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Da autonomia à prestação de contas: managerialismo e produtivismo

2.2. Efeitos no trabalho académico e desafios da profissão

2.2.1. Da autonomia à prestação de contas: managerialismo e produtivismo

Kogan e Teichler (2007) aprofundam a discussão sobre desafios e mudanças da profissão académica na interface com o managerialismo. No mesmo sentido, entre inúmeras mudanças que afetam as identidades académicas, Henkel (2002) aponta a emergência do managerialismo como potencializador de uma estrutura administrativa das universidades, assemelhando-as mais a empresas do que a um colegiado de professores.

A autonomia e a liberdade académica eram salvaguardas necessárias para garantir a função primordial da universidade, de produção de conhecimento. Era garantida a ideia dos académicos como produtores de conhecimento e reconhecida a importância da liberdade desses profissionais para essa produção (Kogan e Teicheler, 2007). A universidade, também, era organizada de uma forma mais colegiada dos profissionais envolvidos no seu funcionamento. Contudo, o ideal de liberdade e autonomia académica, assim como esse modo colegial de organização, sofre impactos numa profissão que passa a estar sob pressão pela eficiência e precisa gerir, por exemplo, a separação entre ensino e investigação, assim como o aumento do número de estudantes no Ensino Superior.

O trabalho académico é artesanal e complexo, assim como a escrita e o ensino. A profissão docente foi caracterizada, muitas vezes, por uma maior liberdade para pensar e para agir, sem uma hierarquia rígida e com mínimas pressões externas, garantindo prazer, gratificação, autonomia e liberdade do uso do próprio tempo, aspetos que, entretanto, foram sendo retirados pela invasão da lógica gerencial nas universidades.

Entre diversos outros aspetos, Magalhães (2011) reforça algumas mudanças do Ensino Superior: a perda de uma liberdade académica e o deslocamento dos modos colegiais para a importação de modos privados de governação da educação superior, de uma liderança académica para uma liderança gestionária, de uma ideia de integração e articulação para a separação entre ensino e investigação, de critérios de qualidade internos e de uma autorregulação para uma avaliação por atores e agências externas, de um financiamento público para um financiamento vindo do setor privado ou de receitas próprias.

No contexto britânico, Henkel (2002) reflete que as mudanças do final do último século provocaram, ao mesmo tempo, mais e menos autonomia para as universidades. No caso do Reino Unido, as instituições tornaram-se mais dependentes do Estado pelas avaliações e auditorias externas, pelo maior controle da sua qualidade, ao mesmo tempo em que se tornaram mais autónomas em termos da gestão e da busca pelos seus recursos financeiros.

As instituições são agora sujeitas a um enquadramento e a uma regulação externa forte e explícita, como auditoria, e avaliação da qualidade do ensino e da investigação. Contudo, ao mesmo tempo, já que dependem progressivamente menos do financiamento do estado para as suas necessidades, elas precisam ser mais ativas para construir seus futuros num ambiente de mercado. (Henkel, 2002: 139)10

A autora atenta para o facto de que cursos menos bem avaliados têm menor autonomia face ao poder institucional e estão mais sujeitos a intervenções institucionais e à avaliação externa, evidenciando uma influência das faculdades e dos departamentos. Faculdades melhor avaliadas, dentro da universidade, têm o potencial para gerar recursos e para aumentar a sua reputação e manter a sua autonomia. A competição foi aumentada e a reputação e a avaliação das faculdades e cursos recebem maior importância dentro e fora das universidades. Todos são incentivados a maximizar a performance na investigação e a ampliar a divulgação dos seus resultados (em termos de publicação, por exemplo). Nas ciências sociais, as agências de fomento aumentaram a pressão para investigações coletivas, para a criação de redes. Observa- se que, infelizmente, muitas vezes a ênfase da avaliação torna-se a ênfase do trabalho do professor. Ao mesmo tempo, é preciso considerar que o incentivo para um trabalho coletivo e em rede não significa o aumento de solidariedade e de espírito de comunidade. As avaliações estimulam mais publicações, participação em mais conferências, diálogo, colaboração, mas também rivalidade dentro da mesma área científica (Henkel, 2002).

