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Currículo como prática pedagógica

CAPÍTULO 1: CURRÍCULO E SABERES ESCOLARES

1.1 CURRÍCULO

1.1.2 O currículo sob o foco de diferentes campos de investigação

1.1.2.3 Currículo como prática pedagógica

Até o presente momento, destacamos alguns dos possíveis focos de estudos, demonstrando as várias formas de compreender o currículo. As diferentes teorias, paradigmas e abordagens sobre o currículo fundamentam sua configuração como campo de investigação voltado para entender e explicar as implicações sócio-políticas do processo de constituição dos saberes escolares.

Como fonte, objeto e temática da Historiografia da Educação, o currículo possibilita reconhecer a origem, aparição, emergência e evolução desses saberes. E, como política, o currículo materializa o Estado, mesmo que de forma contraditória, elaborando e implementando ações que intencionam suprir demandas sociais, mais especificamente no setor educacional, acerca dos saberes escolares.

Nesses dois focos destacados anteriormente, existe uma tendência emergente em compreender e explicar o currículo para além de suas dimensões prescritivas normativo- racionalistas, elucidando sua não neutralidade educacional, política e social, procurando ir além dos ideários e discursos pedagógicos, como também de sua oficialidade. Vemos, então, que há a necessidade de compreender o currículo no “chão da escola”, materializando-se nos diferentes tempos e espaços pedagógicos, sobretudo naquele referente à interação entre professores e alunos no movimento de produção e apropriação da cultura.

É diante dessa tendência e necessidade que passamos a refletir o currículo como prática pedagógica, exprimindo o dia-a-dia da escola, assim como se expressando no

cotidiano dessa instituição, em especial no espaço de aula, no qual interagem sujeitos e objetos da educação escolar.

Para Santiago (1997, 1998, 2005), o currículo deixa de ser visto apenas pelo seu caráter prescritivo, evoluindo de um campo técnico para um campo multidimensional, passando a ser compreendido como um projeto de sociedade que se traduz como projeto pedagógico de uma instituição educacional. Nesse caso, um projeto de escola, que, em última instância, traduz-se em situações de ensino que se corporificam nas práticas escolares do cotidiano e com elas.

Como vimos, o currículo como campo de investigação, é composto de diferentes teorias educacionais. No entanto, com o passar do tempo, ele tornou-se um campo próprio de conhecimento, que, partindo das teorias educacionais, lançou olhares peculiares acerca do fenômeno educativo, fazendo com que distintos focos o tomassem como fonte e objeto para suas elaborações.

O currículo como prática pedagógica, conforme a figura 7, focaliza a dimensão da interação entre sujeitos e objeto da educação na constituição dos saberes escolares, compondo o que Freitas (1995) chama de teorias pedagógicas, que, por sua vez, compõem as teorias educacionais.

Figura 7: O currículo como prática pedagógica

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Para Freitas (1995) uma teoria educacional formula uma concepção de educação apoiada em um projeto histórico e discute as relações entre educação e sociedade em seu desenvolvimento, recorrendo às disciplinas que mantêm estreita relação com o fenômeno educacional. Como vimos, o currículo expressa esse projeto de sociedade indicando elementos para sua materialização por via da escola.

Uma teoria pedagógica trata do trabalho pedagógico, formulando princípios norteadores e procurando regularidades subjacentes a este. Estas regularidades são as categorias fundamentais da prática pedagógica, ou seja, o que há de essencial, constante, substancial na prática pedagógica, assim como as leis que regulam seu movimento contraditório (FREITAS, 1995). Inspirando-nos nesse autor37, vemos que o currículo, portanto, é uma teoria pedagógica, pois formula orientações para o cumprimento do papel social da escola, materializando-se na prática pedagógica e sendo mediado pelas metodologias específicas.

Percebemos que o conceito de prática pedagógica é essencial na construção de uma educação crítica, portanto também essencial numa teoria crítica do currículo, pois ele consegue materializar a necessidade de superação das características de uma perspectiva técnica e racionalista. Para Veiga (1994) a prática pedagógica diz respeito a uma dimensão da prática social que pressupõe a relação teoria-prática e que é orientada por objetivos, finalidades e conhecimentos, na qual, numa dimensão ideal, formula anseios em que estão presentes a subjetividade humana e, numa dimensão material, constituí o conjunto de meios e instrumentos com os quais se exerce a ação.

