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Parte I – O Ensino Superior Brasileiro

3.5. A Pedagogia na universidade brasileira

Consideramos que a instituição onde o professor trabalha, a sua história, o seu enquadramento político e social e as suas condições de trabalho influenciam a construção (e reconstrução) da identidade académica, já que interferem diretamente no trabalho do professor. Também reconhecemos que a área de atuação do professor não é menos importante nesse processo. Ser professor de cursos de ciências exatas é diferente de ser professor de um curso de humanidades, assim como cada área científica também tem suas particularidades e contribuições para a identidade profissional. Dessa forma, abordamos algumas especificidades da Pedagogia como campo científico com base no qual é construída a identidade docente. Apresentamos, a seguir, algumas características do curso e da área.

O espaço da educação na universidade em estudo é ocupado pela Faculdade de Educação, que, como já mencionado, assegura tanto o curso de Pedagogia quanto as disciplinas pedagógicas para a formação de professores de disciplinas específicas. No curso de Pedagogia, os professores participantes desse estudo são responsáveis pela formação de professores de educação infantil, anos iniciais do ensino fundamental, ensino médio, educação profissional na área de serviços e apoio escolar. Também participam da formação pedagógica dos professores das disciplinas específicas.

No Brasil, a formação de professores iniciou-se nas Escolas Normais e foi sofrendo alterações do seu formato ao longo do tempo. Inicialmente, preocupava-se com um caráter mais prático da formação, sem uma formação teórica (Saviani, 2005). Em 1931, com a Reforma Francisco de Campos e o Estatuto das Universidades Brasileiras, foi estabelecida a ideia da necessidade de uma formação de professores a nível superior que não fosse uma proposta universalista do saber humano e de alta cultura, mas que se preocupasse com um caráter pragmático (Saviani, 2007). Para Vidal (2001), as escolas normais pretendiam ser escolas de cultura geral e de cultura profissional ao mesmo tempo, mas não cumpriam bem nenhuma dessas funções.

A partir dos pensadores escolanovistas no cenário educacional brasileiro na década de 30, como Fernando de Azevedo e Anísio Teixeira, algumas propostas surgiram para que a formação de professores tivesse uma base de experimentação e diálogo, com alicerce científico. Suas propostas eram de superar as falhas das escolas normais. No Rio de Janeiro, Anísio Teixeira estruturou o Instituto de Educação. Em São Paulo, Fernando de Azevedo implantou o Instituto de Educação, criando uma Escola de Professores. Esses institutos de educação foram incorporados a universidades, significando o surgimento da pedagogia no ensino superior. Cruz (2011) defende que a pedagogia já estava no contexto universitário brasileiro, antes mesmo de se configurar como curso.

A história do curso de pedagogia no Brasil pode ser dividida em quatro momentos históricos, separados por marcos legais. Partimos da classificação de Cruz (2011) para discutir a Pedagogia no Ensino Superior brasileiro. O primeiro momento é a partir do surgimento da Pedagogia como curso superior, marcado pelo Decreto-Lei n.º 1190, em 1939. Este decreto instituía um modelo de formação de professores de três anos de conhecimentos específicos mais um ano de conhecimentos de pedagogia, num modelo conhecido como 3+1. Esse último ano era um curso de didática, composto por algumas disciplinas de didática, psicologia, fundamentos biológicos, sociológicos e administração. O curso de pedagogia, à época, tinha um currículo fechado ao desenvolvimento de um espaço académico de pedagogia, pensado para a formação de um bacharel em pedagogia como um técnico em educação (Saviani, 2007). Esse sistema implicava uma desarticulação entre as disciplinas de conteúdo específico das disciplinas, feitas nos anos iniciais, e as disciplinas de formação prática e pedagógica, feitas em um último ano de formação. Nesse primeiro momento, havia o problema referente ao campo de trabalho do bacharel e do licenciado em pedagogia. Ficou instituído o direito, comparado a um prémio de consolação, por Saviani (2007), de lecionar filosofia, história e matemática nos cursos de nível médio.

Para Cruz (2011), o segundo momento instaura-se com a instituição da LDB, em 1961, e com o parecer 251 de 1962, em que foi proposto o fim de um modelo de racionalidade técnica e evidenciada a importância de articulação entre os conteúdos específicos e as disciplinas de formação pedagógica, a serem relacionados durante toda a formação. As disciplinas pedagógicas poderiam ser cursadas ao longo do curso, concomitantemente com outras disciplinas de conhecimento específico. A revogação do esquema 3 + 1 foi a maior mudança do parecer 251/62. Manteve-se o caráter generalista do curso e, nesse documento, foi discutida, por Valnir Chagas, a importância de manutenção ou a extinção do curso de pedagogia, por uma hipótese de que o curso não tinha conteúdos por si próprio e que a formação de professores primários poderia ser feita no ensino normal e a formação de especialistas em educação poderia ser feita em nível de pós-graduação. Apesar dessa crise, o curso foi mantido. Não havia, nesse momento, nenhuma especificação sobre o campo profissional do pedagogo (Silva, 2003).