Para Harris (2005), com o neoliberalismo, a democracia passa a ser condicionada por aspetos económicos. A preocupação dos governos é de fortalecer a economia e a competitividade económica nos mercados internacionais e globais. Como consequência, há uma diluição das fronteiras entre o público e o privado e a instauração de uma agenda em que o Ensino Superior é sujeito à prestação de contas, ao escrutínio e à transparência (Harris, 2005). Há uma mudança numa profissão que era vista como privilegiada, com posições de autoridade e exclusividade, sem estar sujeita a avaliações, com maior autonomia e autorregulação.

A mercadorização da educação e da investigação colocam em causa a autonomia académica, tida como característica tradicional da profissão. Ao mesmo tempo, a massificação e a internacionalização do Ensino Superior são aspetos de um mundo movido pelo consumismo. O estudante pode ser visto como consumidor e as universidades preocupam-se em “recrutar” estudantes de outros países. Esta internacionalização e a aproximação com parceiros

10 Tradução livre da autora. Original, em inglês: “Institutions are now subject to strong and explicit external

framing and regulation, most notably institutional audit, and quality assessment of research and teaching. Equally, however, as they can depend progressively less on state funding to meet their needs, they have also to be more active in shaping their own futures in a marked environment”

empresariais e empreendedores trazem desafios aos professores, que precisam reavaliar valores e atitudes pedagógicas.

Se, outrora, a universidade era o único lugar de produção de conhecimento, atualmente o valor intrínseco do conhecimento é questionado e substituído por incertezas e críticas referenciadas em múltiplos tipos de conhecimento. Como já referido, a produção do conhecimento científico passa a ser condicionada por objetivos económicos, realçando-se sobretudo a sua relevância social.

A avaliação externa da universidade, por sua vez, foca-se numa performance explícita e transparente, o que exige uma “visualização do trabalho” do professor, assim como denunciado por Bleikle, Høstaker e Vabø (2000). É preciso tornar o trabalho visível no sentido de permitir a sua avaliação. O trabalho, portanto, passa a ser mais suscetível à avaliação dos administradores, que podem avaliar os «esforços» feitos pelos académicos no sentido da resposta aos objetivos da instituição.

O produtivismo é legitimado, entre outras políticas, por exemplo, pelos sistemas de avaliação dos professores, quando estes recorrem a uma metodologia quantitativa para avaliação dos professores e dos programas de Ensino Superior que priorizam a investigação e a formação de investigadores como ações do Ensino Superior. Por exemplo, examinando o percurso da Coordenação de Aperfeiçoamento do Ensino Superior, no Brasil, – Capes –, considerada a sua importância para a carreira do professor e para a delineação do Ensino Superior brasileiro, podemos perceber que suas reformas levaram à institucionalização e ao aperfeiçoamento da avaliação dos programas e dos professores, culminando com um paradigma de avaliação instituído em 1996/97, com centralidade na investigação (Kuenzer e Moraes, 2005). Dada a impossibilidade de avaliar a qualidade dos artigos e livros publicados pelos professores através da sua leitura e análise, em razão do trabalho lento e dispendioso que tal implicaria, o sistema pautou-se pela avaliação por meio de indicadores quantitativos, como os números de publicação, por exemplo, abrindo espaço para a crítica à “exacerbação quantitivista que, como de resto ocorre com os modelos econométricos, só avalia o que pode ser mensurado” (Kuenzer e Moraes, 2005: 8).

Encontra-se, assim, uma política baseada em números para mensurar a qualidade, criticada por uma vasta literatura na área, tendo em consideração a intensificação do trabalho e a possível perda de sua qualidade. Waters (2006) aponta para o “elo casual entre a demanda corporativa pelo aumento da produtividade e o esvaziamento, em todas as publicações, de qualquer significação que não seja gerar número” (p.12). A quantidade é institucionalizada como meta para a ciência, num “capitalismo académico” (Slaughter & Rhoades, 2004) instaurado pelo critério da produtividade.

Matiz e Lopes (2014) indicam, também, essa tendência de prestação de contas e de performatividade como uma realidade do trabalho do professor do ensino não-superior, no contexto português. As autoras apontam para uma agenda que tem um controlo incessante sobre o trabalho do professor e uma crescente supervisão e escrutínio público.

Ainda sobre esse “tornar visível” o trabalho do professor para avaliação, Freitas (2007), quando aborda a transformação da escola e da identidade dos professores da escola, alerta para o facto de que o professor é a face visível do insucesso e que, por isso, muitas vezes são os profissionais responsabilizados – unicamente – por tudo o que possa dar errado.

