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E SUA ADMINISTRAÇÃO1

Colaboradores: Marcio Sá | Felipe Cavalcante Barbosa

O comércio de feira é ainda hoje uma atividade de importância central na vida de muitos brasileiros. No interior do Nordeste, em particular, é mantido por parte significativa da população o hábito de se fazerem compras semanais em feiras livres. Embora seja uma atividade que tem origem anterior ao capitalismo moderno2

que aqui tratamos, esse tipo de comércio está hoje acoplado à sua dinâmica contemporânea, como demonstraremos a seguir. Os feirantes compõem esta classe que denominamos de nova classe trabalhadora brasileira. Eles incorporam, de modo peculiar, a sua condição de classe, as consequências dessas mutações sistêmicas no mundo e no Brasil no seu cotidiano de vida-trabalho.

Enquanto estávamos em campo, circulando, conversando com feirantes, aplicando questionários, observando suas barracas, como eles as administram e, inclusive, fazendo refeições nelas, a economia mundial passava por grande crise.3 Na periferia do

sistema, os abalos também eram sensíveis. Aliás, pareciam ser bem maiores. Não poderia ser diferente. Por estarmos vivenciando diretamente sua realidade, conversas, planos em relação ao negócio, ao futuro, o medo de que a diminuição do movimento se estendesse por um período ainda maior, observamos os semblantes tristes e os olhares distantes de muitos feirantes em seu cotidiano. A crise nos foi ainda mais perceptível por meio deles. Eles a sentiam, a faziam transparecer em seus olhares, na postura de seus corpos, no modo desanimado como andavam, no tom de suas vozes…

Cantada por Luiz Gonzaga, a Feira de Caruaru ganhou fama nacional a partir de meados do século passado, fruto de construção midiática4 que criou uma aura em torno dela. É hoje, mais do

que nunca, um lugar onde milhares de batalhadores nordestinos lutam por subsistência ou mesmo pelo sonho de uma vida melhor. O que talvez torne essa feira um pouco diferente de outras é sua dimensão, variedade de itens comercializados, volume de negócios, e, principalmente, sua centralidade na vida de parte

significativa da população de uma região político-geográfica, o Agreste pernambucano.

Assim como diversas outras cidades do Nordeste, do país e do mundo, Caruaru teve sua origem diretamente vinculada ao comércio de feira. Hoje, precisar o quantitativo de feirantes é tarefa delicada, pois este varia em decorrência de diversos fatores. No entanto, o então diretor do Departamento de Arrecadação Externa da Secretaria de Finanças do município estimou existirem na cidade “21 mil feirantes, e se botar diretamente e indireta- mente, tem mais de 100 mil pessoas envolvidas”,5 enquanto o

então presidente do Sindicato dos Comerciantes e Vendedores Ambulantes de Caruaru (Sincovac) estima existir hoje “dentro da feira de Caruaru em torno de 12 a 15 mil”.6 É importante res-

salvar que este universo é maior que o horizonte desta pesquisa (trabalhadores batalhadores), estando incluso aí tanto comer- ciantes estabelecidos (e com relativo capital econômico) quanto tipos característicos da ralé brasileira,7 mas serve como ideia da

dimensão do campo no qual os trabalhadores batalhadores atuam. Ainda sobre a feira, muito embora sejam observadas essas especificidades, nenhuma delas a diferencia substantivamente de outros mercados periféricos Brasil afora – o que possibilita expandir o potencial compreensivo-explicativo dos resultados da pesquisa para realidades similares.

Mas que tipo de mercado periférico é esse? A feira é lócus de atividade econômica, cultural e social para descendentes e remanescentes do meio rural (estes últimos são os que ainda nela comercializam os produtos de suas atividades agrícolas, mesmo que visivelmente em quantitativo menor do que aqueles que compram esses produtos em centrais de abastecimento e revendem na feira); desempregados dos centros urbanos regionais; nordestinos que migraram e retornaram das grandes metrópoles, principalmente São Paulo; pequenos, médios e, em

menor escala, porém em maior influência, grandes empresários; e, principalmente, para famílias inteiras que ou trabalham junto num mesmo negócio ou então em diversos pequenos comércios que tanto podem estar lado a lado, como também podem estar espalhados por outros setores ou mesmo em outras feiras que acontecem todos os dias da semana – nos diferentes bairros da cidade. É, assim, um espaço que constitui e caracteriza as “franjas” do capitalismo moderno, crucial em diversos aspectos à continui- dade dinâmica de seu funcionamento contemporâneo.