Assim, o conceito de prática pedagógica serve para quebrar alguns mitos que existem na Educação e explicitar algumas categorias que devem ser levadas em consideração pelos interessados, responsáveis e estudiosos no assunto, assim como favorecer uma superação, na área do currículo, de resquícios das perspectivas técnicas e racionalistas.

No sentido histórico e não cronológico, a escola esteve voltada para o professor como elemento central da educação. Este prescrevia e normatizava os passos que os alunos deveriam percorrer. O que era planejado pelo professor deveria ser executado pelos alunos. Nesse sentido a educação era entendida, puramente, como ensino. Seguir rigorosamente estes passos significava garantia na aquisição de conhecimento. É importante deixar claro que esta perspectiva sofre nuanças, ela passa pelo entendimento de que o conteúdo bem organizado e estruturado poderia garantir a educação, ou ainda de que pelo uso de recursos, instrumentos e

37 Freitas (1995) inclui a didática como teoria pedagógica, expressando-se como Organização do Trabalho Pedagógico efetivando-se tanto no nível da sala de aula como no nível do Projeto Político-Pedagógico.

métodos preestabelecidos se chegaria ao rendimento máximo na educação. O currículo, nessa perspectiva, estaria associado à prescrição das matérias de ensino ou mesmo ao plano seqüenciado de estudos conforme nos chamou atenção Terigi (1996), assim como também à concepção clássica, segundo destacou Silva (1999).

Posteriormente, a escola voltou-se para o aluno; este passou a ser o elemento mais importante na educação escolarizada. Tudo deveria levar em consideração a realidade do aluno. Os alunos deveriam ser orientados em direção à autonomia. A educação era entendida como aprendizagem. Priorizar os elementos inerentes ao aluno garantia a educação. Aqui, também, existem nuanças; por um lado os elementos intrínsecos (sentimentos, motivações, interesses etc.) que os alunos traziam consigo deveriam ser respeitados e evocados; por outro os elementos extrínsecos (a realidade de vida) dos alunos quase que ditavam a organização do processo. Seguindo as reflexões de Silva (1999), vemos que o currículo, nessa concepção de prática pedagógica, assume uma perspectiva ora progressivista, ora tecnocrática.

Mais recentemente, onde está a própria origem do conceito de prática pedagógica, a escola passa a pensar que alunos e professor são igualmente importantes nessa educação, devendo caminhar juntos diante do conteúdo. A educação, aqui, passa a ser entendida como uma interação entre o ensino e a aprendizagem. A dialeticidade dos dois elementos envolvidos no processo poderia ampliar a aquisição do conhecimento. O currículo nesse caso está muito próximo à teoria crítica citada por Silva (1999) e ainda às abordagens sociológicas de Forquin (1996).

Assim, pensamos que o conceito de Prática Pedagógica emerge na intenção de desmitificar e esclarecer as categorias necessárias para que se busque uma qualificação na educação, redimensionando o seu entendimento para além do tradicional, clássico, analítico, tecnocrático. A prática pedagógica traz categorias importantes para compreender a dialeticidade da educação, tais como historicidade, intencionalidade, unidade teoria-prática e criticidade.

Para Veiga (1994), a Prática Pedagógica reconhece suas influências histórico-sociais e as relações entre seus determinantes internos, pois eles não aparecem de forma isolada, não existem uns sem os outros e sim exercem influências mútuas no mesmo tempo e intensidade.

Portanto, estamos entendendo prática pedagógica como uma situação ou ação em que há, sistemática e intencionalmente, uma teleologia no processo e produto da formação humana, especificamente no que concerne à apropriação do saber. Enfatizamos estes dois elementos (sistematização e intencionalidade), pois em outras relações humanas acreditamos também existirem processos de troca e produção de conhecimentos, que não deixam de ser

espaços e momentos de formação, mas que não podem ser consideradas práticas pedagógicas, devido a sua aleatoriedade e dispersão.

