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Por meio do quadro disposicional acima construído, podemos fazer um breve retorno à história de Pedro e assim reconstruir, também de modo sintético, as linhas gerais das origens das dispo- sições decisivas ao modo como ele administra sua barraca.

Essas origens disposicionais podem ser observadas em sua história desde bem cedo em sua infância, quando aprendia com os dogmas do pai que “apurado não é lucro”, ou por observação e acompanhamento de suas atividades cotidianas de agricultor-- -comerciante. Foram reforçadas depois, já em Caruaru, quando desenvolvia atividades similares também na bodega da família. A referência familiar é forte para a formação de sua disposição ascética para o trabalho; o exemplo do pai é incorporado por Pedro, que assim também o faz. Trabalha muito não somente para sobreviver, mas também tanto para dar exemplo aos filhos quanto para ser reconhecido socialmente como um trabalhador e, assim, ser considerado digno, um batalhador.

É um pouco na escola, ao desenvolver um raciocínio matemático que já conhecia na prática ao vender os produtos agrícolas do pai desde bem pequeno, mas muito mais nas suas experiências

Conjunto de disposições Disposições específicas Trechos ilustrativos

p. disposição para cons- trução de imagem positiva nos negócios

p.1 “Procura (...) melhorar a aparência e o ambiente no qual serve os clientes (...)” p.2 “(...) nos negócios a aparência vale muito.”

p.3 “(...) fazer tudo ‘nos conformes’, como era exigido na transportadora.”

p.4 “(...) preza bastante pela organização e aparência de sua barraca.”

q. disposição para apren- dizagem na prática dos negócios

q. (...) “tem coisas que não se ensinam em cursos: bom atendimento, qualidade no produto e preço competitivo.”

r. disposição para aprendi- zagem por meio de obser- vação de outros negócios

r. “(...) Ele diz ter aprendido como fazer no ramo observando as barracas mais arru- madas que a sua, como os proprietários delas faziam para mantê-las sempre ‘nos trinques’ e terem êxito nos negócios (...)”

de trabalho (familiares e, posteriormente, profissionais) que Pedro desenvolve as disposições requisitadas para a subsistência econômica no seio do capitalismo contemporâneo. Trabalhar numa grande empresa, na qual existem procedimentos, normas, orientações previamente definidas para o desempenho das funções faz com que uma pessoa como Pedro, nascida “no mato” e criada numa cidade de interior, precise incorporar novas disposições que ainda não haviam sido requisitadas pelos con- textos de ação nos quais havia vivido até então e, desse modo, aprenda na prática o que deve fazer. Como podemos observar, fazendo uso da lente teórica disposicionalista, as possibilidades são bem significativas de que, ao ser confrontado com um novo contexto, o indivíduo ou incorpore (em maior ou menor grau, a depender dos casos) determinadas disposições requisitadas por esse contexto, deixando “adormecidas” disposições mais pertinentes ao seu contexto original (campo/zona rural) ou anterior (cidade maior, mas também interiorana), ou então reforce disposições contrárias a esse novo contexto (cidade grande, trabalho na empresa) e retorne aos contextos nos quais elas são pertinentes. Determinado a “dar certo na vida”, Pedro conseguiu de modo pré-reflexivo incorporar as disposições necessárias ao trabalho na cidade grande. Mas suas origens o fizeram, depois de certo tempo, não se sentir mais confortável nesse contexto. A demissão veio, e Pedro voltou para suas origens, mas não veio incólume. Ou seja, não simplesmente “tirou a farda” da empresa e vestiu “a bermuda e a camiseta” de feirante. Em seu corpo, trouxe inscrito seu novo “complexo disposicional”, seu “estoque acrescido” das disposições que teve de incorporar para se encaixar num processo produtivo empresarial e para a vida numa cidade grande de modo geral. Agora, serão elas que estarão em xeque na volta de Pedro ao seu antigo contexto de socialização e ao passar para novo contexto de trabalho na feira.

Mesmo sem ter consciência disso, Pedro age como se soubesse que até poderá ir além na escala da ascensão social, mas que não poderá ir muito. É por isso que a projeção dos filhos para o estudo, para outro mundo que não o da feira, é uma forma de superar sua condição original e assim ter, ao final da vida, a sensação de dever cumprido, afinal, fez o possível para que seus filhos “chegassem onde ele não chegou”. Muito embora aparente- mente, num primeiro olhar, esse aspecto não tenha relação direta com o modo como ele administra sua barraca, num segundo

olhar tem sim, e tem muito. É um elemento como esse que faz com que um batalhador como ele tire seus filhos do cotidiano do trabalho na feira (o que acontece com muitos outros pequenos comerciantes de modo inverso), bem como mostra um objetivo ulterior ao ascetismo na administração do negócio em si, ou seja, além da sobrevivência no agora, é nele que são sustentados os seus sonhos-filhos de um futuro melhor.

