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No Brasil os batalhadores sempre viveram nas franjas do mercado, ou nele inseridos marginalmente, mas, de modo di- ferente da ralé. Essa inserção não é totalmente arbitrária: onde a classe não tem nenhuma possibilidade de interferência ativa em suas próprias condições objetivas, eles contam com um conhecimento prático capitalizável no mercado, ou seja, um conhecimento útil e rentável para o mercado: a ética do trabalho

duro. No sistema fordista essa classe foi só parcialmente incluída à classe trabalhadora tradicional. Somente com a mudança do modo de acumulação para uma acumulação flexível (tratamos de forma detalhada esse novo momento do capitalismo) ela ganha protagonismo, ascendendo à nova classe trabalhadora.

Tendo pouco ou nenhum capital cultural legítimo e capital econômico, essa classe só pode contar com o aprendizado prático transmitido no seio da família, e com as relações familiares

duradouras como “arma”, estratégia para sobreviver enquanto classe. Para essa classe, o grupo familiar é o principal grupo de

sobrevivência, ou seja, o grupo social responsável pela sobre- vivência física, neste caso, econômica, e a sobrevivência social, ou seja, a garantia de um reconhecimento mútuo dos membros que ultrapasse a própria existência física de cada um, que permita a continuidade do indivíduo através da memória do grupo.

O duplo racismo de classe direcionado à família batalhadora se funda principalmente no recalque das condições objetivas e arbitrárias de classe que “presenteia” as classes médias e altas com outros grupos de sobrevivência que garantem tanto a conti- nuidade econômica quanto a continuidade para além de cada existência – através de prêmios, livros e outros – dessas classes. Isso dá à família nuclear uma aparente autonomia em relação à esfera econômica, o que faria dela o lugar das relações desinteres- sadas, que se contrapõem às relações pretensamente perpassadas pelo interesse econômico dos batalhadores. Essa falsa autonomia recalca o papel fundamental da família nuclear para a inserção, notadamente dos membros da classe média, nesses outros grupos de sobrevivência, principalmente nos grupos profissionais, bem

como recalca o interesse e as lutas de poder que perpassam todo grupo social, inclusive a “imaculada” família nuclear.

Temos no programa humorístico A Grande Família o exemplo emblemático e teatralizado desse duplo racismo de classe (ver quadro a seguir).

Quadro 2 - A Grande Família

A Grande Família é um programa humorístico exibido às quintas-- -feiras na Rede Globo, no qual uma família típica da nossa nova classe trabalhadora é a protagonista. O programa tem o mérito de descrever a passagem da classe trabalhadora tradicional para essa nova classe trabalhadora. Ao mesmo tempo, concentra todo o racismo de classe direcionado a suas famílias. Lineu, empregado público, deixa seu trabalho estável, mas com nenhuma autentici- dade, para realizar sua vocação profissional, veterinária, abrindo seu próprio negócio. Temos também Beiçola, modelo da antiga pequena burguesia, que representa toda a decadência vivida por esta classe, bem como Marilda, uma cabeleireira batalhadora, representante, por excelência, do “espírito empreendedor”. A família, além dos dois filhos já adultos, mas totalmente irres- ponsáveis, incorpora também o genro, os vizinhos e o amigo do trabalho de Lineu. As várias personagens e suas tramas podem ilustrar o que estamos chamando de duplo racismo de classe, que é imputar à família dos batalhadores tanto o arcaísmo patriarcal quanto a instrumentalidade, como já definimos no início deste texto. Mas temos no divertido conflito entre Lineu e o genro, Agostinho, a representação emblemática desse duplo racismo de classe. Lineu é o cidadão honesto que, estando em um contexto perpassado pela desonestidade – os extensos laços familiares presentes na “grande família”, em particular, e as classes baixas em geral –, se vê, a cada capítulo, envolvido, contra a sua vontade, em algum esquema “duvidoso”, geralmente montado pelo genro. O genro é taxista, pouco disposto ao trabalho duro, procurando sempre “tirar vantagem”, inclusive do próprio filho, que ainda é um bebê, mas principalmente de Lineu. Assim, o conflito se coloca entre o “patriarca” pretensamente “honesto”, mas cujo contexto nefasto das relações familiares é empecilho para exercício da impessoa- lidade, e o “malandro”, depositário de toda a instrumentalidade, buscando, se não o seu bem exclusivo, sem nenhum esforço, ao menos se aproveitar dos laços familiares para “se dar bem”.