Sendo assim, o currículo como prática pedagógica é um processo que intenciona um produto educacional, prescrevendo38 caminhos. Contudo essa intenção e prescrição não se encerram em si mesmas e muito menos num sujeito (elaborador) externo à prática pedagógica da sala de aula. Essas se confrontam numa tensão de interesses entre os sujeitos pedagógicos (aluno, professor e gestor) e mais ainda naquela presente no próprio objeto pedagógico (conhecimento). O currículo é, portanto orgânico na interação educacional, seja dentro ou fora da sala de aula.

O currículo compreendido como prática pedagógica por vezes é confundido com a didática. Aliás, essa confusão não é privilégio desse foco do currículo. Currículo e Didática, enquanto áreas de conhecimento, têm apresentado confusões conceituais e fusões históricas. No entanto, mesmo que haja aproximações, essas duas teorias pedagógicas se caracterizam de formas diferentes, seja pela compreensão e intervenção, seja pela trajetória de formulação.

Diversos estudiosos têm apontado as confluências e divergências entre didática e currículo39. Segundo Moreira (1998), existem ambigüidades, indefinições e superposições nessa relação; seus limites são tênues e facilmente transponíveis. Sem contar com o fato de que um objeto pode ser estudado por diferentes áreas do conhecimento, como vimos demonstrando com o próprio currículo, quem dirá com o objeto que o currículo investiga? Além do mais existe uma dinamicidade no processo de estudo e compreensão dos objetos da realidade, pois as áreas de conhecimento não permanecem as mesmas ao longo do tempo e, muito menos, os objetos se apresentam inertes.

No caso da didática e do currículo, para Moreira (1998), há um movimento de sístole e diástole entre seus objetos; para Veiga-Neto (1998) esses campos dizem respeito a dois lados de uma mesma moeda; na visão Libâneo (1998) eles ocupam-se dos mesmos fenômenos e processos, ou seja, dos objetivos, conteúdos e métodos do ensino; Santos e Oliveira (1998) defendem a dialeticidade da relação conteúdo e forma. Segundo as duas últimas autoras, o

38 Entendemos que, no currículo, a dimensão da prescrição sempre estará presente, mas não como doutrina restritiva e fechada, conforme falamos anteriormente, e sim como uma antecipação presente na intencionalidade pedagógica, podendo assumir o caráter de orientação com bases críticas, amplas e abertas.

39 Título do livro organizado por Maria Rita Neto Sales de Oliveira, publicado pela Papirus, em 1998, que reúne textos de diferentes autores, que discutem as relações entre esses dois campos de pesquisa e ensino, tendo sido resultado de reflexões anteriores, publicadas, em 1995, pela Fundação para o Desenvolvimento da Educação – FDE da Secretaria Estadual da Educação de São Paulo; como também de trabalhos apresentados em sessão conjunta dos Grupos de Trabalho (GT) de Didática e de Currículo da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação – ANPED, ocorrida na XX Reunião Anual em 1997.

conteúdo dessas áreas tem em comum teorias e princípios referentes ao processo pedagógico escolar, lidando com a transformação e produção do saber escolar.

Há ainda uma discussão acerca de qual das áreas contém ou está contida na outra, ou seja, uma reflexão de amplitude. Para alguns, o currículo é mais amplo, englobando a didática, pois o primeiro absorve o caráter político-pedagógico dos sistemas escolares, envolve os estudos da prática pedagógica e a segunda volta-se para a sala de aula, para o ensino. A didática seria uma dimensão curricular encarregada dos métodos e materiais didáticos com os quais o currículo iria se expressar na experiência. Outros autores afirmam que é a didática que engloba o currículo, pois a primeira estuda o ensino como um todo e o segundo a questão dos conteúdos desse ensino40.

Do ponto de vista da origem e evolução dessas áreas, encontram-se, na história da educação, mais elementos de sua relação. Segundo Veiga-Neto (1998), há uma emergência “quase-gêmea” da didática e do currículo. Para Libâneo (1998) e Santos e Oliveira (1998), o termo didática adquire significado, popularizando-se na produção intelectual pedagógica, com a obra de Comênio, Didática Magna, publicada em meados do século XVII, na mesma época, portanto, do aparecimento do uso do termo currículo.

