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Diferentes abordagens da crise da modernidade (Lopes, 2001) permitem delinear uma série de articulações e interdependências entre fatores económicos, sociais e políticos. Para Giddens (1994), a crise é notada quando as atividades que norteiam o indivíduo e a coletividade parecem desadequadas. Zoll (1992) intitula ‘crise da normalidade’ a situação de desregulação das estruturas sociais e Santos (1995) indica que a crise que se vive, também, afeta a subjetividade. Percebe-se, então, a articulação das crises de diferentes âmbitos da sociedade nas suas transformações.

Neste cenário atual, podemos indicar que as fronteiras das crises se diluem entre as esferas económicas, políticas e sociais. Sem ser estanque, a crise atravessa diversos âmbitos da vida e depara-se com múltiplos contextos. A crise económica, por exemplo, ultrapassa a economia e pode ser considerada uma crise antropológica (Commaille, 1997), na medida em que desconstrói, também, estruturas das relações sociais e da subjetividade dos indivíduos. É nesta esteira que Dubar (2006) discute, como uma das suas principais teses, a articulação entre a crise da modernidade e a crise das identidades.

A crise das identidades não está alheia à crise económica que se vive, que, por sua vez, também desencadeou uma “crise do vínculo social” – e aqui se identifica o conceito de Castel (1995) quando estuda as metamorfoses das questões sociais e indica a crescente fragilidade e a vulnerabilidade dos laços sociais. A crise no campo económico provoca crises nas relações sociais, percebidas no quotidiano em ruturas constantes com este laço. Serres (1992), ao explicar a crise global, alerta para o facto de que a crise afeta as relações essenciais do homem com o mundo. Ao encontro de Commaille (1997), Dubar (2006) alerta para uma crise antropológica, que abala tanto o comportamento económico como as relações sociais e a subjetividade dos indivíduos (Santos, 1995). Nesta esteira, argumentamos que a crise das

relações sociais afeta diretamente a crise das subjetividades e, com isso, das identidades. A crise das identidades coloca em causa todas as esferas da existência, como a família, o trabalho, a política e a religião.

Assim, a crise das identidades pode ser vista como consequência da crise da modernidade, da mudança de estruturas, de transformações que abalam a vida social no campo da família e das relações inéditas entre os géneros, das novas relações de trabalho que se instauraram, pensando as mutações nas relações e nas exigências de emprego e formação, e das mudanças em torno das instituições religiosas e políticas, como a igreja e o estado, por exemplo. Assim, a crise da identidade participa da crise da modernidade e, mais especificamente, da crise da relação social moderna (Lopes, 2001). “A crise é o espelho das incapacidades das subjetividades modernas para relacionarem-se entre si (...) A crise toma formas diversas e relacionadas a diferentes níveis2” (Lopes, 2008: 8), como os níveis das relações sociais, das

relações intergrupais e das representações sociais. Para Lopes (2008b), o que está em crise são os modos de conhecimento clássicos, as formas tradicionais de relação, autoridade e saber. A autora refere que a crise das identidades é vinculada a uma desarticulação entre identidades individuais e identidades coletivas, gerando problemas de reconhecimento a nível individual e grupal.

As transformações nas relações sociais exigem um nível de complexidade muito grande para acompanhar um mundo com referências diversas. As relações intergrupais são marcadas pelo conflito nas sociedades atuais em que pode haver uma diferença entre o estatuto esperado e o estatuto recebido pelo indivíduo. Ao mesmo tempo, podemos observar um desajuste entre representações e práticas, o que pode causar uma sensação de mal-estar.

Dubar (2006) afirma que a biografia de um indivíduo não está afastada de crises, visto que a identidade nunca está completa, ou, nas palavras do autor, nunca está “adquirida”. Ao longo da vida, as crises surgem em meio a questionamentos sobre esta identidade que se constrói, em um processo de/em constantes mudanças. Lopes (1993) defende que a sociedade contemporânea, marcada por constantes mudanças e, consequentemente, pela ausência de uma base cultural sólida que construa identidades estáveis, faz com que a identidade apresente uma tendência maior para a mudança do que para a permanência. Matiz (2013) destaca que “o sentido de si mesmo e de continuidade já não se coadunam com a nossa realidade atual, pois que a identidade estaria francamente ameaçada pela instabilidade” (Matiz, 2013: 73).