A família batalhadora, a família da nova classe trabalhadora, é responsável por reproduzir membros dotados de capacidade para enfrentar a instabilidade do mercado e se manter nele. Ela é a responsável por reproduzir a classe para o trabalho. E, ao contradizer o duplo racismo de classe, reproduzi-la, reconhecendo no trabalho uma necessidade material, mas principalmente repro- duzindo uma moralidade do trabalho duro. A família batalhadora tem duas principais estratégias de reprodução da classe: o apren-

dizado prático do trabalho e o circuito de reciprocidade. O aprendizado prático do trabalho é, como vimos nas traje- tórias familiares de Paulo e Luís, transmitido aos filhos desde a mais tenra infância. Ele, ao mesmo tempo, é o aprendizado de alguma função específica, como as funções dentro da produção, que Seu Luís ensina aos filhos, e o crochê que Helena ensina às duas filhas, mas é principalmente o trabalho cotidiano de incorporação afetiva, através dos conselhos e da exemplaridade (trataremos da função da exemplaridade, principalmente a religiosa, no Capítulo 9) de uma disposição para o “trabalho duro”. Isso significa que a família batalhadora não prepara seus membros para exercerem apenas uma determinada função no mercado, mas transforma seus corpos em corpos inclinados ao

trabalho duro. Eles estão “dispostos” a exercerem diferentes funções dentro do mercado, sobrevivendo às condições mais desfavoráveis no “mundo do trabalho”, como, por exemplo, trabalhar de 15 a 18 horas diárias. Ao reproduzir uma disposição para o “trabalho duro”, a família batalhadora reproduz o contin- gente humano preparado para – e em concórdia com – as novas necessidades do capitalismo contemporâneo. O aprendizado

prático do trabalho, transmitido pela família, reproduz o sistema capitalista como um todo ao reproduzir a classe que é o suporte da sua exploração: os batalhadores, a nova classe trabalhadora. Ao mesmo tempo, dota cada membro da racionalidade prática que, ao preparar o indivíduo para o “trabalho duro”, permite-lhe antecipar a inconstância do mercado e transformar uma classe, até então inserida marginalmente no capitalismo, na nova classe trabalhadora.

O aprendizado prático do trabalho vem unido e possibilitado pelo circuito de reciprocidade que liga os familiares, ou seja, um circuito de dádiva, baseado na dependência mútua entre os membros da família e, portanto, de uma parcela de sacrifício

das vontades individuais em favor da sobrevivência do grupo como um todo e de cada um em particular. Esse circuito dadivoso funda relações duráveis que podem ser mais ou menos equita- tivas, como vimos no caso de Paulo e Helena, em que ambos, podendo contar somente um com o outro, sacrificam todo e qualquer prazer em favor da continuidade da família, ou mais hierarquizadas, como no caso de Seu Luís, em que ele detém a autoridade sobre o processo produtivo, sendo responsável por controlar o trabalho e ainda distribuir benesses aos filhos, às noras e à esposa. Como podemos perceber nas trajetórias, as relações familiares são suportes, base produtiva e econômica dos batalhadores. Sem as relações familiares, essa classe é impossi- bilitada de se manter no mercado, como no caso de Seu Manoel e de Joaquim. Ou seja, o circuito de reciprocidade é a condição de possibilidade para a sobrevivência dos batalhadores como classe trabalhadora. É uma estratégia moderna de reprodução e manutenção da classe, uma vez que em concórdia com o novo modo de acumulação capitalista, no qual a produção passa a ser cada vez mais em pequena escala, e os gastos com o controle do trabalho tendem a ser eliminados, como Harvey já percebia no final da década de 1980. Assim, a pequena produção baseada nas relações pessoais, na dominação pessoal e no controle do trabalho pessoal, como no caso da família de Luís, e o controle do trabalho exercido pelo próprio trabalhador, como no caso de Paulo, tendem a prevalecer em relação ao modelo fordista de controle do trabalho, baseado na impessoalidade e burocracia.

A família da nova classe trabalhadora é a unidade econômica da classe. Ela concentra as funções que, em momento anterior ao capitalismo, estiveram restritas às corporações: a produção e o controle do trabalho produtivo.

A família batalhadora é a unidade econômica da classe, mas também é a sua unidade moral. Sua estrutura e organização produzem relações duráveis, baseadas em princípios morais que ultrapassam a necessidade imediata. Ela funda relações baseadas no que Bourdieu chama de interesse desinteressado pelo outro, ou seja, relações que vão muito além da instrumentalização imediata do outro. O circuito de reciprocidade, bem como o aprendizado

prático do trabalho, liga moralmente os membros do grupo familiar, desperta neles esse interesse desinteressado pelo outro, como no caso do menino Paulo, que desde bem pequeno aprendeu a

se sacrificar, primeiro pelos irmãos menores, depois pela esposa e pelas filhas. Assim, em oposição à instrumentalidade imoral – segundo a mídia, presente nas famílias das classes populares, especialmente nas famílias batalhadoras –, encontramos relações duráveis, de acordo com as necessidades materiais e econômicas, mas ultrapassando essa mera relação mecânica. Relações baseadas no trabalho como um valor moral a ser aprendido desde a mais tenra infância, através do aprendizado prático do trabalho, e no

sacrifício individual, na abnegação em favor da sobrevivência física e social do grupo familiar que, segundo Durkheim, é o fundamento de todo e qualquer ato moral.

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