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AS ÚLTMAS PALAVRAS DE JESUS O PARACLETO DO EVANGELHO DE JOÃO

No documento A Bíblia, o Alcorão e a Ciência (páginas 109-115)

João é o único evangelista a relatar, no fi m da última refeição de Jesus e antes de sua prisão, o episodio das derradeiras entrevistas com os apóstolos, o qual se completa com discurso bem longo: quatro capítulos do Evangelho de João (14 a 17) são consagrados a essa narração, da qual não se encontra nenhu- ma citação nos outros evangelhos. E, no entanto, esses capítulos de João tratam de questões primordiais, de perspectivas de futuro de importância fundamental, expostas com toda a grandeza e a solenidade, que caracterizam essa cena das despedidas do Mestre aos seus discípulos.

Como podemos explicar que esteja inteiramente ausente em Mateus, Marcos e Lucas a narração e despedidas tão comoventes que contêm o testa- mento espiritual de Jesus? Pode-se questionar: o texto existiu inicialmente nos três primeiros evangelistas? Teria sido suprimido logo a seguir? E por quê? Di- gamos, de passagem que nenhuma resposta pode ser fornecida; o mistério fi ca insolúvel sobre essa enorme lacuna, na narração dos três primeiros evangelistas.

O que rege esta narração é - isto se concebe num encontro supremo - a perspectiva do futuro dos homens, evocada por Jesus, e o cuidado do Mestre em dirigir aos seus discípulos, e através deles à humanidade inteira, suas reco- mendações e seus mandamentos, e em defi nir qual será, em defi nitivo, o guia que os homens deverão seguir depois do seu desaparecimento. O texto do Evangelho de João, e somente ele designa, explicita o nome grego Paracletos, tornado Paraclet em francês. Eis aqui, segundo a Tradução Ecumênica da Bíblia, Novo Testamento, as passagens essenciais: “Se vós me amais, vós vos aplicareis a observar meus mandamentos; de minha parte eu rogarei ao Pai: ele nos dará um outro paracleto (14:15-16)”.

O que signifi ca Paracleto? O texto que possuímos atualmente do Evan- gelho de João explica o seu sentido, nestes termos:

“O Paracleto, o Espírito Santo que o Pai enviará em meu nome, vos comunicará todas as coisas, e vos fará relembrar de tudo o que eu vos tenho dito” (14:20).

“Ele dará (também) testemunho de mim” (15-16).

não virá a vós; se ao contrário, eu partir, eu vô-lo enviarei. E ele, por sua vinda, convencerá o mundo a respeito do pecado, da justiça e do julgamento...” (16:7- 8).

“Quando vier o Espírito da verdade, ele vos guiará a toda verdade; por- que não falará por si mesmo, mas dirá tudo o que tiver ouvido, e vos anunciará as coisas que hão de vir. Ele me glorifi cará...” (16:13-14).

(É de se notar que as passagens não citadas aqui dos Capítulos 14-17 do Evangelho de João não modifi cam de modo algum o sentido geral à essas citações).

Submetendo-o a uma leitura rápida, o texto francos que estabelece a identidade ‹Ca palavra grega Paracleto com o Espírito Santo não merece, mais frequentemente, atenção. Além disso, os subtítulos do texto, geralmente em- pregado nas traduções e nos termos dos comentários apresentados nas obras de vulgarização, orientam o leitor para o sentido que a ortodoxia consagrada quer dar a essas passagens. Qualquer dúvida ou difi culdade de compreensão, ali estaria, para oferecer quaisquer esclarecimentos, o Petit Dicionnaire du Noveau Testament de A. Tricot. Da autoria desse comentador, no artigo “Paracleto”, pode-se ler, efetivamente. o seguinte:

“Este nome ou esse título, transcrito do grego em francês. não é em- pregado no Novo Testamento senão por São João: Quatro vezes, quando ele relata o discurso de Jesus depois da Ceia43” (14:16 e 26; 15:26; 16:7) e, uma vez, na

sua primeira epistola (2:1). No Evangelho Junino, a palavra se aplica ao Espírito Santo; na Epístola, ao Cristo. “Paracleto” era um termo comumente empregado pelos judeus helenistas do século I no sentido de intercessor, de defensor. (...) O Espírito, anuncia Jesus, será enviado pelo Pai e pelo Filho e terá por missão específi ca substituir o Filho no papel de salvação, exercido por este durante sua vida mortal em benefício de seus discípulos. O espírito intervirá e agirá como substituto do Cristo, como Paracleto ou intercessor todo poderoso.”

Este comentário faz, portanto, do Espírito Santo, o guia último dos homens depois da desaparição de Jesus. Estaria ele de acordo com o texto de João?

