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EVANGELHO SEGUNDO MATEUS

No documento A Bíblia, o Alcorão e a Ciência (páginas 68-72)

Dos quatro Evangelhos, o de Mateus ocupa o primeiro lugar na ordem de apresentação dos livros do Novo Testamento. Isto é perfeitamente justifi - cado, porque este Evangelho não é, de certo modo, senão o prolongamento do Antigo Testamento: está escrito para demonstrar que “Jesus completou a história de Israel”; como escreveram os comentadores da Tradução Ecumênica da Bíblia, à qual faremos grandes citações. Por isso, Mateus faz apelo constan- temente a citações do Antigo Testamento, mostrando que Jesus se comporta como o Messias esperado pelos judeus.

Este Evangelho começa por uma genealogia de Jesus25. Mateus a faz re-

montar a Abraão por David. Ver-se-á mais adiante o erro do texto, geralmente esquecido ao silêncio pelos comentadores. Não importa o que ele seja, a inten- ção de Mateus era evidente: dar em conjunto, por esta fi liação, o sentido geral de seu livro. O autor segue a mesma ideia pondo constantemente em evidência a atitude de Jesus perante a lei judaica, da qual os grandes princípios - oração, jejum e esmola - são aqui retomados.

Jesus pretende endereçar seu ensinamento, acima de tudo e por priori- dade, a seu povo. Ele fala assim aos doze apóstolos: “Não tomeis o caminho dos

pagãos e não entreis numa cidade de Samaritanos26; de preferência, procurai as

ovelhas perdidas da casa de Israel” (Mateus 10:5-6). “Eu não fui enviado senão às ovelhas perdidas da casa de Israel” (Mateus 15:24). No fi nal de seu Evangelho, Mateus estende, secundariamente a todas as nações, o apostolado dos primeiros discípulos de Jesus, dando-lhes esta ordem: “Ide, portanto, por todas as nações e fazer discípulos” (Mateus 28:19), mas a partida deve-se fazer, por prioridade, para a “casa de Israel”. A. Tricot diz desse Evangelho: “Sob a vestimenta grega, o livro é judeu pela carne, pelos ossos e pelo espírito, trazendo dele alento e as marcas distintivas”.

Essas considerações, por si só, situam a origem do Evangelho de Mateus em uma tradição comunitária judeu-cristã que, como escreve O. Culmann, “se esforça por romper, ainda que mantendo a continuidade com o Antigo Testa- mento, as amarras que o prendiam ao judaísmo. Os centros de interesse, o tom geral desse Evangelho, sugerem a existência de uma situação tensa”.

Os fatores de ordem política não são possivelmente estranhos ao texto. A ocupação romana da Palestina torna naturalmente vivo o desejo do país ocupado de ver sobrevir sua libertação e roga-se a Deus para intervir a favor do povo, que Ele elegeu todos e do qual Eleée o soberano todo poderoso, e que pode, como Ele o fez muitas vezes, ao longo da História, trazer o seu apoio direto aos negócios dos homens.

Qual é a personalidade de Mateus? Digamos de passagem que não se admite hoje que se traia de um companheiro de Jesus. A. Tricot o apresenta, entretanto, assim em seu comentário da tradução do Novo Testamento em 1960: “Mateus, aliás, Levi, por seu trabalho publicano27 ou de fi scalização, era

empregado do escritório da Alfândega ou de portagem de Cafarnaum, quando Jesus o chamou pata fazer dele um de seus discípulos”. É o que pensavam os Padres da Igreja, como Orígenes, Jerônimo e Epifânio. Não é mais o que se cré em nossos dias. Um ponto não contestado é que o autor é judeu; o vocabulário é palestino, a redação é grega. O autor se dirige, escreve O. Culmann, “as pessoas que, mesmo falando grego, conhecem os costumes judeus e a língua aramaica”.

Para os comentadores da Tradução Ecumênica, a origem desse Evangelho parece ser a seguinte: “Ordinariamente, pensa-se que ele foi escrito na Síria, pode ser em Antioquia [...], ou na Fenícia, porque nessas regiões vivia um gran-

26 - Os samaritanos Ɵ nham o código religioso a Torá ou Pentateuco; eles esperavam a vinda do Messias e eram a maior parte das observações do Judaísmo, mas eles Ɵ nham edifi cado um templo concorrente ao de Jerusalém

de número de judeus28 [...]. Pode-se entrever uma polémica contra o judaísmo

sinagogal ortodoxo dos fariseus, tal como se manifesta na assembleia sinagogal de Jamina pelos anos 80. Nessas condições, numerosos são os autores que datam o primeiro Evangelho pelos anos 80-90; pode ser um pouco mais cedo, não se pode chegar a uma inteira certeza sobre o assunto.”

Em vista da impossibilidade de se conhecer precisamente o nome do autor, é conveniente que nos contentemos com alguns traços delineados no próprio Evangelho: o autor é reconhecido pela sua profi ssão. Versados nas Escrituras e nas tradições judias, conhecendo, respeitando, mas interpelando rudemente os chefes religiosos de seu povo, experimentado mestre na arte de ensinar e de fazer compreender Jesus aos seus ouvintes, insistindo sempre sobre as consequências práticas de ensinamento, ele corresponderá muito bem à caracterização de um letrado judeu tornado cristão, um senhor da matéria “que tira do seu tesouro coisas novas e velhas”, como Mateus evoca em 13:52. Estamos bem longe do empregado do escritório de Cafarnaum, chamado Levi por Marcos e Lucas, e transformado em um dos doze apóstolos.

