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Análise das entrevistas: ferramentas e estratégias

Parte II – O Ensino Superior Português

4.4. Análise das entrevistas: ferramentas e estratégias

O processo de análise das entrevistas foi feito em dois momentos. No primeiro momento, foram analisadas as entrevistas para a construção de uma narrativa, de um relato para recontar a história do professor. Nesse momento, cada história é analisada em sua singularidade. Em um momento posterior, foi feita uma análise de conteúdo de todas as entrevistas.

4.4.1. Narrativas: a elaboração da história

Sempre evitei falar de mim, falar-me. Quis falar de coisas. Mas na seleção dessas coisas não haverá um falar de mim? Não haverá nesse pudor de falar-me uma confissão, uma indireta confissão, pelo avesso, e sempre impudor? A coisa de que se falar até onde está pura ou impura? Ou sempre se impõe, mesmo impura- mente, a quem dela quer falar? Como saber, se há tanta coisa de que falar ou não falar? E se o evitá-la, o não falar, é forma de falar da coisa? (João Cabral de Melo Neto, Dúvidas apócrifas de Marianne Moore)

A história que o participante conta (life story) é o relato de vida. O investigador atua nesse relato para transformá-lo em história de vida (life history). Sobre a forma de construção dessa história de vida, Hernández (2011) discorre sobre tecer e sobre contextualizar. Ao tecer, o investigador entrelaça a voz do protagonista da história e seus comentários. O caráter contextual coloca a voz do participante em contexto, acrescentando referências que podem aumentar a compreensão do sentido daquilo que foi dito. A escolha por um ou outro estilo

depende, também, de capacidades narrativas e do conhecimento do contexto por parte do investigador. Bolívar (2014) destaca a necessidade epistemológica de hibridar as biografias dos professores com o contexto social e histórico no qual estão inseridas, o que Ferrarotti (2007) também indica: a importância de vincular texto e contexto descrever o quadro histórico e social no qual a história de vida se desenvolve.

Para a construção desses relatos, houve uma seleção de temas que pode ser considerada como uma primeira tematização do que os professores abordam. Entre a multiplicidade de temas possíveis para escolher e aprofundar, destacamos alguns temas a partir de uma ressonância em outras histórias ou pela unicidade. Em qualquer dessas possibilidades de seleção, contudo, é preciso manter a autenticidade e a integridade do discurso do participante. O participante, neste tipo de investigação, é, muito além de um objeto de investigação, um sujeito que constrói e narra a sua própria história (Goodson, 2004).

Para a elaboração das narrativas apresentadas no capítulo a seguir, histórias recontadas pela investigadora, observou-se a influência tanto de um caráter contextual como de entrelaçamento, em que a construção do relato traz os acontecimentos do percurso do professor, dentro de uma possível contextualização para que a compreensão na história de vida seja melhor e mais situada.

Consideramos que cada sujeito tem histórias particulares sobre as suas experiências e as conta de uma forma particular, sua. Por isso, ao recontar essas narrativas, não é possível, tampouco interessante, torná-las homogéneas. São histórias únicas que nos lembram que não podemos acreditar em uma história única. São percursos de pessoas que se tornaram professores universitários por diferentes trajetos e que perspetivam a profissão, também, com base nesses caminhos.

Como ponto de partida para a escrita dos relatos, esteve a procura por ressaltar o que o participante no estudo destacou em seu trajeto. Foram evitados os nomes de instituições e pessoas mencionados pelos professores e episódios de caráter muito pessoal e íntimo da vida dos professores. A ordem apresentada nesse relato não corresponde, necessariamente, à ordem como foram contados os episódios dos professores, mas a uma tentativa, quando interessante e possível, de estabelecer o percurso que antecede a docência universitária, o caminho do participante como professor e as expetativas para o futuro na sua profissão. Todavia, ressaltamos que a natureza das próprias entrevistas também condicionou a natureza dos relatos. Deixamos, ainda, claro que os relatos reúnem apenas alguns aspetos da entrevista e não esgotam o seu conteúdo.

As entrevistas mostraram-se muito heterogéneas entre elas. Cada professor teve seu jeito de relatar, imprimindo um estilo próprio de narrar-se e fazendo sua própria seleção de factos

para contar, podendo isso ser reflexo da sua identidade, da sua área/temática de trabalho e de investigação, do campo científico da sua formação de base, de suas atitudes nas interações sociais, entre outros aspetos, e a articulação de todos esses aspetos. Cada participante “transmite o seu próprio modo de compreender a realidade: por tanto, o seu conhecimento. Cada sujeito é uma história possível entre outras possíveis.”40 (Pádua, 2011: 68).

Para Bonals (2010), a complexidade da vida académica faz com que cada narrativa possa realçar aspetos diferentes e diversos da constituição da identidade docente. Embora alguns elementos possam ser compartilhados, cada um pode enfatizar diferentes sentidos e momentos, factos e relações que podem ser marcantes e que hoje os professores reconhecem como elemento importante e definidor da sua identidade. Outros podem destacar mais o presente e as situações que hoje enfrentam na profissão enquanto outros, por sua vez, podem focar nas expetativas do futuro e nos seus desejos.