A questão deve ser colocada porque, a priori, parece- curioso-que se possa atribuir ao Espírito Santo o último parágrafo citado mais adiante: “Ele

43 - Em realidade, é exatamente no decorrer da “Ceia” que, para João, Jesus pronunciou o longo cujo assunto é o Paracleto, discurso não relatado pelos outros evangelistas.

não falará por si mesmo, mas ele dirá o que ouvir e ele vos comunicará tudo o que de vir”. Parece inconcebível que se ouve dar ao Espírito Santo os poderes de falar e dizer o que ele ouve... Até onde vai meu conhecimento, esta questão que a lógica manda por em destaque, não é geralmente objeto de comentários.

Para ter uma ideia exata do problema, é necessário repousar-se ao texto grego de base. Isso é muito importante, porque se atribui ao evangelista João tê-lo escrito em grego e não em outra língua. Ó texto grego consultado foi o Novum Testamentum Graecer44.

Toda crítica textual séria começa pela pesquisa das variantes. Aqui parece que, no conjunto dos manuscritos comuns do Evangelho de João, não existem outras variantes susceptíveis de alterar o sentido da frase senão aquela da passa- gem 14: 26 da famosa versão em língua siríaca chamada Palimpsesto (Escrito no século IV ou V e descoberto no monte Sinai, em 1812, por Agnés S. Lewis, esse manuscrito é assim chamado porque o texto inicial tinha sido recoberto por um outro texto que, apagado, fez aparecer o primeiro.). Nela não se menciona o Espírito Santo, mas simplesmente o Espírito. O escriba fez uma simples omissão, ou, não, colocado perante um texto a recopiar, o qual pretendia falar ouvir e falar o Espírito Santo, não ousou escrever o que lhe pareceu um absurdo? Além dessa observação, não há jeito para insistir sobre outras variantes, a não ser nas variantes gramaticais que não mudam em nada o sentido geral. O essencial é que o que aqui está, posto sobre a signifi cação precisa dos verbos “ouvir” e “falar” valha para todos os manuscritos do Evangelho de João, esse é o caso.

O verbo “falar” da tradução portuguesa é o verbo grego “laleô” que teve o sentido geral de emitir os sons e o sentido particular de falar. Este verbo reaparece, muito frequentemente, no texto grego dos Evangelhos para designar uma declaração solene de Jesus no curso de sua predicação. Parece, portanto, que a comunicação aos homens, de que se tem conta aí, não consiste de modo algum em uma inspiração que seria o ativo do Espírito Santo, mas que ela tem caráter material evidente, em razão da noção da emissão de sua ligação à palavra grega que a defi niu.

Os dois verbos gregos AKOUÔ e LALEÔ defi nem, portanto, as ações concretas que não podem ter relação senão a um ser dotado de um órgão de audição e de um órgão da palavra. Aplicados, por consequência, ao Espírito Santo, não é possível.

Assim, tal como nos é dado pelos manuscritos gregos, o texto dessa pas- sagem do Evangelho de João é perfeitamente incompreensível se aceito, em sua íntegra, com as palavras Espírito Santo da frase: (14:26): “O Paracleto, o Espírito Santo que o Pai enviará em seu nome...” etc.; única frase que, no Evangelho de João, estabelece identidade entre Paracleto e Espírito Santo.

Mas se se suprimir “Espírito Santo” (to pneuma to agion) dessa frase, todo o texto de João apresenta uma signifi cação extremamente clara. Ela é, aliás, concretizada por outro texto evangélico, a primeira epístola onde João utiliza a mesma palavra Paracleto para designar simplesmente Jesus, enquanto inter- cessor ao lado de Deus45. E, quando Jesus diz, segundo João (14:16): “Eu rogarei

ao Pai: Ele vos enviará um outro Paracleto”, ele quer dizer que Ele enviará aos homens um “outro” intercessor como ele mesmo foi, ao lado de Deus, em seu favor, quando de sua vida terrestre.”

É-se, então, conduzido, com toda a lógica, a ver no Paracleto de João um ser humano como Jesus, dotado de faculdades de audição e de palavra, facul- dades que o texto grego de João implica de modo formal. Jesus anuncia, pois, que Deus enviará mais tarde a esta terra, um ser humano para aqui ter o papel defi nido por João que é, seja dito em uma palavra, o de um profeta escutando a voz de Deus e repetindo aos homens sua mensagem. Tal é a interpretação lógica do texto de João, se dermos às palavras o seu sentido real.

A presença de “Espírito Santo”, no texto que nós possuímos, hoje, pode- ria, perfeitamente, decorrer de um acréscimo posterior, completamente voluntá- rio, destinado a modifi car o sentido primitivo duma passagem que, anunciando a vinda do profeta depois de Jesus, estava em contradição com os ensinamentos das Igrejas cristãs nascentes, querendo que Jesus fosse o último dos Profetas.

