• Nenhum resultado encontrado

“Com meu pai aprendi a ter as mãos pro trabalho.”

Seu Luís é homem forte, determinado, de fala mansa e caute- losa, mas sempre repleta de ironia. Aos 61 anos é um galan- teador, sempre bem vestido, com seu chapéu de couro, peça indispensável em sua vestimenta. É o “filho homem” mais velho de Antônio, trabalhador diarista e negociante. Hoje Luís é um médio proprietário rural. Sendo o filho homem mais velho de

oito irmãos, acompanhava o pai desde pequeno, quando ele ainda vendia verdura de porta em porta. Quando se lembra do pai e de tudo que aprendeu com ele, o sentimento de orgulho transparece em seu olhar altivo. A vida na infância era dura, casa de pau a pique, morava em um terreno pequeno e íngreme, concedido por fazendeiro, mas, ao mesmo tempo, o pai sempre garantiu aos filhos a dignidade necessária para que não aceitassem humilhação nas fazendas onde trabalhavam. Seu Antônio nunca estudou, mas era um “matemático”, conta Luís ao se referir aos negócios do pai:

Ele era aquela pessoa que sabia fazer qualquer tipo de conta, pagar ou receber. Quando vendia a mercadoria antes de pesar ele já falava pra você: olha, é tanto. Então, ele não estudou, mas tinha essa inteligência e ninguém passava ele pra trás.

Aos 18 anos, Luís ganhou do pai uma carroça com a qual começou a trabalhar, algum tempo depois o pai sofreu uma parada cardíaca, ficando muito debilitado. Luís assumiu a lide- rança da família, passou a fazer empréstimos e financiamento em banco – o seu pai nunca havia pegado empréstimo bancário, quando precisava de dinheiro emprestado recorria aos amigos. Hoje ele comprou a fazenda em que o pai trabalhou toda a vida. Com 25 alqueires, a propriedade tem uma alta produtividade, favorecida pela implantação de tecnologias e trabalho mecanizado. O trabalho humano é praticamente familiar. Seu Luís ficou viúvo há dois anos, e hoje mora com a companheira Dona Rosária. Ela é a responsável pelo trabalho pesado na feira, como arrumar e carregar as caixas com a mercadoria. Na roça, ela cuida, com a ajuda das duas noras de Luís, da produção do fubá e da farinha torrada, bem como de todo o serviço doméstico e das criações que ficam ao redor da casa, as galinhas, os porcos, trabalho que é dividido com os netos. Quando interrogada sobre a importância de Deus na sua vida, Dona Rosária diz: “Oh, ficar em pé umas seis horas, mexendo um tacho quente de farinha, às vezes as pernas parece que não vão aguentar, é só Deus mesmo pra dá força.” Os três filhos cuidam da lavoura e do retiro.

Apesar de ter grandes dúvidas sobre a continuidade de seu trabalho na posteridade, já que percebe que os filhos e os netos não se encontram envolvidos “de corpo e alma” com a vida rural, Luís conseguiu manter a família ligada ao trabalho produtivo; sem

essa continuidade entre a vida doméstica e a vida produtiva, a prosperidade que vivencia hoje seria pouco provável. A estabi- lidade proporcionada pelo trabalho doméstico é a condição de possibilidade para Luís ter se tornado “um talento” em antecipar a instabilidade do mercado. Podemos observar esse “talento” em várias de suas práticas, bem como a importância da família para a sua efetivação. Sua escolha pela policultura é assim justificada: “as pessoas não precisam comer uma coisa só, e é com elas que tá o dinheiro; então, pra eu ter freguês, eu tenho que ter o que o freguês precisa.” Luís tem 15 variedades, entre legumes e verduras, produzindo também o fubá de moinho e a farinha torrada de milho. Em uma das entrevistas, a esposa o acompanharia, mas havia chovido, e, com isso, a demanda por fubá eleva-se, ele precisaria aumentar o trabalho para ter 300 quilos a mais de fubá de moinho, isso significaria que a esposa e as noras passariam a madrugada que antecede a feira trabalhando. Outro exemplo é quando vai calcular o valor das prestações do pagamento de empréstimos bancários, que é sempre feito por uma estimativa do valor da safra, do lucro da colheita, através de uma avaliação do preço do produto. Contando sempre com fatores externos, como a superprodução, ou uma chuva forte, ele reduz ao máximo o valor da safra de maneira a diminuir a prestação: “Eu lá sou bobo, o banco vai é receber, quem vai pagar sou eu, então eu tenho que fazer os cálculos de maneira a caber no meu orçamento.” Outra forma de controlar e antecipar a imprevisibilidade do mercado é plantar cada cultura em faixas semanais, assim ele não colhe o produto em uma única vez, portanto não incha o mercado, ao mesmo tempo que controla os ganhos, pois sabe que a cada semana com a colheita tem uma determinada quantia em dinheiro para entrar. Caso plantasse e colhesse de uma vez só, além das dificuldades que teria para exe- cutar o trabalho – teria que contratar muitos trabalhadores, tendo mais gastos –, também receberia o dinheiro de uma única vez, o que poderia descontrolar o orçamento. Aqui, diferentemente do caso de Paulo e Helena, não encontramos uma economia da (pré)vidência. Luís não pauta suas práticas econômicas em uma eterna fuga da arbitrariedade passada, mas em possíveis insta- bilidades futuras, nele encontramos de maneira mais forte uma noção de cálculo prospectivo, ou seja, uma ação orientada a um futuro objetivado no presente. No Quadro 1 temos a história de

