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Ciclos de aprendizagem: Conceitos e origem

CAPÍTULO 2: ORGANIZAÇÃO CURRICULAR DOS SABERES ESCOLARES: A

2.2 OS CICLOS DE APRENDIZAGEM

2.2.1 Ciclos de aprendizagem: Conceitos e origem

Os saberes escolares são organizados a partir de diferentes maneiras de abordar o tempo pedagógico e a avaliação das aprendizagens. Ainda dando continuidade à reflexão sobre as distintas formas de organização curricular, os saberes escolares, passemos a pensar tais elementos. Qual o tempo necessário às aprendizagens? Como esses saberes são distribuídos no tempo escolar? Como os alunos apreendem os saberes escolares e em que tempo?

A organização curricular por ciclos de aprendizagem surge como intenção de superação da organização por séries, que, convencionalmente, vem orientando e dando materialidade aos currículos das escolas de educação básica.

O termo série, segundo Ferreira (1986), vem do latim serie, podendo significar: ordem de fatos ou de coisas ligadas por uma relação, ou que apresentam analogia (semelhança, similaridade); sucessão, seqüência; seqüência ininterrupta; sucessão determinada e limitada de

objetos homogêneos que formam um conjunto (série de selos); cada uma das divisões ou subdivisões de uma classificação; classe, categoria; nos estabelecimentos de ensino escolar no Brasil, ano, classe.

O termo classe pode ser entendido como grupo ou divisão que, numa série ou num conjunto, apresenta características semelhantes; categoria de coisas baseadas na qualidade, no valor, no preço (arroz de primeira classe); hierarquia; grupo ou camada social que se organiza em sociedades estratificadas, e para cuja formação contribuem a divisão do trabalho, as diferenças de propriedade e de renda ou a distribuição de riquezas; o conjunto de aulas em que se ensina certa matéria (inscreveu-se na classe de português); grupo de alunos que, numa escola, seguem o curso juntos, ano a ano, e estudam na mesma sala; turma (FERREIRA, 1986).

O termo ciclo, segundo Ferreira (1986), vem do grego Kyklos e do latim cyclu, podendo significar: série de fenômenos que se sucedem numa ordem determinada (ciclo das estações); períodos em que ocorrem fatos históricos importantes a partir de um acontecimento, seguido de uma determinada evolução (ciclo do ouro no Brasil); no Brasil, cada uma das divisões de certos programas de ensino; na Biologia, ritmo de sucessão ou repetição de um fenômeno; na Física, em um movimento periódico, parte compreendida entre duas passagens sucessivas do sistema pelo mesmo estado; como elemento de composição de uma palavra (sufixo ou prefixo), algo equivalente a círculo (triciclo, motocicleta, ciclovia).

Vemos que, pela origem e pelos diversos usos, as palavras série e ciclo podem apresentar similitude. Ambas podem ser compreendidas como algo que tenha periodicidade, sucessão, seqüência. No entanto, fica evidente também que tais compreensões, no termo série, vêm acompanhadas de um sentido mais retilíneo, enquanto, no termo ciclo, estas compreensões trazem consigo um sentido de circularidade.

Pensando os termos na perspectiva da organização dos currículos escolares, vemos que a série indica repartição, fragmentação, intervalo e etapas, enquanto os ciclos indicam agrupamento, integração, continuidade e espiralidade.

Por vezes, vemos escolas que passaram a se organizar por ciclos de aprendizagem continuarem a usar o termo série para indicar os anos de cada ciclo. Pais, alunos, professores, gestores continuam a usar a palavra série para fazer essa indicação. Neste caso a palavra está sendo usada no sentido de divisão, etapa. É possível verificar fenômeno parecido com o uso

do termo ciclo. Vemos, por exemplo, no período republicano do ensino brasileiro, momentos em que a palavra ciclo aparecia significando também etapas ou modalidades64.

No entanto, no caso do termo série, na atualidade, esta aplicação também está, provavelmente, arraigada pela seriação do currículo escolar. A seriação não se materializa apenas pelo uso do termo série, outros traços e características precisam se juntar a este, menos importante talvez, para configurá-la como organização curricular.

Segundo Arroyo (2002, p. 31)

...as séries não estão centradas nos sujeitos educandos nem em seu desenvolvimento. As séries estão centradas na organização de um conjunto de conhecimentos supostamente hierarquizados, o ‘a’ pressupõe o ‘b’; o ‘b’ pressupõe o ‘c’, como se fosse a construção de um prédio por lajes, em que a primeira laje terá que segurar a segunda, a segunda terá que segurar a terceira etc. Essa não é a lógica do desenvolvimento.