A autorregulação experienciada pelos professores é substituída pela prestação de contas, numa perspetiva neoliberal, pela presença de padrões e de avaliações externas, num discurso de indicadores, metas e resultados. A performatividade é valorizada, no sentido de os resultados poderem ser mais importantes que os processos e valores académicos. Há a ameaça de que os valores instrumentais e económicos sobressaiam relativamente aos valores educativos, na definição da identidade profissional e do profissionalismo dos professores do Ensino Superior (Harris, 2005).

Um dos efeitos dessa necessidade de evidenciar e tornar visível o trabalho do professor, está ligado à publicação dos resultados das investigações desenvolvidas pelos professores, numa política de “publicar ou perecer” para além das fronteiras. No Dicionário do Trabalho, Profissão e Condição Docente (Duarte & Vieira, 2010), o conceito de produtivismo académico remonta aos anos 1950, nos Estados Unidos, em que a expressão “public or perish” era disseminada. O registo mais remoto dessa expressão é atribuído ao sociólogo Logan Wilson (cf. Garfield, 1996) em seu livro “The academic man”, em que faz um estudo sociológico da profissão. O autor, a respeito do prestígio da investigação, alerta para um pragmatismo que invade a universidade e exige a publicação do conhecimento científico como ordem para a profissão.

O pragmatismo predominante forçado aos académicos é que é preciso escrever alguma coisa e publicá-la. Imperativos ditam uma crença de “publicar ou perecer” dentro dos rankings. Diversas mídias existem para divulgar os resultados de investigação e para dar reconhecimento aos feitos de académicos e cientistas (para não mencionar as funções de disseminação de encontros científicos), para que cada nova descoberta seja adicionada quase de imediato à soma total de conhecimento. (Wilson, 1995: 197)11

11 Tradução livre da autora. Original em inglês: The prevailing pragmatism forced upon the academic group is that

one must write something and get it into print. Situational imperatives dictate a “publish or perish” credo within the ranks. Numerous media exist to furnish outlets for the printed results of research and to give recognition to achievement of scholars and scientists (not to mention the disseminative functions of scientific meetings), so that any new formulation or discovery may be added almost immediately to the total sum of knowledge.

Com o crescimento da pressão para publicar, cresce também a possibilidade de gerar plágio e autoplágio, publicações maquilhadas e coautorias desonestas, em busca do “aumento do currículo”. Diferentes artigos sobre uma mesma investigação ou resultados fragmentados para aumentar a possibilidade de “pontuar” na carreira, também, viram práticas frequentes para dar resposta à pressão da academia. É neste aspeto que a ciência, também, pode perder na produção do conhecimento. Muitos cursos passam a privilegiar o que tem valor de mercado e a formação de novos investigadores, movida por interesses de mercado, pode vir a ser confundida com uma deformação.

O produtivismo académico segue a lógica de mercado e representa, entre outros aspetos, a pressão pela publicação como forma de progressão na carreira, gerando competição entre professores, entre cursos e instituições, à busca de fomento para investigações. Os rankings das universidades, por exemplo, também, obedecem a parâmetros quantitativos sobre o trabalho dos professores. Ao abordar a questão da quantidade em detrimento da qualidade que surge no quotidiano dos professores/investigadores, Candau (2010) alerta para a pressão feita nos currículos académicos, avaliados em termos de linha e de quantidade de artigos publicados, comunicações feitas e projetos desenvolvidos. Esta obsessão pela quantidade na produção científica acaba por retirar qualidade do que poderiam ser estudos proveitosos. Resultam, assim, projetos que são “atropelados” por outros e que não recebem a reflexão e a dedicação que poderiam ter.

As condições socioeconómicas de um país e as suas tradições têm um papel fundamental na vida académica dos professores, mas algumas tendências para a produção do conhecimento e do fluxo da informação destacam a importância da internacionalização no Ensino Superior, atualmente (Kogan e Teichler, 2007). A mobilidade internacional de estudantes e funcionários e as novas tecnologias, conectando comunidades de investigação, são muito importantes para a internacionalização da profissão. O inglês afirma-se como língua franca dessa comunidade internacional. Além da língua, Kogan e Teichler (2007) alertam que o poder económico e político, o tamanho e a localização geográfica do país e a qualidade do seu sistema de Ensino Superior determinam o seu papel na internacionalização do Ensino Superior.