A obra Didática Magna data de 1627, quando Comênio iniciou a escrita da Didática Tcheca, sendo esta concluída em 1630, a até 1638, quando concluiu uma versão latina. Alguns afirmam que a conclusão da versão latina data de 1631 e outros até de 1632, tendo sido publicada apenas em 1656. Em relação ao termo currículo, alguns mencionam que seu aparecimento data de 1633 e outros de 166341. Mesmo havendo diferenças nos registros sobre tais origens42, o que se percebe, com a quase simultaneidade da emergência das áreas, é uma influência do contexto histórico e educacional dos anos 700, pois na passagem da idade média para a modernidade a busca se dava pela superação da escolástica.

Segundo Santos e Oliveira (1998) e Libâneo (1998), a didática vive diferentes fases. Uma fase naturalista-essencialista, que vai de Comênio (1592-1670) até o início do século XIX, defendendo o ensino à luz das leis da natureza, enfatizando as finalidades e conteúdos culturais a serem dominados pelo homem. Uma fase psicológica, que vai até 1879, fundamentando-se nos trabalhos de Pestalozzi (1746-1827), influenciado por Rousseau (1712- 1778) e consolidada com Herbart (1776-1841). Nesta o ensino é considerado como instrução

40 Para aprofundamento sugerimos consultar Moreira (1998), Veiga-Neto (1998), Libâneo (1998) e Santos e Oliveira (1998).

41 Para aprofundamento sugerimos consultar Alves (2005), Comenius (2002), Goodson (1995), Libâneo (1998), Narodowski (2004), Pedra (1997), Saviani, N. (1994).

42 Vale aqui lembrar o alerta de Terigi (1996), citado anteriormente, quanto a três distintas possibilidades de reconhecimento da emergência do currículo.

dentro de uma doutrina geral da educação, seu conteúdo reduz-se aos métodos e procedimentos. Vive uma fase experimental, de 1879 até meados do século XX, na qual o caráter de ciência é atribuído à didática, enfatizado o lado técnico e que, sob influência de Piaget, propõe-se à substituição de métodos verbais e intuitivos por métodos mais dinâmicos. Tais fases, posteriormente, vão convivendo juntas só se modificando quando o pensamento social de esquerda é revigorado, constituindo o que nós chamaríamos de uma fase crítica.

Mesmo com tais confluências e aproximações, a didática e o currículo também preservam diferenças. Em outros estudos (SOUZA JÚNIOR, 1999 e 2001), vimos que a origem dos termos didática e currículo se diferencia. Enquanto a primeira vem do grego, didaktikós, cujo entendimento é de algo relativo ao ensino, à instrução, que torna o ensino eficiente, o segundo vem da palavra latina scurrere, traduzindo-se como correr, referindo-se a curso a ser seguido, mais especificamente, apresentado.

Semelhante às Teorias Curriculares destacadas anteriormente a partir de Silva (1999), Domingues (1986 e 1988) e Forquin (1996), as Teorias Didáticas também vivem diferentes concepções e fases, procurando sempre responder à pergunta: como ensinar? Como ensinar melhor?

A partir dos estudos de Moreira (1998) e Libâneo (1998) vemos que a literatura a qual influenciou as duas áreas teve origens e caráter diferentes. Enquanto a didática seguiu, com maior ênfase, os estudos de tradição européia, em especial os alemães, o currículo seguiu mais a tradição anglo-saxã, sobretudo a literatura norte-americana.

Na construção da tradição das teorias didáticas e curriculares, obvervamos, nos autores43, diferenças convencionalmente bem marcantes. Mesmo reconhecendo a dialeticidade conteúdo e forma destacada e, mais ainda, a interação entre professor e aluno, as duas áreas terminam por olhar esse movimento dinâmico e contraditório com focos diferentes. O currículo focaliza a ação do aluno ao término da escolarização. A didática focaliza a ação do professor no decorrer da escolarização. O currículo volta-se para o quê ensinar; a didática para como ensinar. O currículo reporta-se à seleção e organização do conteúdo de ensino; a didática, à ação da metodologia do ensino.

No entanto, o entendimento dessas áreas não se restringiu à sua compreensão convencional, ampliou-se e, numa perspectiva crítica, novamente se aproxima, levando-as a um reconhecimento de uma relação de quase mutualidade de um mesmo objeto. É o caso da compreensão do currículo como prática pedagógica e da didática na perspectiva sócio-

histórica, em que o primeiro se transforma em ato e a segunda amplia e articula sua dimensão técnica e social.