Porém, a implantação de ciclos de aprendizagem também não se dá apenas por mudança de nomenclatura, visto que muita coisa precisa ser alterada. Seria prudente, portanto, que as escolas ou redes que queiram implantar uma outra forma de organização curricular abandonassem o termo série, mesmo que fosse usado como sinônimo de etapa, para que não aparentasse continuidade do sistema seriado.

O currículo por séries procura agrupar as crianças a partir de padrões normais de desenvolvimento, principalmente de ordem cognitiva, organizando de forma pré-concebida conteúdos, objetivos, habilidades, disciplinas a serem oferecidos aos alunos como forma universal e natural dos saberes escolares, estabelecendo um ritmo fixo para as aprendizagens e seguindo uma lógica formal para a estruturação do pensamento.

O Deputado Walfrido Mares Guia, em audiência pública da Câmara dos Deputados afirmou que

a forma talvez mais simplista do lado dos educadores ou dos professores de organizar a educação é a série, porque de ano em ano se divide um pedaço do conhecimento e organiza-se naquela prateleira de acordo com o interesse de quem está educando e não de quem está aprendendo (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2002, p. 40).

A seriação tem origem em meados do século XIX, na massificação do ensino público, na Europa e nos EUA, diante de um crescente desenvolvimento industrial à época e da construção de uma racionalidade pedagógica. No Brasil foram os Grupos Escolares que deram

os primeiros passos na escolarização por séries e por classes, sendo o primeiro construído em 1893. Segundo Barbosa (2004) e Nagle (1974), no Brasil esta organização curricular seriada foi implementada a partir da Reforma João Luiz Alves, estabelecida pelo Decreto nº. 16782-A em 1925 e consolidada com a Reforma Francisco Campo pelo Decreto nº. 19890 em 1931. Em 1971 a LDB nº. 5692/71 veio estabelecer a obrigatoriedade em âmbito nacional da organização do currículo em séries anuais.

O currículo por ciclos procura reorganizar os tempos e espaços escolares no intuito de agrupar as crianças principalmente por idade, despreocupando-se com o enquadramento hierárquico dos saberes. Uma intencionalidade pedagógica para com os conteúdos, objetivos, habilidades e disciplinas pode partir do professor, mas não pode encerrar-se nele mesmo. Ela deve chegar de maneira propositiva a confrontar-se com as características coletivas e individuais dos alunos, permitindo uma heterogeneidade e diversidade nos ritmos e formas de aprendizagens e buscando construir uma lógica dialética para a estruturação do pensamento.

Segundo Prado (2003, p. 39), os ciclos partem de duas premissas: as fases de crescimento dos alunos e os ritmos próprios de aprendizagens desses.

...cada fase de crescimento do aluno possui características próprias e cada criança tem um ritmo próprio de aprendizagem. A divisão mais usual é que o 1º ciclo seja referente à infância (6 a 9 anos), o 2º à pré-adolescência (9 a 11 anos) e o 3º à adolescência (12 a 14 anos). Alguns estados e municípios optaram por apenas dois grandes ciclos, partindo ao meio os oito anos do ensino fundamental. Outros separam a cada dois anos. Dentro de um ciclo não há repetência, justamente para respeitar os diferentes ritmos de aprendizagem.

Como iniciamos tratando das palavras, retomemos Arroyo (2002) quando afirma que podemos usar a palavra ciclo ou outra para reorganizarmos a escolarização. A questão não é a palavra ciclo em si, a questão é: que organização do trabalho pedagógico, que tempo e espaços de currículos e práticas, dará conta de uma nova concepção de educação?

Segundo o mesmo autor, os ciclos podem ser compreendidos como um amontoado de séries, como remédio para passar de ano todos os alunos, estratégia de aprovação automática (ARROYO, 2002). Mas esta é uma compreensão, um uso e uma implementação vulgar, descompromissada com a qualidade da educação e, por muitas vezes, comprometidas apenas com intenções governamentais de diminuir as estatísticas dos índices de reprovação escolar.

Numa outra forma de compreendê-lo, sem, necessariamente, abandonar a primeira, os ciclos podem seguir um modelo economicista, visando à obtenção de uma maior produtividade no rendimento dos alunos, na intenção de descongestionar o sistema e, conseqüentemente, reduzir gastos (MAINARDES, 2001).

