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EVANGELHO SEGUNDO LUCAS

No documento A Bíblia, o Alcorão e a Ciência (páginas 75-77)

“Cronista” para O. Culmann, “Verdadeiro romancista” para R. P. Kannen- giesser, Lucas nos adverte em seu prólogo dirigido a Theófi lo que vai, por sua vez, depois de outras que compuseram as narrações sobre Jesus, redigir um relato sobre os mesmos fatos, utilizando essas informações de testemunhas oculares – o que implica que ele não era uma delas - assim como aquelas prove- nientes das predicações dos apóstolos. É, portanto, um trabalho metódico que ele apresenta nestes termos:

“Visto que muitos empreenderam compor uma narração-dos aconteci- mentos sucedidos entre nós, como foram transmitidos por aqueles que foram desde o início testemunhas oculares, e que se tornaram os servidores da palavra, me pareceu bom, a mim também, após ter cuidadosamente me informado de tudo a partir das origens, escrever para ti uma narração ordenada, muito hono- rável Theófi lo, a fi m de que tu possas constatar a solidez dos ensinamentos em que tu foste instruído”.

Discerne-se desde as primeiras linhas tudo o que separa Lucas do “medí- ocre escrivão” que é Marcos, do qual acabamos de evocar a obra. Seu Evangelho é uma incontestável obra literária, escrita em um grego clássico sem barbaris- mos. Lucas é um letrado pagão, convertido ao cristianismo. Sua orientação em relação aos judeus é imediatamente aparente. Como sublinha O. Culmann, Lucas exime-se de retornar os versículos mais judaicos de Marcos e põe em destaque as palavras de Jesus contra a incredibilidade dos judeus e seus bons relaciona- mentos com os samaritanos, que os judeus detestavam, ao passo que Mateus, como se viu, recomendava, em nome de Jesus, aos apóstolos, fugir deles. Exem- plo surpreendente, entre muitos outros, pelo fato de que, fazendo Jesus dizer o que convém às suas perspectivas pessoais, os evangelistas, sem dúvida, com uma convicção muito sincera, nos dão as palavras de Jesus a versão adaptada ao ponto de vista das comunidades às quais eles pertencem. Como negar diante de semelhantes evidências, que os Evangelhos não são “escritos de combate” ou “de circunstâncias” já evocadas? A comparação entre a maneira geral do Evange- lho de Lucas e do Evangelho de Mateus traz a esse respeito uma demonstração. Quem é Lucas? Quiseram identifi cá-lo ao médico levado esse nome que Paulo cita em algumas de suas epístolas. A Tradução Ecumênica observa que “muitas encontraram confi rmação de profi ssão médica do autor do Evangelho na precisão da descrição das doenças”. Esta apreciação é completamente exage-

rada. Lucas não dá “descrições” desta ordem propriamente dita “o vocabulário que ele emprega é aquele de todo homem culto de seu tempo”. Um certo Lu- cas foi companheiro de viagem de Paulo. É a mesma personagem? O. Culmann assim pensa.

A data do Evangelho de São Lucas pode ser estabelecida em função de diversos fatores: Lucas se serviu do Evangelho de Marcos, e este do de Mateus. Parece, lê-se na Tradução Ecumênico, que ele teria conhecido o sítio e a ruína de Jerusalém pelas armas de Tito no ano 70. O Evangelho seria, portanto, posterior a essa data. As críticas atuais situam comumente sua redação pelos anos 80-90, mas muitos lhe atribuem uma data ainda mais antiga.

As diversas narrações de Lucas apresentam diferenças importantes com as de seus predecessores. Demos acima um apanhado delas. A Tradução Ecumê- nica, assinala páginas 181 e seguintes. O. Culmann cita no livro O Novo Testa- mento, p. 18, narrações do Evangelho de Lucas que não são reencontradas em outras partes. E não se trata de pormenores.

Os relatos da infância de Jesus do Evangelho de Lucas lhe são próprias. Mateus conta diferentemente de Lucas a infância de Jesus. Marcos não diz uma palavra a respeito.

Mateus e Lucas dão diferentes genealogias de Jesus: a contradição é tão importante, a inverossimilhança é tão grande do ponto de vista científi co, que um capítulo especial será consagrado aqui a esse respeito. É explicável que Ma- teus, dirigindo-se aos judeus, faça iniciar a genealogia em Abraão e a faça passar por David, e que Lucas, pagão convertido, tenha o cuidado de remontar mais alto. Ver-se-á que, a partir de Davi, as duas genealogias são contraditórias.

A missão de Jesus é contada diferentemente em diversos pontos por Lucas, Mateus e Marcos.

Um acontecimento de importância tão capital para os cristãos, como a instituição da Eucaristia, é sujeita a variantes entre Lucas e os dois outros Evangelhos (Não é possível se fazer a comparação com João, pois ele não fala da instituição da Eucaristia por ocasião da Ceia precedente à Paixão.). R. P. Roguet nota em seu livro, Iniciação ao Evangelho (p. 75), que as palavras pelas quais a Eucaristia é instituída nos são relatadas por Lucas (22:19-24) numa forma muito diferente daquelas que encontramos em Mateus (26:26-29) e em Marcos (1:22- 24), que são quase idênticas. “Ao contrário, a fórmula transmitida por Lucas é muito próxima daquela que São Paulo evoca” (1°Epístola aos Coríntios, 11:23-25).

Lucas, como vimos, emite sobre a Ascensão de Jesus, em seu Evangelho, uma versão em contradição com a dos Atos dos Apóstolos, dos quais ele é o autor reconhecido, e que faz parte integrante do Novo Testamento. Em seu Evangelho, ele situa a ascensão do dia de Páscoa e, nos Atos, quarenta dias mais tarde. Sabe-se a que curiosos comentários esta contradição conduziu os exege- tas cristãos.

Mas os comentadores que têm a preocupação da objetividade são força- dos a reconhecer, como aqueles da Tradução Ecumênica da Bíblia sob um plano muito geral, que, para Lucas, “o cuidado principal não é descrever os fatos em sua exatidão material...” Comparando as narrações dos Atos dos Apóstolos, obra do mesmo Lucas, com as narrações de fatos análogos de Paulo sobre Jesus ressuscitado, R. P. Kannengiesser dá sobre Lucas esta opinião: “Lucas é o mais sensível e o mais literário dos quatro evangelistas; ele apresenta todas as qualidades de um verdadeiro romancista”.

No documento A Bíblia, o Alcorão e a Ciência (páginas 75-77)