A Didática, mesmo considerando os fatores macro sociais da escola, termina por estabelecer, como foco central de suas reflexões, o ato de ensinar e aprender. A Didática é compreendida nesse campo como competência imprescindível à ação docente, que intenciona a organização do pensamento acerca de um corpo de conhecimento da prática pedagógica, configurando-se como área do conhecimento da pedagogia que se responsabiliza em converter objetivos sociopolíticos, advindos de uma teoria educacional, em objetivos de ensino, levando em consideração uma determinada seleção de conteúdos, e pensando, estruturando e aplicando métodos apropriados a determinadas situações educacionais.

Sem desconsiderar os vários focos, áreas e dimensões acerca dos estudos sobre currículo, optamos por considerá-lo como pilar da prática pedagógica, pelo viés da Sociologia Crítica do Currículo, e mais especificamente, nos estudos de Jean-Claude Forquin (1992, 1993, 1995, 1996, 2000, 2001).

Fundamentando-nos em Forquin (1992, 1993 e 1996), compreendemos o currículo como sendo o conjunto daquilo que se ensina e daquilo que se aprende, tendo como referência alguma ordem de progressão, podendo referir-se para além do que está escrito e prescrito oficialmente, ou seja, o que é efetivamente ensinado e aprendido no interior da sala de aula, e ainda por aquilo que, inserido no conteúdo latente, adquire-se na escola por experiência, impregnação, familiarização ou inculcação.

Essa compreensão nos leva a concordar com o autor, percebendo que o currículo, num sentido geral, é a dimensão cognitiva e cultural44 do ensino, ou seja, seus saberes, objetivos, competências, símbolos e valores, sendo fruto de uma seleção da cultura, destinada a ser transmitida às novas gerações, mas que precisa tornar-se assimilável, expressando sempre conflitos, contradições, rejeição, consentimentos, mediação e negociação diante das relações de poder.

Essa seleção não é uma simples escolha do que está disponível, é antes uma reestruturação do que foi coletado, objetivando torná-lo transmissível e assimilável, construindo uma cultura sui generis à escola, ou seja uma cultura escolar. O currículo supõe

44 Para Forquin (1993, p. 13-14), cultura se apresenta “não como a soma bruta (e aliás inimputável) de tudo o que pode ser realmente vivido, pensado, produzido pelos homens desde o começo dos tempos, mas como aquilo que, ao longo dos tempos, pôde aceder a uma existência ‘pública’, virtualmente comunicável e memorável, cristalizando-se nos saberes cumulativos e controláveis, nos sistemas de símbolos inteligíveis, nos instrumentos aperfeiçoáveis, nas obras admiráveis”.

uma seleção no interior da cultura e uma reelaboração dos conteúdos desta, configurando-se como algo da cultura e não como a cultura em si (FORQUIN, 1992, 1993 e 1996).

Em resumo, o currículo comporta uma parte arbitrária na relação com a herança do passado, pois o que é ensinado é o que decanta, cristaliza e se consagra da cultura, tornando- se tradição. Ele não é algo fixo, é um artefato social e histórico, portanto sujeito a mudanças e flutuações, inserido num movimento de continuidade e descontinuidade, de evolução e rupturas.

Como prática pedagógica, o currículo não é apenas a expressão documental que guia as ações docentes e discentes na escola, ele é a própria vida da escola e, em especial, no movimento de constituição dos saberes escolares, expressando-se tanto no Projeto Político- Pedagógico dessa instituição como na sala de aula. Nessa perspectiva, ele materializa a dialeticidade da educação, deixando evidentes os princípios de historicidade, intencionalidade, unidade teoria-prática e criticidade da ação pedagógica.

O currículo é um artefato, movimento e situação da constituição dos saberes escolares. No reconhecimento dessa constituição, precisamos compreender não só as dimensões e os momentos de reprodução, mas também suas expressões de resistências. Esses saberes mediatizam e são, reciprocamente, mediatizados por conflitos, contradições, rejeições, consentimentos e negociações diante das relações de poder que se estabelecem na sociedade mais ampla ou mesmo nos diferentes tempos e espaços sociais da cultura escolar. Essa constituição se dá num nível de autonomia relativa e recíproca entre os condicionantes externos e internos da relação Escola e Sociedade, configurando-se num processo de seleção, organização e sistematização do conhecimento.