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RETROSPECTO HISTÓRICO O Judeu-Cristianismo e São Paulo

No documento A Bíblia, o Alcorão e a Ciência (páginas 60-64)

A maior parte dos cristãos acredita que os Evangelhos foram escritos por testemunhas diretas da vida de Jesus e que eles se constituem, por esse motivo, em testemunhos indiscutíveis dos acontecimentos que ilustraram sua existência e sua predicação. Em face de tais garantias de autenticidade, como poderemos discutir os ensinamentos que eles se retiram, como poder-se-ia por em dúvida a avaliação da instituição Igreja pela aplicação das diretrizes gerais dadas pelo próprio Jesus? As edições atuais de vulgarização dos Evangelhos contêm os comentários destinados a veicular essas noções ao público.

Aos fi éis apresenta-se como um axioma a qualidade de testemunhas oculares dos redatores dos Evangelhos. Os Evangelhos não foram chamados por São Justino, em meados do século II, de “As Memórias dos Apóstolos”? Além disso, registra-se tanta precisão sobre os autores, que se pergunta como se poderia duvidar de sua exatidão: Mateus era um personagem bem conheci- do, “Empregado do escritório da alfândega ou do fi sco de Cafarnaum”; sabe-se até que ele conhecia o aramaico e o grego. Marcos é também perfeitamente identifi cado como colaborador de Pedro, ninguém duvida que ele não seja também uma testemunha ocular. Lucas é o “querido médico” do qual fala Paulo: as informações sobre ele são muito precisas. João, fi lho de Zebedeu, o pescador do lago de Genesaré, é o apóstolo sempre ao lado de Jesus.

Os estudos modernos sobre o início do cristianismo mostram que esta maneira de apresentar as coisas não corresponde absolutamente à realidade. Ver-se-á o que ocorreu entre os autores dos Evangelhos. Para o que concer- ne aos decênios que se seguiram à missão de Jesus, é preciso saber que os acontecimentos não foram absolutamente desenrolados como se disse e que a chegada de Pedro a Roma não estabeleceu, de modo algum, a Igreja sobre seus fundamentos. Muito ao contrário, entre o momento em que Jesus deixa esta terra ate a metade do século, isto é, durante mais de um século, assiste-se a uma luta entre duas tendências, às quais se pode chamar de cristianismo paulineano e o judeu-cristianismo; progressivamente, o primeiro suplantou o segundo e o paulianismo triunfou sobre o judeu-cristianismo.

Um grande número de trabalhos remontando a todos os últimos decê- nios, fundados sobre as descobertas de nosso tempo, permitiram chegar a essas noções modernas, às quais está ligado o nome do cardeal Daniélon. O artigo que ele publicou, em dezembro de 1967, na revista Études, «Uma visão nova das origens cristãs, o judeu-cristianismo», retomando os trabalhos anteriores, retraça a história e nos permite situar o aparecimento dos Evangelhos num contexto bem diferente daquele que resulta das expansões destinadas à grande vulgarização. Encontrar-se-á, mais adiante, uma condensação dos pontos essen- ciais de seu artigo com amplas citações.

Após Jesus, o «pequeno grupo dos apóstolos» forma «uma seita judaica fi el às observâncias e ao culto do templo». Todavia, quando se junta a eles o grupo dos convertidos, vindo do paganismo, se lhes propõe, pode-se dizer, um regime especial: o Concílio de Jerusalém de 49 os dispensa da circuncisão e das observâncias judaicas; «muitos dos judeus-cristãos se recusam a esta conces- são». Esse grupo é completamente separado de Paulo. Além disso, a propósito dos pagãos vindos ao cristianismo. Paulo e os judeu-cristãos se chocam (inci-

dente de Antioquia do ano 49), «para Paulo, a circuncisão, o sábado, o culto do templo estavam dali por diante superados mesmo para os judeus. O cristianis- mo devia se libertar de sua ligação político-religiosa ao judaísmo para se abrir aos Gentios».

Para os judeu-cristãos que permanecem como «leais israelitas», Paulo é um traidor: os documentos judeu-cristãos o qualifi cam de «inimigo», acusando- -o de «duplicidade de tática», mas «o judeu-cristianismo representa, até 70, a maioria da Igreja»›. e ‹»Paulo fi ca isolado». O chefe da comunidade é, então, Jacó, parente de Jesus. Com ele, estão Pedro (no início) e João. «Jacó pode ser considerado como a coluna do judeu-cristianismo que fìca deliberadamente engajado ao judaísmo em face do cristianismo paulineano». A família de Jesus tem um grande lugar nesta igreja judeu-cristã de Jerusalém. «O sucessor de Jacó será Simeão, fi lho de Cleofas, primo do Senhor».

O cardeal Daniélon cita aí os escritos judeus-cristãos, que refl etem como era visto Jesus nessa comunidade formada inicialmente em torno dos apóstolos: o Evangelho dos Hebreus (dependente de uma comunidade judeu-cristã do Egito), os Hypotyposes de Clemente, os Reconhecidos Clementinos, o segundo Apocalipse de Jacó, o Evangelho de Thomas19. “É a esses judeu-cristãos que é

preciso, sem dúvida, conectar os mais antigos monumentos da literatura cristã”, da qual o cardeal Daniélon faz uma menção minuciosa.

