eles merecem que se lhes dê atenção.

POSIÇÃO DOS AUTORES CRISTÃOS DIANTE DOS

No documento A Bíblia, o Alcorão e a Ciência (páginas 48-51)