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O que é o racismo estético? É o racismo que sofre aquele que possui características corporais que são desqualificadas na vida social. As características físicas do negro são desqualificadas na medida em que existe um padrão de beleza que não o engloba como “belo” e cujos traços não devem ser desejados. Se o leitor quiser comprovar a veracidade dessa prática, basta ir aos salões de beleza e observar quantas clientes negras querem continuar a manter seus cabelos crespos e quantos tratamentos cosméticos são oferecidos a elas para que seus cabelos fiquem lisos. Na nossa sociedade, as mulheres se valem muito mais do que os homens de tratamentos estéticos, o que revela que a preocupação com sua imagem tem significados que não são compartilhados pelos homens, embora lhes agrade que as mulheres de um modo geral se cuidem. É nessa corrida pelo tratamento cosmético com fins ao embranquecimento que a batalhadora negra é impelida a entrar, acreditando que isso lhe trará maiores benefícios.

Certamente a batalhadora negra sofre menos do que a ralé, porque está em melhores condições sociais de lutar pelo embran- quecimento, que é inerente à luta de ascensão de classe. Ou seja, ela tem mais recursos do que quem é da ralé para comprar roupas, cuidar da pele e do cabelo, porque está inserida no mercado de trabalho. O que fazem os batalhadores frente ao racismo estético ao qual são expostos todos os dias na mídia e em suas relações interpessoais? Como é possível construir-se negro, ter autoestima

sendo negro, em uma sociedade em que o negro é a negação da beleza e do “trabalho”?

As práticas desesperadas para embranquecer (mostradas em um capítulo sobre racismo na ralé por Emerson Rocha no livro

A ralé brasileira: quem é e como vive – Souza, 2009) usadas pela ralé já não são as que praticam os batalhadores. Isso porque os batalhadores já possuem uma família estável (com pelo menos um dos pais sendo capaz de ser fonte moral e provisão econô- mica, mesmo que a renda familiar seja baixa), que significa mais segurança para lidar com as situações do cotidiano. E as práticas das batalhadoras negras revelam que o grau de tensão com relação à necessidade de uma “aproximação da estética branca” é somente menos desesperada porque essa classe começa a ter dinheiro para investir no seu corpo e uma melhor posição no mercado de trabalho (o que significa que esse corpo precisa estar em condições físicas de trabalho, caso contrário sua fonte de renda estará ameaçada). Além de saudável, a batalhadora precisa se fazer bonita, por isso o uso do embranquecimento também tem como fim o mercado de trabalho.

Aparentemente são as batalhadoras negras que “escolhem” qual aparência ter, por exemplo, que tipo de cabelo ter. Mas o cabelo alisado e longo (com apliques) não é uma opção: para muitas negras, já está dado que seus cabelos precisam passar por um longo processo químico para que fiquem belos de verdade. Sem o cabelo quimicamente tratado, a mulher negra se sente menos feminina para encontrar um namorado, menos apresen- tável no trabalho, sente-se exatamente como o que foi construído sobre o negro em geral: ela se sente uma submulher.

É para que isso ocorra o menos possível que as batalhadoras negras lotam pequenos salões de beleza dos seus bairros. É para evitar os olhares de reprovação, que doem tanto quanto ser xingada, que a batalhadora busca se aproximar do embran- quecimento.

Não queremos dizer aqui que não existe para elas prazer em fazer tratamentos estéticos. No entanto, a maneira como isso é feito, pautado em padrão de beleza incoerente com sua cor, reflete que a batalhadora negra se submete porque não tem outra opção.

Com relação ao mercado matrimonial, Rosa percebe que a mulher negra tem mais dificuldades em arranjar parceiro, e isso piora com o passar dos anos. Segundo sua visão, quando se é

negra e jovem os homens podem estar dispostos a “usá-la” sem “assumi-la”, ou seja, a mulher negra serve como amante mas não como alguém para se ter uma relação séria. E mais velha também é mais difícil, “porque os homens mais velhos se interessam mais pelas mais jovens”, e também porque “as brancas continuam a ser a preferência”. A batalhadora negra não tem escolha diante da dominação estética, e é isso que ela não tem como ver. A alegria de muitas é só uma expressão do alívio em ter cabelos que, apesar de não serem iguais ao de alguém branco, deixaram de ser crespos.

