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A Pedagogia das Competências: uma outra análise crítica

CAPÍTULO 2: ORGANIZAÇÃO CURRICULAR DOS SABERES ESCOLARES: A

2.1 A PEDAGOGIA DAS COMPETÊNCIAS

2.1.3 A Pedagogia das Competências: uma outra análise crítica

É grande o número de produções acerca da reflexão e apropriação do conceito de competência na literatura pedagógica brasileira, seja no viés da relação trabalho-educação, seja no viés da política educacional ou, mais especificamente, nas elaborações, recomendações e determinações de políticas curriculares para a educação básica62.

Marize Nogueira Ramos (2001a e 2001b) é uma das autoras, no Brasil, a fazer uma análise crítica da noção de competência.

Esta autora (RAMOS, 2001b) faz um estudo sobre a noção de competência, analisando sua relação com o campo educativo e também procurando reconhecer suas arestas com os âmbitos econômico, político e ideológico, configurando o que ela chama de descolamento conceitual de qualificação ao modelo de competências. Para a autora, a noção de competência surge com a intenção de responder a necessidades teóricas e empíricas, estabelecidas diante das mudanças sociais das últimas décadas, reafirmando e negando, contraditoriamente, o conceito de qualificação e formação humana.

61 Duarte (2000), em outro texto, critica os mesmos posicionamentos valorativos contidos no lema aprender a aprender, analisando especificamente o ideário escolanovista e o construtivista, respectiva e principalmente nas obras de Cousinet (1959), Bloch (1951) e Delval (1998), Piaget (1998).

62 Apesar destes não terem sido objetos diretos da referência bibliográfica deste trabalho, indicamos, para que os leitores interessados tenham referências da demanda de produções que estão circulando no Brasil no que concerne ao assunto: Frigotto (1995); González (1996); Vergnaud (1996); Ropé e Taguy (1997); Ferreti (1997); Delors (1998); Berger (2000); Market (2000).

Ramos (2001b), estudando a implantação de sistemas de competências profissionais em paises da Europa, da América do Norte e do Sul, constata que o que os diferencia é a sua institucionalidade, podendo ocorrer de três formas diferentes: 1) pelos governos; 2) pelas forças do mercado; ou 3) pelos sujeitos sociais.

No âmbito educacional, quando a noção de competência é delimitada em função da força do mercado, ela é quase uma transposição linear e funcionalista dos resultados da investigação do processo de trabalho advindos do mundo econômico.

Mesmo no âmbito econômico, Ramos (2001b) reconhece diferentes sistematizações da noção de competência. Existem outras abordagens do conceito que o reconhece como pressuposto para inserção do trabalhador numa organização qualificante, voltando-se, para além das competências técnicas, às competências humanas e sócio-políticas.

Como no âmbito econômico se reconhecem diferentes abordagens, no âmbito educacional, justifica-se ainda mais reconhecer apropriações e argumentações distintas do conceito de competência.

Ramos (2001b, p. 20) procurou

apreender a essência do deslocamento conceitual, seus motivos e seus significados, tomando-o, primeiro, como um fenômeno histórico; segundo, como mediação de uma totalidade; terceiro, como processo contraditório e que, por isto, não está definitivamente determinado em favor da classe dominante. Pode, sim, ser reapropriado pela classe trabalhadora a partir de seus motivos e conferindo-lhe seus significados. Para isto, porém, é necessário enxergar esse fenômeno no movimento do real e encará-lo como questão política [...] Tal como o conceito de qualificação tem sido continuamente Redefinido, a noção de competência pode ser também ressignificada resgatando, simultaneamente, a importância de se compreender a qualificação como relação social.

À medida que a noção de competência extrapola o campo teórico e adquire materialidade nos currículos e programas escolares, esta, segundo Ramos (2001b), configura- se no que se tem chamado de Pedagogia das Competências. Essa Pedagogia se apresenta também sob diferentes óticas: numa dimensão psicológica, demarcada por discussões no âmbito das teorias de aprendizagem e de objetivos educacionais, e, numa dimensão sócio- econômica, demarcada sob o envolvimento com as relações sociais de produção em que capital e trabalho disputam projetos educacionais.

Na dimensão psicológica, encontram-se ainda duas tendências analíticas: uma nega a associação entre as competências e os objetivos educacionais, reconhecendo-as como algo novo e apropriado às mudanças sociais e econômicas da atualidade; outra aceita, num

primeiro instante, a associação, mas depois defende sua diferenciação das teorias dos objetivos educacionais (RAMOS, 2001b).

No âmbito da segunda tendência, num movimento americano dos anos 60 denominado pedagogia baseada no desempenho ou pedagogia do domínio, como foi também chamada, encontra-se a origem da noção de competência. Esse movimento teria sido bastante influenciado por uma perspectiva industrial, fundado sob uma ideologia conservadora e uma psicologia condutivista, chegando a elaborações em outros países, como no Canadá, exemplificamos através da obra de Benjamin Bloom.