Interessa compreender que as narrativas vão sendo construídas a partir das relações que os professores tiveram com outros, a partir das memórias que evocam, dos lugares e instituições de trabalho. Assim, há uma grande diferença entre cada narrativa apresentada, visto que cada entrevista foi única a partir dos assuntos selecionados. Algumas focam mais alguns aspetos atuais da profissão docente e discutem a universidade hoje em dia. Outras, enfatizam mais a formação e momentos de formação ao longo do percurso.

A investigação com enfoque biográfico narrativo busca conhecer a profundidade dos processos e das experiências dos professores. Contudo, de acordo com Rivas Flores e Cortés González (2013), o trabalho biográfico não é um mero trabalho de memória. A memória das experiências é feita a partir do que somos agora e do que nos tornamos a ser. O relato dessas lembranças pode ser diferente, porque “há diferentes modos de contar, diferentes referências utilizadas, diferentes ênfases a considerar. É o modo como cada uma e cada um quis ou pode se contar neste momento”41 (Rivas Flores e Cortés González, 2013, p. 13). Isso justifica, em

nosso estudo, a diversidade da duração das entrevistas e das narrativas. Os professores, com preocupações e prioridades distintas, em diferentes momentos da carreira e com diferentes anos de serviço, traduziram essas suas singularidades em cada entrevista, que se confirmou única e diferente das demais.

40 Original, em espanhol: “transmite su próprio modo de compreender la realidade: por tanto, su conocimiento.

Cada sujeto es una historia posible entre otras posibles”

41 Tradução livre da autora. Original, em espanhol: “diferentes modos de contar, diferentes referencias utilizadas,

diferentes énfasis a considerar. Es el modo como cada una y cada uno há querido, o ha podido contarse en este momento”

4.4.2. Análise de conteúdo

Procurámos uma abordagem dos fenómenos estudados, a partir das perspetivas dos atores que neles estão envolvidos. A análise de conteúdo procurou envolver indução e dedução, não se fechando a uma lógica de análise única. Consideramos que a análise de conteúdo permite uma reflexão entre o campo empírico e o campo teórico. Isto é, consideramos, de acordo com Pereira (2010), que o material empírico pode vir a direcionar as ações e as decisões do investigador, através de uma reflexão teórica alinhada com seus pressupostos éticos, respeitando, sempre, suas opções metodológicas. Para a autora, a análise de conteúdo das entrevistas biográficas permite uma “interpenetração de significados, num registo de interpretação” (Pereira, 2010: 351).

Depois da reescrita das narrativas e análise do percurso singular de cada professor, optámos por um segundo momento de análise. As entrevistas foram submetidas a análise de conteúdo (L’Écuyer, 1990; Krippendorf, 2003), a partir de dimensões concetuais previamente estabelecidas, mescladas com categorias emergentes de sucessivas leituras do material. Houve o esforço de promover uma investigação em que os significados produzidos na análise do material não estivessem condicionados pela definição de categorias prévias, mas que, antes pelo contrário, fossem as categorias “a representá-los e a refletir os seus sentidos manifestos e latentes” (Ferreira, 2004, p. 62).

Embora tenha em consideração a homogeneidade, a pertinência, a objetividade, a fidelidade e a produtividade do sistema categorial (Bardin, 2011) para a análise de conteúdo, nossa análise não considerou a obrigatoriedade de categorias exclusivas, já que acreditamos na complexidade dos enunciados que podem ter significado em diferentes campos e categorias de análise.

Como software de apoio à análise qualitativa de dados foi utilizado o QSR Nvivo 10. A nossa análise se baseou, inicialmente, numa divisão entre passado, presente e futuro, no sentido de analisarmos a trajetória do professor até a docência (passado), a experiência do quotidiano (presente) e as expetativas para a universidade e para a profissão (futuro). Contudo, detalhamos categorias e subcategorias que pudessem considerar grande parte das temáticas que pudessem ser interessantes para a discussão sobre as identidades académicas.

Tabela 11: Sistema categorial de análise das entrevistas Sistema categorial de análise das entrevistas

Categoria Subcategorias 1. Família 2. Escolarização 3.1. Formação inicial 3.2. Mestrado 3.3. Doutoramento

3.4. Especialização ou outros cursos 3.5. Ingresso no ensino superior 4. Outras experiências profissionais

5.1. Motivação 5.2. Processo seletivo 5.3. Socialização 6.1. Relação educativa

6.2. Relação com o conhecimento

6.3. Relação com o contexto social e de trabalho 6.4. Relação com os pares

6.5. Redes de trabalho 7.1. Intensificação do trabalho 7.2. Avaliação 7.3. Publicação 7.4. Internacionalização 7.5. Resistência 7.6. Críticas à universidade 7.7. Papel da universidade 7.8. Trabalho na Pós-graduação 8.1. Ensino 8.2. Investigação

8.3. Articulação entre ensino e investigação 8.4. Transferência do conhecimento 8.5. Gestão 8.6. Orientação 9. Expectativas 10.1. Avaliação 10.2. Intensificação do trabalho 10.3. Internacionalização 10.4. Publicação 10.5. Resistência

10.6. Trabalho na formação avançada

4.5. Algumas questões sobre o trabalho empírico: E quando cai uma manga no