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Como a assim chamada “nova classe média” é a grande mudança social e econômica do Brasil na última década de crescimento econômico, dizer quem ela é e o que ela deseja ou quer significa se apropriar do direito de interpretar a direção do capitalismo brasileiro no presente e no futuro. Isso não é pouco. Nesse sentido, temos que deixar claro como o “capitalismo financeiro e/ou flexível” penetra na sociedade brasileira, para além de palavras de ordem abstratas e vazias de sentido como “neoliberalismo”. Ou se explica como esse “neoliberalismo” se apropria de práticas institucionais e sociais concretas com o fito de legitimar o acesso injustificadamente desigual a todos os bens e recursos escassos em disputa na sociedade, ou somos obrigados a perceber a repe- tição indefinida e oca desse bordão como um desserviço de uma esquerda incapaz de imaginação e criatividade na crítica social. Uma pesquisa empírica crítica e bem conduzida serve justamente para mostrar como regras e princípios sociais abstratos se tornam “carne e osso”, “sofrimento e sonho” de pessoas comuns que enfrentam dilemas cotidianos. É desse modo que a ciência crítica pode redimensionar o debate na esfera pública acerca de que tipo de vida coletiva queremos para nós mesmos. É isso, ao fim e ao cabo, que está em jogo.

No Brasil, um observador sagaz da penetração da nova forma de capitalismo que estamos discutindo neste livro é Roberto Grün. Grün percebe, com argúcia, que o predomínio da esfera financeira na sociedade brasileira envolve muito mais que o controle econômico da sociedade, ou melhor, percebe que o controle econômico pressupõe o exercício de uma dominação cultural e simbólica que lhe é concomitante. Mais uma vez e como sempre: a acumulação econômica exige sempre um “espírito” ou uma “violência simbólica” que a justifique. Desse modo, Grün tenta articular o conceito bourdiesiano de “campo” – que pres- supõe lutas por recursos escassos em todas as esferas sociais que, entretanto, não podem se mostrar enquanto “lutas” –, de modo a perceber tanto a dominância do setor financeiro na esfera da economia quanto sua preponderância no campo maior da luta pelo “poder” político e social.

É importante notar que grande parte desse jogo se exerce na esfera política confirmando que o campo financeiro é uma parte importante – talvez a mais importante – do atual campo de poder brasileiro. Essa atuação se exerce não só nas ações e nas intervenções econômicas em sentido estrito, mas, especialmente, nas intervenções econômicas que funcionam como “política natu- ralizada” e imperceptível enquanto tal. Ter a política como um pressuposto apenas implícito e opaco é fundamental, já que o próprio processo de legitimação da atividade financeira implica não explicitar o conteúdo político, percebido como “pejorativo”, e se apresentar como “senso comum” da globalização inevitável e da “nova modernidade”.18 Um exemplo interessante dessa

estratégia, que envolve a possibilidade de “ridicularização” do discurso do oponente, pode ser visto na derrota da tentativa de se estabelecerem limitações à atividade financeira, no início do primeiro governo Lula, através da modernização da lei da usura. A crítica foi tão grande, sem que nenhuma voz se erguesse em sua defesa, seja para adaptá-la ou melhorá-la, que a tentativa foi logo silenciada.19

Dois exemplos de Grün mostram a transformação, entre nós, de um possível discurso sobre a realidade no único discurso possível, na medida em que se materializa como prática concreta “naturalizada” deixando de necessitar de qualquer justificação. Esse ponto é fundamental, pois a dominação social inconteste de uma visão de mundo exige a sua introjeção e in-corporação como algo natural e indiscutível em todas as dimensões sociais. O primeiro exemplo mostra a penetração da noção de “governança corporativa” entre nós, e o segundo, a justificação “natural” dos juros altos pela suposta “corrupção generalizada” no Brasil.

O tema da “governança corporativa” significa a importação bem-sucedida entre nós de todo um conjunto de ideias e práticas sociais da “produção flexível” e da “organização flexível” sobre as quais já discutimos anteriormente. O ponto a ser mais uma vez esclarecido aqui é que se trata de algo fundamentalmente novo e que penetra todas as práticas institucionais e sociais. A importância do capital financeiro – enquanto oposto, por exemplo, ao capital industrial e comercial – já havia sido sobejamente reconhecida por diversos autores desde o “boom” do capitalismo monopolista a partir de finais do século XIX e começo do século XX. Mas a “lógica do capital financeiro” ainda estava subordinada à lógica

do capital industrial. Era o ritmo da fábrica fordista que determi- nava o tempo de valorização do capital empregado. O “giro do capital” era determinado por uma mistura de compromisso e de luta entre o capital e seus prepostos incumbidos do controle e da vigilância do trabalho, e o trabalho vivo.

A dominação hodierna do capitalismo financeiro significa algo muito diferente. Todas as empresas – e não apenas as fábricas antes fordistas – refletem agora a dominação de um “olhar panóp- tico”, um olho que tudo vê, destinado a tornar possível o controle total da empresa sem ter que pagar os controladores que antes eram parte significativa dos custos de toda empresa. Não apenas a “produção flexível”, em que preponderam os trabalhadores diretamente produtivos típicos do toyotismo, ou a “organização flexível”, na qual redes de comunicação pretendem substituir a organização hierarquizada anterior, mas também instrumentos contábeis de todo tipo analisam agora a empresa de modo tal que a produtividade de cada trabalhador pode ser avaliada e julgada dispensável ou não.