Passear pela feira é procurar – e não encontrar – sentido analítico em observá-la como o mito midiático construído há décadas. Praticamente apenas a parte do artesanato tem aspecto diferenciado do resto da feira – pois é para lá que grande parte dos turistas ainda vem. Mesmo assim, as vias estão geralmente sujas. Não há banheiros públicos suficientes e em condições mínimas de uso. As barracas8 sofrem intervenções (reformas e

ampliações) desordenadas e aleatórias por parte dos feirantes. Os fiscais do departamento de feiras e mercados da prefeitura dizem que esse é assunto de outro departamento (o de infraestrutura). Diversos desempregados tentam encontrar a subsistência nas ruas marginais ou então mesmo transitando por seu espaço físico como ambulantes. São chamados, pelos “estabelecidos” mais antigos, de “invasores”. Não compraram o ponto, não possuem o alvará de funcionamento9 e “não pagam” o imposto por uso do espaço

que eles, os “estabelecidos”, pagam. Lutam por um espaço nas margens. Os fiscais recolhem de “todos que podem” esse imposto.10

Diversos pedintes perambulam constantemente por lá. Umas jovens procuram trabalho, outras se prostituem. Os jovens cheiram cola, outros fazem pequenos furtos ou, ainda, simplesmente pedem como os mais velhos. As milícias fazem a “segurança” pelas esquinas. Numa outra margem, o rio foi invadido ou por construções irregulares de comerciantes “bem-sucedidos” ou por uma favela que se projeta para dentro dele.

O aspecto dele é deprimente, completamente tomado de lixo, exalando constantemente odor fétido. As pessoas que passam ou trabalham por lá se alimentam de qualquer modo, em qualquer lugar. Outras esperam as migalhas, sobrevivem com as sobras. A polícia faz batidas para busca e apreensão de produtos falsificados em comercialização. Os feirantes sofrem a cada mudança de governo municipal com a insegurança quanto

aos seus destinos, afinal, “dizem por aí que vão mudar a feira da sulanca11 para outro lugar...”. Os fiscais da prefeitura procuram

regular o uso que esse público faz do próprio espaço público, tentam inibir que eles ocupem as partes “indevidas” – as frentes de suas barracas, espalhando mesas para os clientes, por exemplo. O feirante indaga: “Onde meus clientes vão comer?” Trabalhadores, comerciantes, miseráveis, empresários, funcionários públicos “estrelam” cenas reais do drama moderno.12

É nesse campo que atuam os feirantes que constituem a nova classe trabalhadora brasileira, os nossos batalhadores. Esta investigação partiu da necessidade de se conhecerem as práticas de gestão dos negócios desse público. Perguntou-se então: como esses “trabalhadores batalhadores” fazem para administrar seus pequenos negócios (ou seja, os meios para subsistência e diferenciação da “ralé delinquente” ou “desempregada”)? Como aprenderam a fazer o que fazem? Como poderiam aprender técnicas de administração pertinentes à escala de seus negócios? Quais seriam as possibilidades nesse sentido? Norteados por essas questões, tomamos como objetivo aprofundar o conhecimento sobre a dinâmica dos batalhadores na sua administração, ou seja, buscamos compreender como eles administram seu principal meio de subsistência.

A história que aqui será contada é fruto de sólida pesquisa teórica e empírica.13 Pedro é um “tipo-ideal”,14 construído com

base na análise dos diversos dados coletados, reunidos e arti- culados com referencial teórico comum aos demais textos que compõem este livro. A construção desse personagem, de suas disposições e práticas administrativas se deu no sentido de responder às perguntas apresentadas no parágrafo anterior e que serão sintetizadas adiante. A grande feira livre do Nordeste, aqui brevemente apresentada, é o contexto no qual a história se passa. Eis o campo de batalha de Pedro. Vamos à sua luta.