Assim, a internacionalização afirma-se como estratégia das universidades, criando novas fronteiras e relações exteriores (Henkel, 2002). Assumindo novos papéis nas economias locais e regionais, as universidades desenvolvem redes e conexões estratégicas. É possível acompanhar novas e múltiplas relações da universidade (e dos professores) com outras instituições, órgãos estatais e empresas.

Em suma, podemos entender que as práticas neoliberais são marcadas por mecanismos característicos do mercado, em diferentes esferas, procurando consolidar uma competitividade

entre os países. No caso da Europa, por exemplo, há um objetivo de fortalecer a economia frente a outras potências e assumir uma posição dominante de uma supremacia hegemónica, na economia do conhecimento. É dentro deste aspeto que os países da Europa trabalham em conjunto no Espaço Europeu de Ensino Superior. Em paralelo a este processo de europeização, há o de internacionalização, que é a procura por estudantes de outros países, fora da comunidade europeia, para melhorar a posição das universidades nos rankings internacionais e para garantir mais propinas e taxas dos estudantes internacionais.

Segundo Henkel (2002), as relações entre a universidade e a indústria levantam questões de categorização e distinções através das quais os cientistas reforçam as suas identidades. Assim, a competitividade académica força os professores a serem participantes mais ativos, dentro de suas áreas. Essas mudanças desafiam os quadros de trabalho, os mapas concetuais e os valores a partir dos quais os académicos referenciam as suas atividades. De acordo com Henkel (2002), a necessidade de gerar e manter mais relações entre a universidade e outras instituições aumentou a separação entre ensino e investigação, no contexto do Reino Unido, fortalecendo ligações externas e enfraquecendo, muitas vezes, relações dentro da própria instituição.

De acordo com Hyde, Clarke e Drennan (2013), ao mesmo tempo em que há o aumento da diversificação do trabalho do professor, há o aumento do controle sobre esse trabalho e uma consequente perda do poder profissional. O conhecimento desenvolvido pelos professores passa a ser mediado pela ideologia do managerialismo, verificando-se uma “erosão” da autonomia e liberdade académicas (idem, 2013). Os académicos são vistos como empreendedores num mercado, podendo originar uma proletarização dos académicos (ibidem, 2013), perdendo status e liberdade.

Musselin (2007) afirma que “o tipo de conhecimento que está sendo criado no meio académico pode estar sendo regulado, monitorado e prescrito de fora para dentro, com consequências significativas para a sociedade, transformando académicos em ‘trabalhadores do conhecimento’”12 (p. 8). Por sua vez, Harris (2005) alerta que “a expertise professional está

sendo reconstruída de uma definida somente pelo rigor intelectual para outra que inclui relevância para políticas e evidência ‘do que funciona’ (Ball, 2001).”13 (Harris, 2005: 427).

12 Tradução livre da autora. Original, em inglês: “the type of knowledge being created within the sector may well

be regulated, monitored and prescribed from outside, with far-reaching consequences for society, transforming scholars into ‘knowledge workers’ (Ball, 2001)”.

13 Tradução livre da autora. Original, em inglês: ““Professional expertise is being reconstructed from one defined

Esta linha de pensamento alerta para o perigo de os académicos estarem tornando-se vítimas dessas mudanças e não agentes contra essas transformações. Assim, são instrumentos da hegemonia em vez de agentes contra-hegemónicos. Os professores têm pouco tempo para desafiar políticas e valores. Nesta “linha de produção académica”, o managerialismo decide o conhecimento, admitido como acabado, objetivo e verificável, e exerce um controle crescente sobre o trabalho académico (cf. Doring, 2002, Morley, 2003, e Findlow, 2008). O conhecimento científico está dentro de um sistema que define o que é válido e o que é que se deve conhecer e como deve ser conhecido. Os tipos de conhecimento produzidos são definidos pelo discurso managerialista, valorizados pelos órgãos externos que direcionam questões de investigação e áreas científicas de aprofundamento. O financiamento reforça o condicionamento sobre que tipo de pesquisa deve ser desenvolvido.

As parcerias com o setor privado são cada vez mais constantes, numa crescente importância do financiamento por outras fontes. Nessa lógica managerialista, há uma industrialização do trabalho académico e a tentativa de uma padronização de produtos, a valorização de produtos “vendáveis” uma busca por resultados mensuráveis e transferíveis, e pela utilidade desses resultados (Hyde, Clarke e Drennan, 2013).