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A região Nordeste, identificada por Mangabeira Unger (2005) como especialmente frutífera em iniciativas de mercados locais espontâneos, é bastante heterogênea em termos de ocupações. A Feira Livre de Caruaru, considerada Patrimônio Imaterial da Humanidade, o que consta em uma placa logo em sua entrada, talvez seja seu melhor exemplo. Seu mito é forte, pois precisa legitimar e esconder desigualdades igualmente fortes. Sua fama é a de possuir todos os produtos que alguém possa imaginar. Sua realidade, porém, é outra. A feira é outro interessante retrato, como o Ver-o-Peso de Belém, do que é o capitalismo como um todo. Exprime bem a lógica centrífuga de reprodução do capita- lismo, do centro para a periferia. No interior da feira, encontramos comerciantes de diversos níveis, desde os mais “estabelecidos”, donos de pequenas lojas, como as de jeans e calçados, que aceitam até cartão de crédito, até os mais outsiders, que a cada dia aumentam em número, improvisando nas beiradas da feira, cada vez mais favelizada. Considerada um polo de trabalho e comércio local, atrai a atenção e o sonho de muitos batalhadores da cidade e dos arredores.

A Feira Livre de Caruaru é um caso empírico exemplar da configuração socioespacial e das hierarquias ocupacionais do capitalismo periférico. A lógica de reprodução de seu espaço social e simbólico pode ser facilmente identificada em qualquer mercado municipal ou “camelô” do país inteiro. Sua especifici- dade, entretanto, é ser percebida positivamente por seus bata- lhadores como um centro de referência do Agreste, local de trabalho e de improviso, ainda que os que cheguem por último sejam definidos pelos antigos – muitos dos quais um dia foram últimos – como “invasores”. Esse fato indica que, contrário ao mito de amor à feira e à sua consideração como local de confra- ternização e afetividade, a feira é, como qualquer dimensão do capitalismo, um espaço de alta competitividade e improviso, sendo uma verdadeira guerra cotidiana a garantia de um espaço em suas bordas.

A feira possui uma magia para alguns membros antigos, ligados a um suposto passado filiado à arte e à cultura local, que às vezes se apresenta como suave alternativa no mundo

competitivo do capitalismo. Para o filho de um cordelista famoso, que hoje vive vendendo cadernos e pequenos artigos de papel, estar na feira depois de vagar pelo mercado desqualificado é como um refúgio, a melhor escolha para quem não pôde estudar “pra ser doutor”, mas não quer ser “pau-mandado” de ninguém. A autonomia de feirante é um meio-termo, uma liberdade relativa, entre o vitorioso do mercado qualificado e o “pau-mandado da ralé”, perambulando logo ali ao seu redor, como muitos fazem, carregando e montando barracas que serão administradas por feirantes no dia seguinte.

Este ponto trata de uma dimensão específica da feira. Acoplada à feira permanente ocorre, dois dias na semana, uma feira móvel, que se chama Sulanca, e vende basicamente roupas de todo tipo. Por isso, precisa ser montada e desmontada. Esta necessidade abre margem para o trabalho braçal de inúmeras pessoas desquali- ficadas para uma ocupação mais valorizada no mercado. São estes que vão carregar carrinhos pesados com as peças das bar- racas por valores muito baixos. Mesmo nessa dimensão da feira a concorrência é grande. O espaço físico é um retrato perfeito das hierarquias do capitalismo. O pequeno comércio é encontrado em suas várias dimensões e especificidades, organizados de dentro para fora, respectivamente dos maiores para os menores, dos melhores para os piores, e provavelmente dos antigos para os recentes, dos legítimos para os “invasores”, dos “estabelecidos” para os outsiders, como diria Norbert Elias (2000).

Há vários perfis de pequenos comerciantes na feira, além do pequeno agricultor e do artesão, quase extintos, que produzem e vendem sua obra. Entre os pequenos comerciantes encontram-se lojas e bancas de diversos tamanhos. Eles são percebidos sempre como um lado B do mercado, como as franjas estigmatizadas pela desqualificação da mão de obra, das mercadorias, e apresentando a vantagem de preços mais acessíveis, democratizando para boa parte da população a aquisição de produtos alternativos àqueles muito caros na dimensão mais estabelecida do mercado, muitas vezes distinto apenas pela marca e nome do produto. Dentre as maiores lojas se encontram pequenas mercearias, lojas de sapato, lojas de roupa, áreas com pequenos açougues, pequenas peixarias. A fama da feira é que lá “tem de tudo”. Entre as pequenas bancas e barracas há bugigangas de todo tipo, desde cadernos até DVDs piratas. O ambiente da feira é tenso, barulhento, quente: pessoas,

adultos e crianças, pedindo dinheiro e restos de comida, é uma situação normal.

Geralmente o pequeno comerciante quer ser um grande comer- ciante, assim como o camelô quer ser um pequeno comerciante. Quem tem uma barraca quer ter uma loja. Um dono de um pequeno restaurante na feira, depois de viver em várias cidades no Brasil, aprendendo a improvisar em todo tipo de ocupação, agora quer ser dono de uma churrascaria. Quer ganhar dinheiro, seguir o rumo mais desejável de um comerciante. O orgulho relativo e contextual de quem está integrado por baixo na fatia empreendedora do capitalismo provoca a reflexão acerca de um suposto potencial de aprendizado político e cálculo prospectivo.

A análise de fatores externos à ação individual pode ser uma parte importante da compreensão da reprodução social. Dentre estes, as fases e as configurações específicas do capitalismo contemporâneo e de seus desdobramentos no contexto periférico são fundamentais. De acordo com depoimentos, o contexto de ação nos anos de 1980 ainda permitia uma ligação com a arte e a cultura local em proporções tais que sua venda garantia a sobrevivência familiar, como no caso de alguns cordelistas. Os filhos das pessoas que viveram nesta época, após os anos de 1990, já não conhecem a mesma realidade. O fator externo em questão é a nova configuração mundial do capitalismo financeiro e os efeitos de seus novos imperativos de “flexibilidade” e “adap- tabilidade” no contexto periférico. Tais fatores se desdobram de diversas maneiras.

Atualmente, há uma coerção cada vez maior para a escola- rização infantil, mesmo em contextos rurais, pelo menos mais do que há duas décadas. Paradoxalmente, este dado em muitos casos parece contribuir mais para a precarização do que para a qualificação e empoderamento para uma boa inserção no mercado. Um imaginário e um consequente modo de vida que chega em boa parte por propaganda, e em outra por mercadorias de tipo novo, que trazem um novo mundo em si mesmas é outro fator. Tais mercadorias têm valor de uso no atual universo simbólico que compete com o valor em si dos cordéis de outrora, por exemplo. Estes tipos de mudanças estruturais podem ser vistos em seus efeitos através de algumas histórias de vida real de ba- talhadores na feira.