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2.2. Efeitos no trabalho académico e desafios da profissão

2.2.3. Relação educativa e desafios pedagógicos

Como consequências visíveis para a intensificação do trabalho, podemos observar algumas relações prejudicadas. É possível elencar a relação com os pares e, principalmente, a relação educativa, entre professor e estudantes. A falta de tempo decorrente do acúmulo de tarefas e da pressão do sistema faz com que o tempo dispensado para o ensino seja muito menor do que o desejado e que o contacto com os estudantes seja diminuído. Algumas mudanças ocorridas com o Processo de Bolonha, por exemplo, no contexto europeu, interferem diretamente na qualidade da relação professor-estudante, como a diminuição da carga horária das disciplinas e do contacto do professor com o estudante, considerando a componente de trabalho autónomo das unidades curriculares. Assim, há um esfriamento da relação com os

estudantes e uma maior dificuldade para a criação de um vínculo afetivo revelador da dimensão ética e política da praxis docente (Battini e Vagula, 2011).

Podemos basear-nos no conceito de modernidade líquida de Bauman (2014), identificando uma sociedade em que as condições sob as quais vivemos mudam mais rápido do que se consolidam os hábitos e as rotinas para se adaptar a ela. Identificamos o que Giddens (1999) chama de “runaway world”, com um ritmo acelerado, e o mundo supercomplexo que Barnett (2000) descreve como um mundo em que a supercomplexidade de problemas globais requer soluções multidisciplinares e supercomplexas. O conhecimento é caótico e não planeado, e a informação chega aos estudantes por diversos canais, de forma livre, e com uma grande velocidade.

Assim, as aulas tradicionais encontram alguns desafios num contexto em que o conhecimento chega de formas mais dinâmicas. O Ensino Superior faz algumas exigências aos estudantes, como a organização do conhecimento e dedicação ao estudo autónomo. Ao mesmo tempo, os estudantes, acostumados com um cenário mais dinâmico, criam exigências, como, por exemplo, uma resposta quase instantânea por parte dos professores, através dos e-mails e das novas tecnologias. Assim, podem vir a exigir novas formas de ensinar que ultrapassem a aula expositiva tradicional, oferecendo novas formas de ensino e de aprendizagem, na educação superior, como um ensino vinculado à investigação e à apresentação de problemas, de exemplos. Contudo, o grande número de estudantes, em resultado da massificação do Ensino Superior, pode dificultar essa relação entre ensino e investigação por meio de uma maior separação entre estudantes e professores, negando essa interrelação entre ensino e aprendizagem (Brew, 2010).

Para Brew (2010), o Ensino Superior precisa preparar os estudantes para resolver problemas que, ainda, não sabemos quais são. É preciso preparar os estudantes para o mundo profissional complexo e desafiante que eles vão enfrentar. A sociedade de hoje exige novas formas de conhecimento e uma nova relação com ele. São novas exigências, vinculadas a uma postura aberta e criativa para novas formas de conhecimento.

Em relação à dimensão pedagógica da profissão, é preciso entender que, há uma variedade de caminhos. Se alguns professores têm formação inicial para a docência, outros descobrem-se professores na prática. Korhonen e Törmä (2016) assumem que quanto mais motivado internamente o professor é para o ensino e quanto mais realista for a sua autoimagem, mais comprometido é com a sua prática. A procura de melhoria no trabalho afeta as perceções da competência no ensino.

Korhonen e Törmä (2016) discutem que as teorias pessoais sobre o ensino representam conceções de ensino e aprendizagem inerentes às crenças pessoais dos professores, e têm um

efeito na prática de ensino, nas universidades. Por exemplo, uma abordagem centrada no professor, orientada pelo conteúdo, é diferente de uma abordagem centrada no estudante e orientada pela aprendizagem. A primeira implica reconhecer que o estudante aprende, a partir de aulas expositivas e que o professor deve ter conhecimento e competências de comunicação para transmitir o conhecimento. Na última, o papel do professor passa por criar oportunidades e facilitar a aprendizagem. Assim, claramente, o modo como os professores pensam o ensino interfere na atividade e na construção da identidade docente. A ação pedagógica e os métodos adotados influenciam a imagem e a conceção de ensino que o professor tem.

