• Nenhum resultado encontrado

Colaboradora: Djamilla Alves Olivério

INTRODUÇÃO

Se a discussão sobre classe social no Brasil não pode se furtar de falar sobre a questão da cor, não poderíamos falar dos batalha- dores e deixar de lado o tema que também descreve a dominação em nosso meio desde os tempos da escravidão até os nossos dias. Com base nas pesquisas empíricas que resultaram neste livro, podemos dizer que os batalhadores podem ser brancos, negros ou mulatos, da mesma forma que os encontramos em todas as regiões brasileiras. Mas o fato de os batalhadores serem uma classe que agrega todo o exaltado colorido da formação brasileira não anula o fato de que os negros ainda são vítimas de racismo, seja ele de forma sutil ou não, e que isso tem influência nas suas escolhas, na forma de lutar por reconhecimento e no que pode obter para si material e simbolicamente.

Ao contrário dos outros temas deste livro, para a questão da cor não foi feita pesquisa prévia; dessa forma, para descrever o que enfrenta o batalhador negro nos dias de hoje e tentar perceber as continuidades e “novidades” dentro desse tema, discutiremos a luta para ascender vivida pela família Ramos ao longo de três gerações.

Veremos a que tipo de preconceitos estão submetidos os batalhadores negros nos dias de hoje e como reagem à luta para se afirmarem e serem reconhecidos como homens e mulheres de valor na nossa sociedade. Veremos como se dá a luta dos negros batalhadores para se afirmarem como “belos” e “competentes”,

de acordo com o pensamento de que o trabalhador tem que ser “eficaz” e ser um “bom realizador de tarefas”.

Enfim, quero demonstrar, com base nas trajetórias de vida analisadas, em que medida o negro precisa ser “belo” para chegar ao mercado de trabalho e que, sem sucesso nesse mercado, suas chances no mercado matrimonial ficam ainda mais escassas.

* * *

A história de Laura começa em 1922 em uma numerosa família da Zona da Mata mineira. Seus pais foram membros da primeira geração que nascia de pais livres da escravidão. Seus avós também nasceram nessa região e foram beneficiados pela Lei do Ventre Livre. De um total de 15 filhos, Laura é a 12ª.

Laura guarda consigo poucas lembranças da casa em que morava e da convivência com seus familiares. A família começou a se separar antes mesmo que ela nascesse. Primeiro porque alguns de seus irmãos e irmãs mais velhos já haviam se casado, mudado de cidade e tido filhos; segundo porque o elo que poderia haver entre irmãos com idades tão diferentes logo faltou. A mãe de Laura falecera antes que esta completasse seis anos de idade. A entrevistada tem pouca ou nenhuma recordação da mãe. O pouco que dela fala é com base no que os irmãos mais velhos e amigos da família lhe contaram.

Com o falecimento da mãe, o pai de Laura não tinha condições de permanecer sozinho com seis crianças em casa, incluindo uma menina de seis meses, a caçula da família. Com isso, Laura foi morar com um de seus irmãos, já casado e com filhos um pouco mais novos do que ela. Laura não fala com muita satisfação sobre esse período. O seu irmão não batia nela, mas a severidade com que era tratada fez com que aumentasse a dor de já não mais ter pai e mãe por perto. Na época Laura não ia à escola, sua atividade era brincar quando podia e ajudar a cunhada com pequenas coisas de casa. Ela ressalta que não fazia nada de cozinha, mas varria a casa e ajudava a cuidar dos sobrinhos. Laura conta com um pouco de amargura sobre os meses que antecederam sua saída da casa do irmão. Aos 12 anos ela conhecera uma senhora negra, nascida naquela região e que morava no Rio de Janeiro, “amigada” com um homem branco também mais velho. Esse

casal não podia ter filhos e, ao conhecer a história de Laura, desejou adotá-la. Durou meses a tentativa, com visitas, presentes e promessas de uma vida na qual Laura voltaria a ser filha de alguém. A tentativa fracassou porque, aos olhos do irmão – que não consultou ao seu pai sobre tal proposta –, não era certo entregar a sua irmã para uma mulher “amigada”, por mais que isso pudesse ser uma chance de vida melhor para Laura. Sobre esse assunto, Laura fala com carinho da mulher e da possibilidade de ter tido uma infância diferente.

A essa altura o irmão já não queria mais ficar com Laura. Com antigos conhecidos, ele arrumou então uma boa alterna- tiva para a situação: empregar a menina em uma das fazendas da região. Os donos já eram antigos conhecidos da família de Laura e queriam meninas para ajudar nos afazeres domésticos da casa em troca de moradia, roupas, comidas e um dinheirinho todo mês. Assim, Laura voltara para a mesma fazenda em que seus antepassados foram escravizados. Ali, a ainda menina Laura foi sendo moldada para se tornar uma boa “ama” para seus patrões.