Reler a história que aqui apresentamos, após termos trazido à tona alguns dos “princípios geradores” dos pensamentos, sen- timentos e ações de Pedro, assim como termos feito esse breve retorno à sua trajetória de vida, pode ser algo esclarecedor ao leitor que espera, de fato, compreender como foram geradas ao longo da vida do nosso personagem condições objetivas (pensamentos, sentimentos e ações) para que ele pudesse hoje administrar seu comércio de feira.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O que claramente diferencia essa nova classe trabalhadora do que se convencionou denominar de classe média, por exemplo, não é uma questão de renda, mas sim dos modos de pensar, agir e sentir constatáveis nas vidas cotidianas que levam os membros de uma e de outra classe. Aqui procuramos caracterizar o modo como atua um dos tipos-membros de uma classe social que conse- guiu, ao longo de sua trajetória de vida, incorporar minimamente as disposições necessárias à sobrevivência produtiva na realidade do novo capitalismo brasileiro, o pequeno comerciante de feira. Dentre estas disposições, a resiliência no trabalho, ou seja, a capacidade de não desistir e de enfrentar jornadas extenuantes, juntamente com a prática de poupança (mesmo que de modo inconstante) e a crença em sua iniciativa prática de “se virar” mesmo em situações das mais adversas são destacáveis.

Além dos aspectos da história “idealtípica” contada acima, um dado apoia ainda mais o capital específico identificado nesta pesquisa como sendo decisivo à trajetória de vida dos membros dessa classe, o capital familiar. Dentre os feirantes que respon- deram nosso questionário, 86,7% deles foram criados por pai e mãe juntos. Algo diferente da realidade da maioria dos membros da ralé apresentados na obra A ralé brasileira. O trabalho desde cedo junto aos pais e irmãos, quer seja na roça, na feira ou mesmo

num pequeno comércio familiar, é traço marcante na história de vida de inúmeros brasileiros que, como Pedro, incorporam uma forte ética do trabalho desde cedo na infância.

A projeção de um futuro melhor para os filhos notada na nova classe trabalhadora brasileira é algo próximo ao que Bourdieu percebeu em relação à pequena burguesia francesa em suas pesquisas apresentadas em A distinção. Ao observar que, em sua existência, o indivíduo não poderá ir além de determinado status na hierarquia social, ele faz o possível para projetar ao máximo seus filhos no sentido da ascensão social desejada. A ideia que talvez possa sintetizar esse ponto é a seguinte: “Com muito trabalho e o pouco estudo que tive eu pude chegar até aqui, se meu filho estudar e for trabalhador como eu, ele poderá ir ainda mais longe.”

Não gostaríamos de concluir este trabalho sem deixar claro ao leitor o que pensamos ser mais importante em nosso apren- dizado sobre a forma como os batalhadores administram seus negócios. Acreditamos que a variável mais marcante nesse caso são as disposições previamente incorporadas em contextos anteriores de trabalho. Ou seja, pensamos ser algo bastante claro, não somente nesse, mas também nos demais ensaios deste livro, que parte significativa do aprendizado utilizado no trabalho pelos batalhadores advém da experiência prática que eles têm ao longo de sua vida, tendo início nos valores elementares que incorporam na família, geralmente estruturada (se comparada com a familia da “ralé”), na qual vêm ao mundo e são criados.

Procuramos responder à questão central que nos propusemos de início, ou seja: como uma pessoa como Pedro administra seu pequeno comércio? Uma pessoa como Pedro administra seu negócio por meio de pensamentos, sentimentos e ações que são decorrentes das disposições (em especial dos conjuntos disposi- cionais de autossuperação, econômicas gerais e administrativas, em nossa análise) que ele incorporou ao longo de sua trajetória de vida. Esta resposta seria um tanto quanto sintética e até mesmo lacônica se a tivéssemos proferido nas primeiras linhas deste texto e caso não tivéssemos empreendido, em seu curso, todo um esforço de compreensão-explicação sobre essas disposições e sobre o modo como elas se apresentam no cotidiano de um bata- lhador como Pedro. No entanto, como nos manda a tradição do bom ofício científico weberiano, pensamos ter explicado como chegamos até ela.

C A P Í T U L O 3

BATALHADORES