2 Tradução livre da autora. Original de Lopes (2008a): “La crisis es el espejo de las incapacidades de las

subjetividades modernas para relacionarse entre sí (...) La crisis toma formas diversas, y relacionadas, a diferentes niveles”.

A relativa estabilidade das identidades sociais modernas fundava-se na solidez das suas instituições – fundamentada em práticas coerentes e integradoras –, que possibilitava antecipar o futuro e definir opções de vida duráveis, outorgadas exteriormente, e que exprimiam a personalidade do indivíduo. A instabilização das práticas institucionais alterou os lugares sociais de referência da construção das identidades sociais: o indivíduo transita entre múltiplas, e por vezes ambíguas e contraditórias, realidades e de cada uma extrai questionamentos reflexivos que o formam e transformam. (Pereira, 2010: 69)

A crise, então, é parte do processo de construção da identidade. Grinberg e Grinberg (1976) defendem que a crise é necessária para o desenvolvimento do indivíduo. As sociedades modernas continuam abaladas por crises identitárias, económicas, sociais e em todas as esferas que envolvem esse processo social da existência pessoal. A crise faz parte deste processo e é motor da (re)construção constante da identidade. Dubar (2006) refere o vazio de um indivíduo sem crises, ao defender que “é de facto a crise que revela o sujeito a ele próprio, o obriga a refletir, a lutar para «a superar» e a inventar-se a si próprio, com os outros. A identidade pessoal não se constrói de outra forma” (p.185).

As transformações das relações de mercado e da organização da economia alteraram profundamente as relações e os modelos de trabalho, provocando mudanças, consequentemente, nas identidades profissionais que sofrem essas alterações. As formas anteriores de identificação dos trabalhadores foram substituídas por uma lógica de maximização de si. Esta identidade representa o modelo individualista de gestão de uma empresa de si mesmo. Um dos questionamentos de Dubar (2006) é relativo a uma crise de identidade permanente. Dada a ausência de solução imediata para a crise económica que se atravessa, deve- se assumir a identidade profissional como uma identidade em crise?

Nossa investigação considera este contexto de alterações e mudanças no/do quotidiano docente como um quadro de crise que implica a (re)construção da identidade docente. Inseridos em um contexto espacial, histórico e social específico, os professores recebem marcas constantes do tempo e do lugar do qual se pronunciam, o que promove, necessariamente, interferências sociais determinantes na construção da sua identidade profissional.

Embora não aborde especificamente a universidade e os professores universitários, ao estudar as identidades docentes, Bolívar (2006) nos alerta para o facto de que a crise da identidade docente se origina nas mudanças na escola. Os professores passam a viver uma desarticulação entre o papel de professor num ideal que os orientava e o papel do professor que é exigido no contexto real do quotidiano da profissão docente. Assim, os professores podem vir a atravessar uma crise da identidade “porque passaram de uma situação relativamente estável, quando sabiam o lugar a que pertenciam e como deviam atuar; para uma situação de incerteza, pouco clara, que põe em questão a sua identidade profissional visto pôr em causa as suas

práticas antes reconhecidas” (Matiz e Lopes, 2014: 3037). Para estas autoras, as políticas da atual agenda – baseadas na prestação de contas – afetam a identidade profissional dos professores “antevendo-se o emergir de um novo modelo de professor que contraria os pressupostos base do conceito da profissão” (idem).

Ainda dentro da discussão sobre a crise da identidade docente, Lopes (2008b) defende que esta é ao mesmo tempo uma crise do afeto (do valor de si mesmo e do reconhecimento) e uma crise da interação (em que as tarefas são constantemente interrompidas), além de uma crise, também, da cognição referente à falta de representações compartilhadas sobre o sentido e a estrutura do trabalho docente no novo contexto. A autora indica a dualidade entre inovação e tradição como um dos obstáculos para a construção de novas identidades docentes e a dualidade entre as ideias pessoais e as condições organizacionais para realizar o trabalho, no novo contexto. Assim, para Lopes (2008b), por exemplo, os professores adotam a identidade tradicional na qual já não acreditam, que não lhes convém e que não os convence.