Convém a quem domina que o dominado acredite que faz o que faz porque é livre e quer tomar tal atitude; convém à ordem do mundo que as mulheres negras se alegrem e acreditem que fazem tudo o que fazem simplesmente porque é bom para elas e ficarão mais bonitas. O movimento em direção ao que é belo é questão de vida ou morte para as batalhadoras, que além de trabalharem muito tanto fora quanto dentro de casa precisam tirar horas valiosas da sua semana para se garantirem belas, além, é claro, do orçamento, que é calculado na ponta do lápis para que sempre possam ir ao salão de beleza.

Agora, para que precisa a batalhadora negra cuidar da sua imagem? Para que na disputa no mercado (seja ele matrimonial ou de trabalho) ela diminua a desvantagem que pesa sobre si. Para que seja percebida na sociedade como alguém que tem valor e é capaz de corresponder às expectativas que pesam sobre ela.

A imagem da qual a mulher negra precisa cuidar tem como objetivo revelar a sua capacidade de exercer alguma função no ambiente de trabalho. De um modo geral, todos os batalhadores pesquisados neste livro precisam provar que podem ser bons trabalhadores e provam isso trabalhando. O que ocorre é que, como a batalhadora negra tem essa dupla desvantagem (ser mulher e negra), antecipadamente precisa ela construir a sua imagem para que as pessoas acreditem que ela pode fazer o que lhe foi proposto. Chegar ao mercado de trabalho nas mesmas condições de outros candidatos não negros pode ser comparado a uma corrida de 100 metros livres em que as negras competem estando 200 metros atrás da linha de chegada.

Rosa e Ana percebem que o embranquecimento é algo que muitas mulheres negras desejam. Percebem que essa questão norteou muitas situações de racismo sofridas desde a adolescência.

A disputa entre elas e as outras adolescentes da rua se dava na dimensão estética do corpo; ambas saíam perdendo porque suas poucas roupas provinham de doações da igreja ou eram roupas que sua mãe ou elas mesmas (mais tarde) faziam.

Para as irmãs, era o sábado o dia do “ritual de beleza”: depois dos afazeres domésticos já feitos, uma arrumava cabelo e unhas da outra. Desse ritual, elas não saíam ilesas. Como usavam uma espécie de ferro quente para alisar os cabelos, geralmente seus couros cabeludos, nucas e orelhas ficavam um pouco queimados, pois era muito difícil manipular esse ferro da raiz do cabelo até as pontas sem tocar na pele. As razões que as levaram a se preo- cupar com os cabelos, a ponto de não evitarem usar algo que pudesse lhes queimar a pele, são claras: elas tinham algumas vizinhas que eram racistas e não queriam ser engolidas pelo preconceito que sofriam. Por muitas vezes foram elas vítimas de deboche por causa da cor e do cabelo que tinham.

No momento de relatarem suas juventudes, o racismo sempre vem à fala; elas percebiam-se como aquelas que não tinham sucesso em amizade e namoro. Sempre lutaram para nunca serem tachadas como “fáceis” e, para isso, a religião foi um escudo eficaz, que, além de proteger a imagem, deu a elas uma noção de vida em “castidade”, que dizia respeito tanto ao ato sexual em si como também a todo um modo de agir com relação à sexualidade. Anos mais tarde é que houve um relaxamento dessa tensão para as duas. Essa segurança só veio para elas porque Ana e Rosa entraram no mercado de trabalho, tiveram filhos e construíram vidas estáveis para si.

O efeito que lhes causa rever suas vidas é motivo de orgulho. O critério de comparação que elas usam para determinar o quão estão bem é comparar, como uma revanche, como estão as vizinhas que tanto desdenhavam delas anos atrás. Comparam suas profissões, suas religiões, suas rendas, o desenvolvimento socioeconômico dos filhos e também seus corpos.