...Bloom em seu artigo Aprendizagem para o Domínio, declarava que 90 a 95% dos alunos têm possibilidade de aprender tudo o que lhes for ensinado, desde que se lhes ofereçam condições para isso. Verifica-se, assim, o surgimento do ensino baseado em competências, que concretizou a aprendizagem para o domínio, de Bloom, orientada pelos três objetivos comportamentais: pensar, sentir e agir, englobados em três áreas: cognitiva, afetiva e psicomotora (RAMOS, 2001b, p. 224).

Ramos (2001b), fundamentando-se em Philippe Perrenoud afirma que a Pedagogia do Domínio difundiu-se na Europa como Pedagogia dos Objetivos e teve no behaviorismo de Skinner sua referência. Com Malglaive, diz que a perspectiva dos objetivos na Europa teria sido muito mais influenciada por Rousseau. No entanto, os dois admitem que a Pedagogia dos Objetivos recebeu inúmeras críticas63.

Para Ramos (2001b), Perrenoud (1999) é menos enfático no que se refere a uma necessidade de superação das críticas recebidas pela Pedagogia dos Objetivos, pois não considera que as abordagens desta Pedagogia estejam superadas, a não ser em seus excessos, tais como o behaviorismo sumário, as taxonomias intermináveis, os excessivos fracionamentos dos objetivos, entre outros, porque pensa que os excessos estejam controlados. A Pedagogia dos Objetivos ou dos Domínios, quando conciliada com abordagens construtivistas chega a se configurar, de acordo com Perrenoud, como uma Pedagogia Diferenciada.

Na França essa Pedagogia Diferenciada

teria como fundamentos um processo centrado mais na aprendizagem do que no ensino, a valorização do aluno com o sujeito da aprendizagem, a construção significativa do conhecimento. [...] Sobre isso diz Perrenoud (2000d, p. 50) que, compreender a pedagogia diferenciada implica compreender o currículo de formação do aluno como ‘seqüência de experiências de vida que contribuíram para forjar sua personalidade, seu

capital de conhecimentos, suas competências, sua relação com o saber e sua identidade’ (RAMOS, 2001b, p. 258).

Segundo Ramos (2001b), somam-se às experiências os mecanismos de aprendizagens, os quais são chamados também de competências genéricas ou transversais, tais como: observação, comunicação, dedução, medição, classificação, previsão, organização de informações, tomada de decisão, análise de variáveis, comparação, síntese e avaliação. A estas competências genéricas dá-se a denominação de aprender a aprender.

Estas experiências formadoras, vivenciadas, efetivamente, pelo estudante, constituem o que Perrenoud (2000d) chama de currículo real. Já os programas de ensino, os conteúdos de aprendizagem, as etapas de um sistema educativo compreendem o currículo prescrito. (RAMOS, 2001b).

Assim, entre o currículo prescrito e o currículo real, estabelecem-se relações de poder, as quais, segundo a Sociologia do Currículo, representam uma ligação íntima com a forma como o poder é distribuído na sociedade com a expressão de suas contradições.

É no bojo de um movimento contraditório que Ramos (2001b) constata uma simultaneidade entre uma reafirmação e uma negação do conceito de qualificação pela noção de competência.

Na dimensão da reafirmação, a noção de competência não substitui a qualificação, mas desloca-a para um plano secundário, como forma de ratificar relações de trabalho- educação no capitalismo tardio, configurando-se como noção adaptadora do comportamento humano individualizado à realidade contemporânea, havendo, então, uma tendência em consolidar uma profissionalidade de tipo liberal. (RAMOS, 2001b).

Na dimensão da negação, exige-se a ressignificação da noção de competência, subordinando-a ao conceito de qualificação como relação social. Porém exige-se ainda mais, posto que não é suficiente uma ressignificação conceitual. Mesmo reconhecendo que tais conceitos são mediações que permitem diferenciar ideologias orgânicas de ideologias arbitrárias, é preciso se construir um projeto de formação humana segundo a concepção histórico-social de homem.

Por esta concepção

a formação humana se processa pela produção material da existência numa relação dialética entre objetivação e apropriação. Isto é, ao agir sobre a natureza produzindo meios adequados à satisfação de suas necessidades, o homem se objetiva em sua produção. Essa transformação objetiva requer dele uma transformação também subjetiva. A realidade objetivada pelo homem é historicamente apropriada por outros homens com o sentido de reproduzir continuamente as funções humanas. [...] Assim compreendida a

formação humana, não se pode conceber a educação como forma de propiciar às crianças, aos jovens e aos adultos da classe trabalhadora melhores condições de adaptação ao meio. Conquanto a educação contribuía para uma certa conformação do homem à realidade material e social que ele enfrenta, ela deve possibilitar a compreensão dessa mesma realidade com o fim de dominá-la e transformá-la. (RAMOS, 2001b, p. 297 e 298).