Nesse capitalismo de novo tipo, todo o processo produtivo fica subordinado a um novo ritmo próprio do capital financeiro que quer diminuir seu tempo de giro como uma estratégia central do novo processo de acumulação ampliada. Agora é o próprio capital financeiro que dita seu ritmo a todas as empresas em todos os ramos produtivos. Mas não apenas a aceleração do giro do capital está em jogo. Também a disponibilidade (ou “flexibilidade”) de atuar em novos nichos de mercado, menores e mais restritos, satisfazendo e criando novas necessidades de consumo que são efêmeras e passageiras. A superação do fordismo também repre- senta a superação do tipo de produção estandardizada, baseada na economia de escala da grande produção de relativamente poucos produtos.

O novo capitalismo financeiro transforma essa realidade também. Passa a existir o culto ao produto desenhado para as necessidades do cliente e criam-se novos ramos de negócios anteriormente inexistentes. Passa a existir o culto ao “momentâ- neo”, ao passageiro, ao consumo instantâneo, aos eventos de um dia ou poucas horas, com retorno rápido, que também obedecem à lógica do aumento da velocidade de giro do capital. Shows de rock, feiras, negócios sazonais, revalorização dos negócios fami- liares, roupas produzidas à mão, revalorização do artesanato, são

todas formas que se adaptam a uma nova estrutura produtiva que se constitui como nicho específico, criando e atendendo a todo tipo de necessidade. Em grande medida, o público que entrevis- tamos se compõe dessa nova dinâmica do capitalismo.

A instalação dessa lógica entre nós foi rápida e retumbante. O período de privatizações de FHC repudiava todo tipo de inte- resse divergente à penetração sem peias dessa nova lógica como “corporativo”. É típico dos interesses que dominam pretenderem representar a universalidade, deixando os interesses dominados na dimensão do “particular”. Hoje, só se fala de “empreendedo- rismo”, como se todo mundo pudesse se tornar empresário, e alguém como Roberto Justus, que humilha e desrespeita os jovens que participam do programa de TV que ele dirige, é eleito pelos jovens brasileiros como uma das figuras mais dignas de admira- ção à frente de Jesus Cristo e Lula.20 Como resultado de intenso

trabalho de legitimação, a visão de mundo do novo capitalismo financeiro é assimilada não apenas pelos setores não financeiros das elites, mas por amplos setores sociais em todas as classes.

Mas o outro exemplo de Grün acerca da naturalização do domínio do capital financeiro entre nós é ainda mais eloquente: as renitentes altas taxas de juro da sociedade brasileira. Como aqui se trata de uma apropriação do excedente produtivo por meia dúzia de financistas em desfavor dos interesses da população inteira, a questão interessante é: como se legitima apropriação tão desigual? A resposta de Grün toca num ponto extremamente interessante. Como existe um amplo consenso social acerca de uma suposta corrupção endêmica brasileira, esse fato implicaria a necessidade de uma “taxa extra” de segurança para o capital emprestado.

A pesquisa empírica – inclusive a pesquisa empírica comparativa – acerca da corrupção diferencial em cada sociedade particular é extremamente difícil por razões óbvias. Existe mais corrupção em Wall Street ou na Avenida Paulista? Há alguns anos, nossos colonizados culturais não teriam nenhum pejo em dizer que não existe corrupção nos Estados Unidos, terra por excelência da confiança mútua e das relações transparentes. Afinal, a imagem idílica e fantasiosa desse país é o fundamento da (aparente) percepção crítica de todos os nossos liberais acerca do Brasil.21 A

crise de 2008/2009 tornou essa fantasia insustentável. Ainda assim ela segue vivendo como que por inércia. Existiu maior corrupção

na construção do metrô carioca ou na reconstrução de Berlim? O conluio entre bancos, empreiteiras e políticos do CDU que regeram a cidade durante os anos de reconstrução foi fartamente documentado na imprensa e por documentários muito benfeitos exibidos na TV pública alternativa – eis aqui uma diferença real e importante em relação à sociedade brasileira –, documentando o desvio sistemático de bilhões de euros.

Mas aqui a questão principal não é a realidade do mundo, e sim a consumação de uma violência simbólica secular, internalizada como verdade evidente, como resultado de uma colonização simbólica magistralmente realizada. O “culturalismo”, que se segue imediatamente ao “racismo científico” como paradigma dominante da antropologia e da sociologia americana no século XX, implica a ideia de sociedades inteiras substancializadas e percebidas no todo como “inteiramente confiáveis” – nesse patamar só ficaria mesmo a própria sociedade americana, segundo todos os teóricos (coincidentemente quase todos americanos) da teoria da modernização – e outras sociedades, como a brasileira, por exemplo, inteiramente compostas de pessoas inconfiáveis. A sociologia, a antropologia e a ciência política brasileira dominante, de Sérgio Buarque a Roberto DaMatta, “engoliram” o opressor e apenas repetem esse discurso – quase sem críticas até hoje – sob formas variadas há décadas.22

Como as produções intelectuais e “científicas” são, no mundo moderno, as herdeiras diretas do prestígio que, no passado, era monopólio das grandes religiões, essas ideias saem das universi- dades e dos livros e vão marcar a prática social dos formadores de opinião, dos políticos, dos empresários, dos jornalistas e de todos aqueles que são responsáveis pela autoimagem que uma sociedade tem de si própria. Alguém já parou para pensar na legitimação que esse tipo de preconceito que imagina candida- mente a existência de sociedades perfeitas sem corrupção e que chegaram ao ápice da virtude humana possibilita para todo tipo de troca desigual e monopólios de poder na arena das relações internacionais? E para a apropriação do excedente de toda uma sociedade, como a brasileira, que acha justo e legítimo pagar um “plus” em juros escorchantes por conta de uma autoimagem que a condena como um todo? A meia dúzia de financistas internacio- nais e nacionais que se locupletam com lucros fabulosos desse preconceito agradece penhoradamente à inteligência nacional colonizada.