A já adolescente Laura tem na religião católica o ponto de partida para seu relacionamento de fé com Deus. Os passeios de domingo – o dia em que podia sair por mais tempo da fazenda, mas sempre acompanhada – eram todos perpassados pela ativi- dade paroquial. Ao ser questionada sobre a importância da sua vida religiosa e da sua fé em Deus, Laura mostra a dor que sentia com relação à família que não tinha mais: “Uma mulher mais velha na fazenda conversava muito comigo sobre essas coisas de Deus. Dizia que eu tinha de rezar muito para Deus e a Virgem Maria me protegerem.” Laura buscava na religião católica aquilo que não tinha: uma família. Ter uma família para si era o que estava no íntimo dela e é o que guia toda a sua trajetória de vida. Nas reclamações que fazia dos seus irmãos, deixa claro que não havia mais elo entre eles. Segundo ela, seus irmãos podiam de fato ir visitar alguém na fazenda vizinha, mas não tinham tempo para ir vê-la depois. Com isso Laura também se desapegou deles. Um pouco ressentida, disse que gosta de assinar o sobrenome do marido porque o seu de solteira de fato “nem é o mesmo que o dos meus irmãos”. Isso mostra como ela se vê apartada da sua família de origem, ao mesmo tempo que percebe que seu vínculo familiar só começou com o casamento.

Com o falecimento de seu pai (quando ela tinha 15 anos), ocasião em que os vínculos se esfacelaram definitivamente, viu pela primeira vez, em muitos anos, grande parte dos seus irmãos reunidos, ainda que morassem na mesma região. (Esse quadro só começa a mudar anos depois, quando ela procura e encontra alguns irmãos e sobrinhos.)

Anos mais tarde, quando Laura se torna adulta, com mais de 20 anos, continua solteira e na fazenda. Os Correios nunca levaram carta para ela, mas o funcionário da empresa chamou a sua atenção. Naquela época a moça certamente vira poucos homens solteiros da cidade ou com modo de vida urbanizado. Certamente isso foi uma das coisas que a fez se interessar pelo funcionário dos Correios, que morava na maior cidade da região, porque ele representava um modelo de vida diferente do que Laura vivia. Mas esse não era o único traço de André que o distinguia dos demais homens que ela conhecia: ele era “crente” e carregava isso no seu corpo. O modo de andar, sempre com o símbolo da sua fé (a Bíblia) embaixo do braço, o andar duro e ritmado, como se marchando em uma batalha, e a seriedade com que se portava chamou-lhe a atenção. O período de namoro foi o momento em que se abriu a Laura a possibilidade de um modo de vida longe da fazenda. Foi nessa possibilidade que ela apostou ao casar-se com André, e iniciaram-se profundas mudanças causadas pelo casamento e a nova confissão religiosa que fizera por causa do marido.

A questão que se colocou na nova fase da vida de Laura foi a de como ser esposa e mãe sem a experiência de um convívio familiar para aprender como funciona uma família. As poucas coisas que sabia sobre o cuidado de casa e de crianças foram da perspectiva de empregada, que deveria fazer suas atividades do modo como a patroa gostaria.

É nessa nova perspectiva que a religião protestante começa a se apresentar. A nova confissão religiosa e a nova vida secular que ela passa a vivenciar levaram-na a um novo aprendizado. No começo dessa nova fase, o templo metodista mais perto ficava em Juiz de Fora, a mais de 60 quilômetros da cidade em que moravam. Era somente em ocasiões especiais que o casal se encontrava com o pastor e demais membros da igreja, por exemplo, quando o primogênito deles foi batizado. Alguns anos mais tarde, a família se muda para Juiz de Fora e começa a frequentar os cultos

durante a semana e aos domingos. Questões como ler a Bíblia diariamente, construir uma relação de proximidade com Deus sem a qual não é possível obter a salvação da alma e comportar-se no mundo para ser reconhecido como um verdadeiro cristão foram coisas que Laura aprendeu primeiramente com seu marido e com a família dele (irmãos e sobrinhos). A primeira pessoa que a auxiliou na sua formação foi Seu André.1

Como já era casada, podia conversar com as outras mulheres casadas sobre os papéis de “mãe” e “esposa”. As novas amigas de Laura, senhoras metodistas ou suas cunhadas, são os exemplos que ela tinha para agir conforme o esperado para um metodista: aprender a ser o melhor que ele puder em todas as esferas da vida. A implicação de ser metodista para ela está ligada à construção do pensamento metodista durante séculos. O metodista se vê como um cristão diferenciado, que tem uma marca e um método de se comportar no mundo; sua missão é mostrar com a vida no que é que se crê. Por isso é importante lembrar-se sempre da cruz de Cristo vazia, pois ali houve sofrimento, mas com a ressurreição a promessa de vida eterna sem sofrimento mantém a fé em Deus, que foi reavivada no Pentecostes. Por isso os símbolos da igreja são a cruz e a chama.

Apesar dos ganhos que ambos tiveram com o casamento, esta união foi conturbada. Por algum tempo, André não era fiel a Laura, e a infidelidade dele atrapalhou as finanças da família, uma vez que ele ajudava a sustentar a família de sua amante. Mesmo com essa fase difícil, Laura não se separou do esposo, até porque para mulheres de sua geração, vindas do interior do país, era inviável pensar na possibilidade de se separar. Laura precisou praticar na sua relação matrimonial aquilo que aprendia a ser na igreja. Uma prova disso é que, em 1988, muitos anos depois da traição, André descobriu ter câncer, e Laura e os filhos cuidaram dele até o seu último dia de vida, um ano mais tarde. Na medida em que os filhos de Laura foram crescendo, ela teve a oportunidade de pôr em prática o que havia aprendido na igreja e ensinar a eles a desejarem uma vida melhor, mesmo sendo negros, pobres e moradores da periferia.