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No caso da família que ilustra este texto, os filhos de Laura tornaram-se bem-sucedidos no mercado de trabalho. Apenas um deles relatou ter passado um período desempregado. Dos seis

filhos, quatro possuem ensino superior completo e trabalham nas respectivas áreas em que se formaram; um é funcionário público e o outro trabalhou como autônomo até se aposentar, de forma a ter uma vida mais próxima da classe média.

O que pode explicar o sucesso dessa família no ambiente escolar e de trabalho? É sabido que nas mais simples práticas do cotidiano escolar, tanto por parte do corpo de professores e funcionários quanto de alunos, sejam negros ou brancos, é feita a distinção entre raças – atribuindo-se ao negro um papel degra- dante tanto com relação à sua imagem quanto à sua capacidade cognitiva de aprendizado prático e moral.

Lembrar da escola, para os filhos de Laura, é lembrar de um período de dificuldades, no que diz respeito à própria aprendi- zagem. Somente o primeiro e o último filho de Laura estudaram como bolsistas em escola privada; os demais, em rede pública. Todos os que ficaram na rede pública foram reprovados mais de uma vez. Os filhos que ficaram na rede pública relatam que os professores, por mais que alguns tentassem ao menos disfarçar, mantinham uma certa distância deles. Alguns dos outros colegas também faziam questão de demonstrar que estavam longe dos negros da sala. A situação no caso deles foi mais simples de se enfrentar do que se formos comparar com os irmãos que foram para o colégio particular. Muito embora no colégio da Igreja Metodista em que os dois estudaram não houvesse discriminação explícita por parte dos professores, eles eram os únicos negros da sala, e isso lhes causava um certo desconforto. Já os que estu- daram na rede pública não eram os únicos negros, e por isso as amizades na escola foram importantes, tanto com os negros quanto com os brancos e mestiços pobres.

Agora, como é possível explicar a permanência de todos na escola e até a sua formação no ensino superior? Uma das expli- cações vem da religião, que lhes ensinou, por meio da mãe – que foi a grande responsável pela continuidade da vida escolar dos filhos até que eles crescessem –, que não deviam desistir de lutar por uma vida melhor e que o meio de obtenção de uma vida abastada era através dos estudos.

Além disso, religião e escola eram os meios que a família tinha de se distinguir entre a sua vizinhança. Era o modo de se afirmar perante a vizinhança como uma família de valor. Os filhos estu- davam, preparavam-se para o futuro; tinham, através da Igreja,

uma formação moral, que para muitos poderia pressupor que se tornariam bons cônjuges e pais. Ou seja, a família tinha meios de fugir da delinquência.

A religião dava o suporte para eles aprenderem a se comportar no ambiente de trabalho. Aprenderam a respeitar o professor, o chefe, sem nunca reagir agressivamente contra eles, mesmo que os insultassem. Laura disse muitas vezes que “tem coisas que se deve ouvir calado”. Esperar pela oportunidade de dar a melhor resposta é o que norteia a conduta dos filhos de Laura no ambiente de trabalho. Essa “melhor resposta” é sempre fazendo no trabalho o melhor que puder.

Como tinham o compromisso religioso de dar um bom teste- munho sobre si aonde quer que fossem, precisavam ser os melho- res alunos e funcionários que pudessem; deviam ser reconhecidos por ser gente trabalhadora e esforçada. Certamente foram esses pressupostos religiosos que, associados ao fato de terem uma família estável, mesmo nos períodos de grandes dificuldades materiais, os moldaram para o mercado de trabalho e ajudam a explicar a permanência de todos eles nesse mercado.

Como o racismo se manifesta no ambiente de trabalho do batalhador negro? Ora, muitos podem pensar que se o negro ocupa algum cargo profissional é porque não há racismo no seu ambiente de trabalho, ou pelo menos que não houve, tanto que ele foi aceito.

Estamos muito acostumados a ver na televisão que o racismo se manifesta contra os bolsos dos negros porque ganham menos do que seus colegas de trabalho possuindo os mesmos predicados que estes. Não é só aí que mora o racismo; isso é apenas reflexo de um processo que culmina em salários mais baixos. Rosa, que é enfermeira, já vivenciou no seu ambiente de trabalho muitos olhares de desdém pela figura de uma mulher negra como chefe, mesmo que a enfermagem seja tida como uma profissão feminina. Quando uma família não gosta do procedimento do técnico de Enfermagem (no caso do hospital em que ela trabalha muitos são negros), pedem para falar com a chefe dele. Segundo Rosa, o olhar e o comportamento da família que reclama mudam quando a veem. Em um caso específico, uma família havia pedido, sem dizer o porquê, para o pai ser atendido por outro funcionário, e seu pedido foi aceito. Alguns dias depois, pediram

novamente para mudar o funcionário e pediram para conversar com a responsável pela unidade (Rosa). Como em cada plantão no hospital há um responsável por cada unidade, a família já havia conversado com outra chefe da seção, que trocaria com Rosa de turno. Esta outra enfermeira avisou-lhe sobre o problema com a família, dizendo-lhe que queriam conversar com ela, e alertou-lhe de que o problema da família com os funcionários era justamente com relação à cor que eles possuíam. Fazendo a sua obrigação, Rosa foi conversar com a tal família, que elegeu não querer que o pai fosse tratado por aqueles dois funcionários em questão porque eles não estavam cuidando com tanta “eficácia” do seu pai e pediram para que Rosa trocasse novamente os funcionários, dessa vez por uma técnica de enfermagem branca que eles haviam visto trabalhando no mesmo andar em que o pai estava internado.

Não só Rosa, mas todos os seus irmãos têm uma história de desconfiança com a figura do negro para contar. O que é comum nos relatos de Rosa, Antônio e Fábio é que eles têm também muitas dificuldades em lidar com seus funcionários, tanto brancos quanto negros. Relatam que é difícil ter um cargo de supervisão quando se é negro, porque “parece que a confiança do grupo na hora de executar o trabalho é mais frágil quando o chefe é negro”. Como se ele não fosse capaz, nas horas mais difíceis, de fazer o que se espera dele. Depois de mais de 20 anos em uma única empresa, Rosa e Antônio já adquiriram confiança e respeito por parte dos funcionários. Mas não deixaram de notar o racismo contra algum funcionário ou contra eles mesmos.

Para mostrar que essa história de racismo no trabalho é coisa que também acontece entre os mais jovens, vale a pena contar o que o filho de Ana, que tem 27 anos, viveu trabalhando em uma distribuidora de cervejas. Júlio César era o único negro que trabalhava como representante comercial nessa empresa. Durante meses um dos gerentes responsáveis por coordenar todos os outros pequenos grupos de representantes da empresa só usava o seu nome como exemplo negativo em vendas. A sistema- ticidade dos comentários e da pressão que ele sofria (mesmo sendo um funcionário pontual, que, como ele diz, assim como muitos batalhadores entrevistados, também já chegou a trabalhar mesmo ferido em acidente de trabalho) foi em alguns momentos

tão forte que ele chegou a ter alguns picos de hipertensão arterial e crises de enxaqueca.

A postura do núcleo ao qual Júlio César pertencia dentro da empresa era a de dar apoio a ele. Sempre nas reuniões do seu grupo, seu superior direto deixava claro para os outros repre- sentantes que, ao contrário do que era dito pelo gerente geral, era Júlio o mais produtivo do seu núcleo. Os colegas também o reconheciam assim e foi uma das razões para ter sido eleito como representante da classe na diretoria da empresa.