Num terceiro momento, ainda de acordo com Cruz (2011), a partir do parecer 252/69, foi introduzida a noção de especialistas de planeamento, supervisão, administração e orientação educacional, definindo-se, assim o perfil dos pedagogos a serem inseridos num mercado de trabalho que demandava profissionais com essa formação específica. Segundo Silva (2003), na visão tecnocrática da ditadura militar destacam-se os princípios da racionalidade, da eficiência e da produtividade do ensino superior, havendo uma preocupação com a relação entre a formação e a ocupação profissional de cada curso. A ideia era a de que a escola já se encontrava

organizada dentro de um parâmetro no qual o ensino também funcionava e o especialista formado pela universidade é inserido na escola para melhorar a sua eficiência e maximizar a sua produtividade (Saviani, 2007). A partir da década de 1970, começaram os estudos a nível de pós-graduação, onde a Educação ganhou destaque no cenário académico. Para o autor, ao contrário da pós-graduação que ganhava e afirmava o seu espaço, o curso de pedagogia “definhava e se debatia numa crise” (Saviani, 2007: 124).

Silva (2003) debate sobre a identidade do curso de pedagogia, argumentando que há uma dificuldade em descrevê-la, considerando a função do curso e o destino dos egressos. Essa falta de definição poderia comprometer tanto a organização do curso quanto o campo de trabalho do pedagogo, promovendo um “desprestígio” do curso que não tinha um conteúdo específico, pela falta de destinação do profissional e de definição do que deveria ser trabalhado no curso. Como visto, houve, inclusive, o debate sobre a pertinência e a importância da existência do curso de pedagogia no Brasil. Com o parecer 252 de 1969 foi possível identificar algumas possibilidades de caminho profissional para os formados em pedagogia. Com esse parecer, o formado em pedagogia recebia o diploma de licenciado e podia trabalhar como professor de ensino normal e especialista para atividade de orientação, administração, supervisão e inspeção escolar. Contudo, embora tivesse o mercado definido, o pedagogo encontrou dificuldades profissionais, pela desconfiguração do curso e desqualificação das especializações. Na década de 1980, muitos debates tentavam encontrar possibilidades da identidade do pedagogo e da própria pedagogia como campo do conhecimento.

A criação de habilitações específicas para os pedagogos provou uma fragmentação da formação. Essa fragmentação do trabalho pedagógico provocou muitas críticas, tendo, como consequência, alguma movimentação para a reformulação dos cursos de pedagogia. Assim, a partir da década de 1980, algumas alternativas de organização do curso de pedagogia foram sendo propostas e, dessa forma, “muitas instituições, progressivamente, foram incorporando novas habilitações ao curso de pedagogia, voltadas essencialmente para a docência” (Cruz, 2011: 50).

Hoje em dia, estaríamos vivendo um quarto momento do curso de pedagogia no ensino superior brasileiro em que há uma formação de profissionais de educação (Cruz, 2011). O pedagogo passa a ser visto como um profissional capacitado para atuar tanto no ensino como em outros espaços e contextos educacionais, na organização e na gestão do trabalho pedagógico.

Pelas Diretrizes Curriculares Nacionais para o curso de Pedagogia (Resolução CNE/CP n.º 1 de 15 de maio de 2006), atualmente é previsto que se compreenda a docência como uma ação educativa e um processo pedagógico que é metódico e intencional. Defende-se que o

processo pedagógico é construído a partir de relações sociais, étnico-raciais e produtivas e que se desenvolve pela articulação entre diferentes conhecimentos e valores, como conhecimento científico e cultural e valores éticos e estéticos existentes nos processos de aprendizagem e de socialização, baseados no diálogo.

Tanto o curso de pedagogia como as disciplinas que fazem parte da formação de professores de disciplinas específicas devem promover um ambiente de aprendizagem com intenso estímulo intelectual para desenvolver uma postura crítica, de busca por conhecimento profundo, por conhecer a escola, para investigar e intervir de forma consciente no mundo da educação. Isto é, passa a ser objetivo e interesse do curso possibilitar aos seus estudantes terem conhecimento profundo da realidade com a qual irão trabalhar, de forma crítica para uma ação coerente e de qualidade.

De acordo com os dados estatísticos do ensino superior divulgados pelo Ministério da Educação (MEC, 2006), pedagogia é o terceiro curso com mais estudantes matriculados, seguindo os cursos de direito e administração. Em 2016, foi o curso com mais ingressantes e mais concluintes de todos, com 679286 matrículas, 263700 ingressantes e 125099 concluintes23. Assim, observa-se que é um curso que reúne muitos estudantes. O grande número

de estudantes inscritos no curso implica grande trabalho para os professores em razão de turmas numerosas.