“Não é somente em Jerusalém e na Palestina que o judeu-cristianismo é dominante durante o primeiro século da Igreja. Em toda a parte, a missão judeu-cristã parece ter sido desenvolvida anteriormente à missão paulineana. É exatamente isso que explica porque as epístolas de Paulo fazem, sem cessar, alusão a um confl ito”. São os mesmos adversários que ele reencontra em toda a parte em Gálata, em Corinto, em Colosso, em Roma e em Antioquia.

O lado sírio-palestino, de Gaza a Antioquia, é judeu-cristão, “como o testemunham o Ato dos Apóstolos e os escritos clementinos”. Na Ásia Menor, a existência de judeu-cristãos é atestada pelas epístolas de Paulo aos Gálatas e aos Colossenses. Os escritos de Papias informam sobre o judeu-cristianismo, na Frígia. Na Grécia, a primeira epístola de Paulo aos Coríntios refere-se a judeu- -cristãos; a Apollo, em particular. Roma é um “centro importante”, segundo a epístola de Clemente e o Pastor de Hermas. Para Suétone e Tácito, os cristãos formam uma seita judia. O Cardeal Daniélon pensa que a primeira evangelização

19 - Relembramos que todos esses escritos vão ser mais tarde julgados apócrifos, quer dizer, como devendo ser escondidos, pela Igreja triunfante que vai nascer do sucesso de Paulo. Fazendo cortes obscuros na literatura evangélica, ela vai reter senão os quatro evangelhos canônicos.

da África foi judia-cristã. O Evangelho dos Hebreus e dos escritos de Clemente de Alexandria referem-se a isso.

É importante conhecer esses fatos para compreender em que ambiente de luta entre comunidades foram escritos os Evangelhos. O aparecimento dos textos que nós temos hoje, após muitas modifi cações das origens, vai começar em torno do ano 70, época em que as duas comunidades rivais estão em plena luta e os judeu-cristãos dominam ainda. Mas, com a guerra judaica e a queda de Jerusalém em 70, a situação vai se inverter. O cardeal Daniélon explica a decadência:

“Os judeus estavam desacreditados no Império, os cristãos helenísticos tomam, então, a dianteira: Paulo relatará uma vitória postula; o cristianismo se desligará social e politicamente do judaísmo; ele será o terceiro povo, todavia, até a última revolta judaica, em 140, o judeu-cristianismo continuará dominando culturalmente”.

De 70 a um período que se situa antes de 110, vão ser produzidos os Evangelhos de Marcos, Mateus, Lucas e João. Eles não constituem os primeiros documento cristãos fi xos; as epístolas de Paulo lhes são bem anteriores. Segun- do O. Culman, Paulo teria redigido em 50 sua epístola aos Tessalonicenses. Mas ele já tinha falecido, sem dúvida, há alguns anos quando o Evangelho de São Marcos foi concluído.

A Figura mais discutida do cristianismo e considerado como traidor do pensamento de Jesus pela família dele e pelos apóstolos fi xados em Jerusalém em torno de Jacó, Paulo fez o cristianismo às custas dos que Jesus havia reunido em torno de si para propagar seus ensinamentos. Não tendo conhecido Jesus vivo, ele justifi ca a legitimidade de sua missão, afi rmando que Jesus ressuscitado lhe havia aparecido no caminho de Damasco. Pode-se perguntar o que teria sido o cristianismo sem Paulo e se poderia, a esse respeito, arquitetar múltiplas hipóteses. Mas no que concerne aos Evangelhos, há que se meditar que, se a at- mosfera de luta entre comunidades criadas pela dissidência paulineana nós não tivesse existido, nós não teríamos os escritos que temos hoje. Aparecidos num período de luta interna entre as duas comunidades, esses “escritos de combate” como os qualifi ca R.P. Kannengiesser, emergiram da multidão dos escritos apa- recidos sobre Jesus, quando o cristianismo do estilo paulineano, defi nitivamente triunfante, constitui sua compilação de textos ofi ciais, o «Cânon» que exclui e condena como contrários à ortodoxia todos os outros documentos que não convinham à linha escolhida pela Igreja.

Embora os judeu-cristãos tenham desaparecido como comunidade in- fl uente, ouve-se ainda falar deles sob o vocábulo geral de “Judaizantes”. O cardeal Daniélon evoca assim seu fi m:

“Cortados da Grande Igreja que se libera progressivamente de suas liga- ções judaicas, eles se delineiam muito depressa no Ocidente. Mas constatam-se seus traços do século III e IV no Oriente, em particular na Palestina, na Arábia, na Transjordânia, na Síria, na Mesopotâmia. Alguns serão absorvidos pelo Islã, que é, em parte, seu herdeiro; outros se reúnem à ortodoxia da grande Igreja, mas conservando um fundo de cultura semítica e alguma coisa deles persiste nas Igrejas da Etiópia e da Caldéia”.

OS QUATRO EVANGELHOS

No documento A Bíblia, o Alcorão e a Ciência (páginas 60-64)