Joaquim: ele veio de uma família que já possuía algumas terras, mas que experimenta a total decadência da propriedade ao ter sido condenado ao celibato.

Quadro 1 - O celibato forçado de Joaquim

Joaquim é vizinho de Seu Luís. Sua família cultiva hortaliças na região há décadas. Aos 30 anos é o filho mais novo de três meninos, seu pai não teve filhas, ficou viúvo e nenhum dos filhos se casou. O drama vivido por estes três irmãos é muito parecido com aquele encontrado por Bourdieu em Béarn e analisado no artigo “O camponês e seu corpo”; Joaquim é fisicamente um homem bonito, mas sua timidez, seu olhar sempre voltado para o chão, seu jeito “matuto” comprovam sua “falta de jeito com as mulheres” e sua óbvia desqualificação no mercado matrimonial. A pequena produção rural é profun- damente dependente das relações familiares, tendo na divisão sexual do trabalho o seu suporte, assim o celibato imposto a esses três irmãos os condena, gradativamente, a cada alqueire vendido, a uma decadência que “salta aos olhos” assim que se chega à propriedade: a entrada e as hortas tomadas pelo matagal e a residência consumida pelo tempo, exibindo a necessidade de boas reformas. Mas aqui também, como em Béarn, “a decadência da propriedade pode ser tanto efeito como causa da condição de solteiro”. A decadência teve início com a viuvez de seu pai; a falta da mãe e de irmãs fez com que Joaquim e seus irmãos não experimentassem qualquer naturalidade nas relações com o sexo oposto, fato que se une ao processo de decadência da propriedade e os condena ao celibato. A falta de mão de obra familiar unida à ausência de qualquer perspectiva de continuidade social, ou seja, de um futuro objetivado no presente através da continuidade de uma próxima geração intensificam cada vez mais o processo de decadência da propriedade.

Seu Manoel tem parte de sua história muito parecida com a de Seu Luís, mas o seu destino social é trágico. Também filho de “roçador de pasto”, aprendendo a trabalhar na roça desde muito cedo, ele conta que desde os 5 anos já acompanhava o pai “na lida”. Nessa época ele morava com os pais e seus seis irmãos na

casa que o fazendeiro, para quem seu pai trabalhava, lhes cedia; uma casa pequena onde, ao redor, ele criava galinhas e porcos e plantava parte do que alimentava a família.

Seu Manoel trabalhou durante anos como meeiro, para enfim comprar seu pedacinho de terra. Lá ele plantava e preparava o fumo, sendo este sua principal fonte de renda. Além do fumo, sempre teve umas cinco vaquinhas, de onde tirava o leite dos filhos, e uma pequena plantação de cana-de-açúcar, com a qual ele fazia rapadura. A base da produção do fumo era exclusivamente familiar, seus três “filhos homens” (idades entre 10 e 13 anos) o ajudavam no plantio e na colheita, enquanto sua mulher, as ”filhas mulheres” e também as crianças enrolavam e preparavam o fumo. Os meninos, assim que Seu Manoel con- seguia pagar as dívidas que fez na compra do sítio, passaram a receber sua parte do lucro, as filhas nunca receberam nada. Seu Manoel diz: “elas não tinha parte não, elas não tinha parte de nada não, só trabalhava. Estalava fumo até 10 horas da noite, no outro dia tirava fumo outra vez pra estalar.”

Com o tempo, atraídos pela promessa de “vida melhor” na cidade, os filhos vão deixando um a um a produção de fumo; as filhas deixam o campo pelo trabalho doméstico; os filhos, para trabalhar em outras propriedades ou trabalhar como pedreiro na cidade. A cada dia ficava mais difícil manter a produção, sem a mão de obra dos filhos. Seu Manoel estabelece a data em que se tornou impossível manter a produção: “Você sabe quem acabou com a agricultura? Vou falar... falo até duas vezes, Fernando Henrique Cardoso que acabou com a agricultura...”. Ele identifica três fatores principais: o aumento vertical do adubo, a queda do preço da produção, mas principalmente a falta de empréstimos para o pequeno produtor. Com seu próprio corpo corroído pelo tempo e pelas enfermidades (fez três cirurgias nos últimos quatro anos), Seu Manoel, vivendo hoje principalmente de sua aposenta- doria, tem uma postura resignada diante da própria decadência, como podemos perceber em suas falas: “Ninguém interessa, né? As coisa que é pra ajudar o homem da roça, ninguém interessa, né? A gente tem que conformar porque chegou um ponto que não adianta produzir muito...”.