Matiz (2013) afirma que, face a mudanças, os professores podem ter duas reações: recetividade ou resistência, sendo esta última vinculada à angústia do que as mudanças podem provocar no contexto onde atuam, nas suas vidas e, consequentemente, no seu trabalho, visto que as mudanças trazem incerteza e a dúvida na praticabilidade do novo, significando uma incursão no desconhecido. Aspetos admitidos anteriormente como certeza estão postos em causa, e isso cria um sentido de rutura com a estabilidade que era experenciada anteriormente. Para Bolívar (2006), os professores preocupam-se com o que será praticável com as mudanças, que os obriga a ajustar o seu trabalho e a sua identidade a novos papeis e a uma organização do trabalho diferente da anterior, a qual o professor já estava adaptado.

Como exemplo de mudanças que o professor precisa ajustar ao seu trabalho, Bolívar (2006) cita algumas exigências que surgem para dar resposta aos novos desafios da sociedade: o professor precisa escolher e criar métodos e atividades que possam facilitar o processo de ensino e de aprendizagem, para abranger a heterogeneidade dos estudantes, aumentar o compromisso deles com a aprendizagem, facilitar o trabalho em grupo, aproximar a articulação entre família e escola. Precisa, ainda, ter em consideração constante questões éticas da profissão e atualizar-se por meio do estudo, da investigação e da avaliação contínua.

Alguns estudos sobre essas mudanças no trabalho do professor abordam a questão do mal-estar (Lopes, 1993) e as solidões e solidariedades do trabalho docente (Correia & Matos, 2001), além de uma prática letiva prejudicada (Bolívar, 2006) em razão da desvalorização do estatuto profissional, de metas educativas contraditórias, do acréscimo de tarefas e do acúmulo de responsabilidades. Numa sociedade do conhecimento, em que a escola não é monopólio do saber e o professor não é o único agente do saber, há uma instabilidade da identidade e uma

desvalorização da imagem profissional do professor. A relação educativa entre professor e estudante fica prejudicada ao ser dividida com mais tarefas que o professor tem e que o leva a ter mais responsabilidades com as quais divide o seu tempo. A relação entre o professor e seus pares ou superiores hierárquicos, também, pode ser desfavorável para o bem-estar docente, caso não haja integração entre esses profissionais.

Matiz (2013) declara que ambivalências e indecisões de metas educativas contraditórias marcam o trabalho do professor, numa sociedade definida por incertezas. Entre modelos tradicionais, que não se encaixam num contexto sociocultural em mutação, e modelos inovadores, que muitas vezes não têm espaço no campo escolar, está a prática do professor, frequentemente em contradição.

Assim, compreendemos que a transformação das/nas identidades docentes pode ser provocada por algum tipo de crise, “quando as identidades estabelecidas já não dão conta das novas exigências docentes. Uma nova identidade, porém, constitui-se a partir de mudanças que são reconhecidas pelos docentes” (Dotta, 2011: 73). A crise representa a incerteza da nova situação profissional. É preciso adotar novas práticas, adotar novos critérios e tomar novas opções dentro de um contexto que se torna imprevisível, por ser novo. Neste cenário, podemos observar a reconstrução da identidade. É possível refletir que esse processo constante de (re)construção das identidades pode formar “indivíduos com as qualidades necessárias para a construção de novos coletivos e construir novos coletivos capazes de funcionar como lugares de socialização/formação desses novos indivíduos3” (Lopes, 2008: 14).

Esses ajustes, novos desafios e exigências da profissão, também, se instalam no Ensino Superior, como poderá ser identificado, posteriormente, nesta tese. Antecedendo a discussão sobre essas mudanças, abordamos o conceito de identidade académica a partir do qual discutiremos a profissão neste estudo.