Todos concordam em pensar que Mateus escreveu seu Evangelho a partir de fontes comuns com Marcos e com Lucas. Mas sua narração vai diferir, e sobre pontos essenciais, como nós veremos a seguir. E, portanto, Mateus utilizou largamente o Evangelho de Marcos que não era discípulo de Jesus (O. Culmann).

Mateus torna sérias liberdades com os textos. Constata-se isso no que concerne ao Antigo Testamento, a propósito da genealogia de Jesus, colocada no início de seu Evangelho. Ele insere em seu livro narrações, propriamen- te falando, incríveis. É o qualifi cativo que emprega, em sua obra citada mais adiante, R.P.Kannengiesser a respeito de um episódio da ressurreição de Jesus: o da vigilância. Ele destaca a incerteza dessa história de vigilantes militares do túmulo, “esses soldados pagãos” que “relatam o sucedido, não a seus superiores hierárquicos, mas aos grandes sacerdotes que lhes pagam para contar mentiras”. Ele acrescenta, entretanto: “É preciso abster-se de zombar, porque a interação de Mateus é infi nitamente respeitável, e ele integra, à sua maneira, um dado antigo da tradição oral à sua obra escrita. Mas sua mise en scène é digna de Jesus cristo Superstar29.

Esse julgamento sobre Mateus emana, lembremo-nos, de um eminente

28 - Pergunta-se se a comunidade judeu-cristã de Mateus não poderia estar situada também em Alexandria. O. Culmann cita esta hipótese, entre muitas outras.

teólogo, professor do Instituto Católico de Paris. Mateus dá em sua narração, aos acontecimentos que acompanharam a morte de Jesus, um outro exemplo de sua fantasia.

«Eis que o véu do santuário se rasgou em dois, alto a baixo; a terra tremeu, fenderam-se as rochas, abriram-se os túmulos, os corpos de numerosos santos ressuscitaram, saindo dos túmulos depois de sua ressurreição, eles entra- ram na cidade santa e apareceram a um grande número de pessoas».

Esta passagem de Mateus (27:51-53) não tem seu correspondente nos outros Evangelhos. É difícil imaginar como os corpos dos santos em questão puderam ressuscitar depois da morte de Jesus (à véspera-do sábado, dizem os Evangelhos), e sair de seus túmulos somente depois de suo ressurreição (o dia seguinte ao sábado, segundo, as mesmas variações).

É, pode ser, em Mateus, que se encontra a inverossimilhança mais carac- terizada e menos discutível de todos os Evangelhos, que um de seus autores tenha posto na boca do próprio Jesus. Ele relata assim, em 12:38-40, o espírito do milagre de Jonas:

«Jesus está no meio dos escribas e dos fariseus que se dirigem a ele nesses termos: “Mestre, nós queremos que você nos faça ver um milagre”. Jesus lhes respondeu: «Geração má e adúltera (sic) que pede um prodígio. Mas nenhum prodígio lhe será dado senão o do profeta Jonas. Porque assim como esteve Jonas três dias e três noites no ventre do monstro, assim o fi lho do Homem estará no seio da terra três dias e três noites...” (Texto da Tradução Ecumênica).

Jesus anuncia portanto que fi cará enterrado três dias e três noites. Ora, Mateus e com ele, Lucas e Marcos, situam a morte e a inumação de Jesus na véspera do sábado, o que faz, certamente, considerar a sua permanência na terra em três dias (três êmeras no texto grego). Mas nesse lapso de tempo não se podem compreender mais do que duas noites e não três noites (treis nuktas no texto grego).30

Os comentadores dos Evangelhos fazem muito frequentemente silêncio diante desse episódio. No entanto, R. P. Roguet levanta a inverossimilhança, pois ele nota que Jesus “não fi cou no túmulo” senão três dias (logo, um só completo) e duas noites. Mas acrescenta ele.

30 - Em outra passagem do Evangelho, Mateus faz uma segunda menção desse episódio, mas sem precisar o tempo (16:1-4). Sucede o mesmo em Lucas (11:29-32). Para Marcos, ver-se-á mais longe, Jesus teria declarado que não será dado nenhum sinal por ele a esta geração (Marcos 8:11-12)

“A expressão é um clichê e não quer dizer outra coisa senão três dias”. É des- gostante que os comentadores tenham se limitado a usar tais argumentos, que não querem nada dizer de positivo, quando seria tão satisfatório para o espírito sugerir que tal enormidade pudesse provir do erro de um escriba!

Além dessas incertezas, o que caracteriza, antes de tudo, o Evangelho de Mateus, é que ele é de uma comunidade judeu-cristã que infringe o desterro do judaísmo, fi cando na linha do Antigo Testamento. Tem ele, sob ponto de vista da história do judeu-cristianismo, uma importância considerável.

No documento A Bíblia, o Alcorão e a Ciência (páginas 68-72)