Percebemos a ascensão de um novo tipo de proprietário: o filho do trabalhador diarista, adaptado à ética do trabalho duro e a uma vida perpassada pela arbitrariedade, ou seja, o aprendizado do trabalho desde a mais tenra infância, bem como a exposição à inconstância, seja dos variados patrões, seja da própria natureza. Muitas vezes, ele compra as terras onde trabalhou na infância com o pai. Essa fração ascende, assim como outrora ascendeu o arrendatário capitalista de Marx – camponês que ascende do seu próprio trabalho e passa a comprar mão de obra. Assim como o arrendatário capitalista foi um visionário de sua época, o “bata- lhador rural” é o “visionário da nossa”, devido a sua capacidade de se adaptar às inconstâncias do mercado, antecipando sua imprevisibilidade, como vimos nas práticas de Seu Luís.

A família é base dessa pequena propriedade. A unidade entre família e esfera produtiva é o que organiza os batalha-

dores no contexto rural. Se a compra de mão de obra era para o arrendatário capitalista, sua grande inovação na organização da produção, para eles o trabalho familiar, com base na divisão sexual do trabalho, é seu grande trunfo. Se na antiga pequena burguesia estabelecida os filhos e a esposa poderiam não estar tão envolvidos na produção, muitos deles indo estudar na cidade, para essa classe a socialização dos filhos, assim como foi a deles próprios, é totalmente dependente do aprendizado prático do

trabalho. Não que essa classe não invista também na educação formal, mas esse investimento não exclui esse aprendizado; ao contrário, ele é o que fundamenta essa nova propriedade que surge no campo.

Por conhecer, na prática, a importância fundamental do

aprendizado do trabalho para a manutenção e reprodução da propriedade e da família como uma unidade social, ou seja, como um todo integrado, é que Luís mantém os filhos em “rédeas curtas”. Ele delegou, a cada um, uma função na produção, envol- veu e responsabilizou os filhos no trabalho produtivo. Assim, o

aprendizado prático do trabalho, transmitido por Luís aos filhos, cumpre uma dupla função: possibilita a existência de uma mão de obra familiar, fundamental para a prosperidade da produção. E, ao mesmo tempo, forma nos filhos as disposições necessárias para darem continuidade, para reproduzirem a propriedade e o grupo familiar.

O que permite Seu Luís manter os filhos, também as noras e a própria esposa em “rédeas curtas” é a relação específica de dependência mútua entre os membros, ou seja, o grupo familiar garante a existência física e social de cada membro. Lena fala do sogro com carinho filial: “num sei o que seria de nóis se não fosse ele”, ao mesmo tempo, sem o trabalho das noras, dos filhos e da esposa, a propriedade de Seu Luís não existiria. Diferente- mente da família de Paulo e Helena, a hierarquia e dominação na família de Seu Luís (dominação geracional e de gênero) é mais vertical, mais intensa e explícita. Há uma dependência mútua, mas hierarquizada, que cria relações duráveis, isto é, um compromisso durável.

A dominação masculina, principalmente pautada na divisão sexual do trabalho, é a base da propriedade, bem como das relações afetivas. Luís, ancorado na divisão hierárquica entre corpo e mente, tem na sua posição de “administrador e nego- ciante” a superioridade reconhecida pelos outros membros da família, responsáveis pelo trabalho mais “corporal”. Mas, lado a lado à dominação, base da prosperidade da propriedade de Seu Luís, há uma moralidade perpassando as relações familiares, ou seja, uma renúncia dos interesses individuais, em favor do grupo. E é essa renúncia que permite à família estabelecer relações duradouras. É o compromisso mútuo que garante a continuidade da família e, portanto, da produção. Percebemos esse compromisso em Seu Luís... Algum tempo depois do período das entrevistas, nos encontramos com ele, desnorteado, em um consultório médico, indo buscar o médico para examinar a esposa que tinha adoecido. O vínculo de reciprocidade é o fator fundamental, é a condição de possibilidade para que Seu Luís seja um batalhador empreendedor de sucesso. A ausência dessas relações é o que condena Joaquim e Seu Manoel à morte social. No caso de Seu Manoel, a conjuntura política é fundamental e até mesmo determinante de seu destino social trágico, afinal, como convencer os filhos de que a vida no campo era mais atraente que a da cidade, sem financiamento para o pequeno produtor, com os adubos a preços altíssimos e as safras em baixa? Isso nos leva a perceber que uma conjuntura política pode favorecer ou minar a potencialidade do grupo familiar enquanto grupo de sobrevivência econômica e social.