A respeito do perfil dos estudantes de pedagogia, Ferreira (2014) discorre, de acordo com estudo desenvolvido em instituição específica, que 70% dos estudantes são provenientes de escola pública e 35% de famílias com renda mensal pequena. É possível observar que há uma desvalorização da carreira de professor no Brasil. Contudo, o magistério representa uma possibilidade de ingresso no ensino superior e, consequentemente, uma oportunidade de ascensão social de estudantes de origem de famílias com uma condição económica e social desfavorável. A motivação para a escolha do curso é a perspetiva profissional e a possibilidade de ter um emprego depois da formação. Luz (2014) alerta para a empregabilidade como fator de escolha do curso e a facilidade de aprovação no ingresso ao curso de pedagogia. Na universidade em estudo, por exemplo, são 680 vagas ao todo nos três campus da universidade que oferecem pedagogia. A título de comparação, indicamos que, na mesma universidade, o número de vagas para os cursos de direito e de administração, os segundos cursos com maior número de vagas, é de 312 e 120, respetivamente.

É importante destacar que a universidade em estudo conta com um sistema de cotas para o ingresso à universidade, com o objetivo de democratizar o acesso a população em situação de

maior vulnerabilidade e historicamente desfavorecida, visando reduzir as desigualdades étnicas, sociais e económicas do país. Houve uma evolução da legislação e a lei nº. 4151/03, que atualmente define essa política, estabelece cotas de 20% das vagas para estudantes oriundos da rede pública de ensino, 20% para negros e 5% para pessoas com deficiência, integrantes de minorias étnicas, filhos24 de policiais, bombeiros e inspetores de segurança e administração

penitenciária que foram mortos ou incapacitados em serviço.

Aumentou, em consequência do sistema de cotas, com o tempo, a procura e o ingresso de estudantes pardos e negros e por estudantes provenientes de escolas públicas no curso de pedagogia. Segundo o estudo de Gutierres, Ely, Mota e Vieira (2012), o curso ainda é, na sua maioria, composto por mulheres, apesar de haver um crescimento do ingresso de homens no curso. O perfil do estudante do curso de pedagogia é de um público jovem.

Em relação aos cursos de formação de professores de disciplinas específicas do Brasil, a articulação entre as disciplinas de conteúdo específico e as disciplinas pedagógicas que era desejada, na altura da revogação do esquema 3+1, não foi alcançada. As disciplinas referentes à formação de competências pedagógicas e didáticas dos professores ficaram sob responsabilidade das faculdades de educação, dissociadas das unidades curriculares de conteúdo específico, sem um trabalho conjunto. Essa separação é, até hoje, desafio para que haja uma formação integrada entre conhecimentos práticos e específicos e uma formação de professores de qualidade. Deve-se observar um esforço dos cursos de formação de professores de disciplinas específicas para mobilizar essa integração e diminuir uma dicotomia entre os dois conhecimentos. Estabelece-se uma disputa em vez de uma articulação entre as disciplinas específicas do curso e as pedagógicas. Há uma desvalorização e um desprestígio académico da pedagogia em comparação com os conhecimentos específicos. Pereira (2000) aponta que este menor estatuto da pedagogia e o descaso com a formação de professores podem estar relacionados com o maior prestígio da investigação em relação ao ensino. Há um valor superior de “o que ensinar” em detrimento de “como ensinar” que nunca se configurou como prioridade dos cursos de conhecimentos específicos.

Como já visto, a ausência de um conteúdo específico provocava um desprestígio do curso. Nesta linha, os professores do curso de Pedagogia e da formação pedagógica de professores de disciplinas específicas precisam lidar com muitas questões no seu quotidiano. Na formação de professores, precisam realçar a importância da pedagogia, que é vista como acessória às unidades curriculares referentes às disciplinas específicas que lecionam. A pedagogia assume um papel periférico na formação. “As licenciaturas de conteúdo específico

foram se encastelando cada vez mais em seu próprio conteúdo e, portanto, fragmentando o saber e descartando o princípio de interdisciplinaridade. Com essa atitude, as licenciaturas desvalorizavam o pedagógico, na medida em que dissociavam os conteúdos” (Brzezinski, 1996: 46).

Assim, os professores da universidade precisam reafirmar o valor da pedagogia no seu trabalho com as licenciaturas de disciplina específica. No caso do trabalho com o curso de pedagogia, os professores devem permitir, não só a construção de um pensamento crítico e uma compreensão da problemática educacional brasileira, como também o desenvolvimento de uma postura profissional como educador.

“Será que tudo não se tornaria ainda mais sedutor e atraente, quanto mais penetramos nas zonas nunca pisadas, sabendo, ao mesmo tempo, que nunca conseguiremos medir nem um só palmo do Brasil? Não seria muita pretensão querer conhecer da primeira vez (...) um mundo que ainda não se conhece em suas próprias dimensões? Viajar no Brasil significa sempre descobrir coisas novas e ter que abrir mão, pois uma só pessoa vê só uma parte, ninguém conhece o todo. Mas quem é sábio saberá sentir gratidão e resignar-

se na hora certa: por esta vez, basta!” (Stefan Zweig, 2013: 249-250)