É preciso entender que a maior qualificação do professor do Ensino Superior, atualmente, pode acontecer através da investigação no campo científico. O conhecimento científico em sua área, ainda, é a característica mais saliente da profissão académica – a sua relação com o conhecimento é sempre destacada. As competências pedagógicas só recentemente ganharam destaque (Korhonen e Törmä, 2016).

Numa recente tradição universitária, de acordo com Zabalza (2006), a docência não se constituía como assunto relevante para a universidade, não existindo nenhuma pressão sobre a qualidade do processo educativo e havendo, portanto, maiores liberdades de cátedra e autonomia do trabalho do professor.

Segundo Zabalza (2006), esta cultura foi sendo transformada e já se pode entender que o ensino é uma parte importante da formação dos estudantes, tendo características próprias, não sendo vinculado somente à prática, constituindo, assim, um espaço de conhecimentos profissionais especializados. Problematizamos se, hoje em dia, há um espaço para se pensar essa didática universitária. Por um lado, a perda da liberdade de cátedra promoveu um maior desenvolvimento de questões ligadas à qualidade do ensino. Por outro lado, hoje podemos acompanhar uma perda da autonomia que pode vir a minimizar estas preocupações face à intensificação do trabalho do professor e às novas exigências, como a da formação de competências de empregabilidade nos estudantes e a internacionalização. Isso poderia significar “encargos e sobrecargas de trabalho que os professores são obrigados a enfrentar” (Hypolito, Vieira e Pizzi, 2009: 108) em vez de um maior destaque às competências pedagógicas.

Há uma maior valorização da investigação face ao desenvolvimento de competências pedagógicas, tendo em consideração o maior status atribuído às atividades de pesquisa. Shulman (1993) aponta para uma cultura de “solidão pedagógica”. Ensino e pesquisa acabam indo em diferentes direções e competindo pelo tempo e pela dedicação do trabalho académico.

Os professores do Ensino Superior não têm exclusivamente funções de ensino, tendo que dividir suas atividades com outras dimensões. Na divisão entre ensino e investigação, procura-se um equilíbrio, mas observa-se uma maior inclinação para a investigação, visto que

é na pesquisa que há um maior reconhecimento e uma maior valorização institucional. Dessa forma, a relação entre ensino e investigação afirma-se complexa e problemática, pela dificuldade em estabelecer um equilíbrio, dada a maior valorização da investigação e uma redução do valor do ensino, no âmbito institucional. Com isso, os desafios pedagógicos podem se afirmar maiores, pela falta de tempo dos professores e pela falta de valorização institucional. Brew (2010) destaca a importância da articulação entre ensino e investigação, apontando imperativos e desafios do Ensino Superior para essa integração, atualmente. A autora indica que a maioria dos professores demonstra interesse em integrar ensino e investigação, mas que este desejo não é traduzido em práticas e estratégias, o que faz com que muitas vezes essa articulação não seja conseguida. Hyde, Clarke e Drennan (2013) elencam mudanças no controle do trabalho académico e a perda do poder académico e o impacto do managerialismo na natureza do ensino e da investigação.

Assim, podemos perceber que, por um lado, a lógica da performatividade académica pode reunir em seu fim diversas consequências negativas para o trabalho docente, assim como para a própria ciência. A saber, podemos elencar algumas consequências negativas relativas ao professor, ao próprio processo de publicação e à produção do conhecimento (cf. Patrus, Dantas, & Shigaki, 2015). Quanto aos professores, podemos encontrar cada vez mais profissionais estressados e esgotados, com prejuízo para a saúde física e mental, considerando também questões de privacidade e de fronteiras cada vez mais diluídas entre vida pessoal e profissional, visto que podemos interpretar que “o crescimento da ciência (...) se dá graças a um enorme desgaste emocional das pessoas envolvidas”, assim como destacam Louzada e Silva Filho (2005).

Em contrapartida, são destacadas algumas continuidades na identidade académica que garantem ao trabalho do professor aspetos positivos e reforçam os privilégios e as forças da profissão.