No entanto, Arroyo (2002) apresenta uma compreensão de ciclos voltada para materializar a educação como formação e desenvolvimento humano, como socialização deste ser, a qual vai acontecendo em tempos diferenciados de vida. Esta perspectiva não guarda compromisso direto com a necessidade de aprovação. Mesmo tendo a idéia de superar a reprovação escolar, estes ciclos precisam tratar a reprovação e evasão escolar na sua origem e no seu processo e não apenas nas terminalidades de estudos. Outras formas de ensinar e avaliar precisam ser pensadas e implementadas na escolarização em ciclos, procurando respeitar o que o autor chama de Ciclos de Vida.

A compreensão e implementação dos ciclos nos currículos escolares se apresentam como alternativas impulsionadas pela busca de baixar os elevados índices de reprovação e evasão. Por muitas vezes os ciclos são confundidos com a eliminação da reprovação65, principalmente pelo uso da promoção automática66 nos sistemas de ensino (MAINARDES, 2001). Apesar da promoção automática guardar uma certa responsabilidade na origem e organização dos ciclos no Brasil, ela deu seus primeiros passos em currículos organizados por séries, portanto ciclos e promoção automática não são sinônimos.

O ciclo constitui-se como uma das experiências de correção do fluxo escolar, de correção da distorção idade-série, podendo estas serem resultado do ingresso tardio na escola, das sucessivas reprovações, ou mesmo da evasão com retorno (MAINARDES, 2001). Como vemos, essa distorção idade-série não pode ser unicamente atribuída ao currículo seriado. Ela pode ter se originado antes mesmo do aluno entrar na escola, quando, por diversos outros problemas, os alunos não são matriculados na série inicial da escolarização, ignorando as recomendações legais em termos da faixa etária.

No entanto, a escola, que, convencionalmente, vem sendo organizada por séries, de uma maneira geral, aceita a reprovação67, por ser, tradicional e historicamente, uma

65 A eliminação da reprovação também pode ser conseguida por outras alternativas, tais como melhoria do ensino, promovendo a aprendizagem de todos os alunos ou ainda por uma escolarização que siga a faixa etária dos alunos. Como nos informa Therezinha Nunes em audiência pública da Câmara dos Deputados (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2002), na Inglaterra, por exemplo, a escola nunca foi seriada, sendo os alunos agrupados por idade. Estes vão progredindo na escolarização cronologicamente. No entanto, talvez não possamos chamar de promoção automática, pois não havia exames.

66 Surgida no início do século XX, mas com as primeiras experiências concretas iniciando-se a partir do final dos anos 60 e sendo implantada com maior freqüência nos sistemas de ensino a partir da década de 80, a promoção automática, significa a eliminação da reprovação. Nas décadas de 60 e 70 as Redes Estaduais de São Paulo (1960-1972), Santa Catarina (1970-1984), Rio de Janeiro (1979-1984) implantaram propostas com a promoção automática. A promoção automática se diferencia da progressão continuada, pois esta prevê o não-prejuízo da avaliação do processo de ensino-aprendizagem, a obrigatoriedade dos estudos de recuperação para os alunos com baixo rendimento e a possibilidade de retenção, por um ano, no final do ciclo (MAINARDES, 2001).

67 A reprovação traz repercussões negativas para os alunos e para o sistema de ensino, gerando, para o primeiro, um autoconceito negativo e estimulando a evasão e para o segundo um desperdício de recursos e congestionamento do sistema (MAINARDES, 2001, p 47).

instituição seletiva, por admitir que as classes devessem ser homogêneas e por acreditar que o castigo e o prêmio fossem formas de provocar ou acelerar a aprendizagem (MAINARDES, 2001). A seriação dos currículos escolares, por mais que num processo de expansão da escola tenha almejado avançar à época no que se refere à concepção, finalidade e organização do ensino, terminou por sacralizar essa homogeneidade, seletividade e reprovação68.

Pensando a proximidade entre os ciclos e a promoção automática, vemos que, em 1918, Sampaio Dória aconselhava promover todos os alunos após o ano, só podendo repetir os atrasados se não houvesse candidatos aos lugares que ficariam ocupados. Oscar Thompson, em 1921, recomendou a promoção em massa. Almeida Júnior, em 1957, publicou artigo que recuperava os dois anteriores. Em síntese, podemos dizer que na década de 1950, afloram, com mais contundência, discussões sobre a promoção automática, sendo as primeiras experiências datadas de 1968 a 1984. No período de 1984 a 1990, a promoção automática sofre revisões, sendo reestruturada e combinada com outras estratégias, configurando as primeiras experiências, propriamente ditas, de organização da escolaridade em ciclos (Ciclo Básico de Alfabetização – CBA69 em SP, MG, PR, GO70). Nos anos 90 os ciclos são incorporados ao ideário pedagógico e reafirmados pela nova LDB 9394/96 (MAINARDES, 2001).