CONCLUSÕES

Os fatos que foram relacionados aqui e os comentários citados de vários exegetas cristãos muito eminentes refutaram as afi rmações da ortodoxia, tendo, como apoio, a linha adotada pelo último concílio, concernente à historicidade absoluta dos Evangelhos que teriam fi elmente transmitido o que Jesus realmen- te fez e ensinou.

45 - Muitas das tradições e comentários, sobretudo, anƟ gos, dos Evangelhos, traduzem a palavra por consolador, o que é um erro completo.

Os argumentos que foram apresentados são de várias ordens. Em pri- meiro lugar, as próprias citações dos Evangelhos, estabelecendo algumas contra- dições fl agrantes. Não se pode crer na existência de dois fatos que se contra- dizem. Não podem ser aceitas certas improváveis ou algumas informações que não condizem com os dados perfeitamente estabelecidos pelos conhecimentos modernos. As duas genealogias de Jesus que os Evangelhos apresentam e o que eles implicam de contra verdade são, a esse respeito, perfeitamente demonstra- tivas.

Muitos cristãos ignoram essas contradições, improváveis ou incompa- tibilidades com a ciência moderna e fi cam estupefatos quando as descobrem, infl uenciados como estavam pela leitura dos comentários a oferecer sutis expli- cações destinadas a tranquilizá-los, com apoio no lirismo apologético. Alguns exemplos bem característicos, foram fornecidos sobre ã habilidade de certos exegetas em camufl ar o que eles chamam pudicamente de “difi culdades”. Muito raras são, com efeito, as passagens dos Evangelhos reconhecidas como inautên- ticas, quando a Igreja as declarou ofi cialmente canônicas.

Os trabalhos da crítica textual moderna colocaram em evidência os da- dos que, segundo R.P. Kannengiesser, constituem uma “revolução dos métodos exegéticos” e levam a “não mais tomar ao pé da letra” os fatos comentados a respeito de Jesus pelos Evangelhos “escritos de circunstâncias” ou “de com- bate”. Os conhecimentos modernos, tendo esclarecido a história do judeu- -cristianismo e as rivalidades entre a comunidade, explicam a existência de fatos que desconcertam os leitores de nossa época. A concepção de evangelistas testemunhas oculares não é mais defensável, mas ela é, ainda em nossos dias, a de numerosos cristãos. Os trabalhos da Escola Bíblica de Jerusalém (R.P. Benoit e R.P. Boismard) demonstram muitíssimo bem que os Evangelhos foram escritos, revistos e corrigidos várias vezes.

Também o leitor do Evangelho é prevenido por eles de que “deve renun- ciar, em mais de um caso, a ouvir a voz direta de Jesus”.

O caráter histórico dos Evangelhos não é discutível, mas esses documen- tos, acima de tudo, através das narrações concernentes a Jesus, sobre a menta- lidade dos autores, porta-vozes da tradição das comunidades cristãs primitivas às quais eles pertenceram e, em particular, sobre as lutas entre judeu-cristãos e Paulo, nos informam: os trabalhos do cardeal Daniélon pesam com autoridade sobre esses pontos.

mentos da vida de Jesus por evangelistas, que tinham por fi m defender um ponto de vista pessoal, como fi car espantado com a omissão de certos acon- tecimentos, como fi car espantado com o aspecto romanceado da descrição de alguns outros?

Somos levados a comparar os Evangelhos às nossas canções de gestas da literatura medieval. Sugestiva é a comparação que se pode fazer com a canção de Rolando, a mais conhecida de todas, que relata, sob um aspecto romanceado, um acontecimento real. Sabemos que ela relata um episódio autêntico: uma emboscada que aniquilou a retaguarda de Carlos Magno, comandada por Ro- lando na garganta de Roncevales. Este episódio, de importância secundária, teria acontecido, segundo a crônica histórica (Eginhard), a l5 de outubro de 778; foi ampliado às dimensões de um grandessíssimo feito de armas, de um combate de guerra santa. A narração é fantasista, mas esta fantasia não pode eclipsar a realidade de uma das lutas que Carlos Magno teve de empreender, para garantir suas fronteiras contra as tentativas de penetração dos povos vizinhos: aí está o que há de autêntico; o modo épico da narração não o desfaz.

Para os Evangelhos, dá-se o mesmo: as fantasmagorias de Mateus, as con- tradições fl agrantes entre os Evangelhos, as improváveis, as incompatibilidades com os dados da ciência moderna, as alterações sucessivas dos textos fazem com que os Evangelhos contenham alguns capítulos e algumas passagens de- pendentes exclusivamente da imaginação humana. Mas essas falhas não levam a pôr em dúvida a existência da missão de Jesus: as dúvidas pairam somente sobre a sua realização.

O ALCORÃO E A CIÊNCIA MODERNA

No documento A Bíblia, o Alcorão e a Ciência (páginas 109-115)