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Os filhos de André e Laura estão abaixo relacionados em ordem cronológica. Antônio, o mais velho, hoje está com 60 anos, e Fábio, o mais jovem, está com 47 anos.

Antônio é engenheiro civil e trabalha há mais de 25 anos em uma empresa de engenharia na África. Sua trajetória escolar começa como bolsista da escola da Igreja Metodista, que tinha o regime de internato. Seguia para casa aos fins de semana e partici- pava com a família das atividades religiosas nesse período.

O exército faz parte da trajetória de vida desse homem, que assim como muitos jovens pobres que têm alguma disposição para estudar no Brasil acreditou que nesta instituição poderia ascender social e economicamente. Fez o seu segundo grau em uma escola da Aeronáutica em outra cidade mineira, onde havia sido bem-sucedido e, por isso, fora designado para continuar na Escola Preparatória de Pilotos dessa força armada.

A saída de Antônio do Exército veio por causa da sua cor. Na ocasião em que havia já se formado dentro da instituição, quando tinha chances reais de fazer carreira nela, seu superior faleceu em um acidente aéreo, e o general que o substituíra era um homem que não permitia negros que possuíam postos mais altos nos seus regimentos. Por causa disso, Antônio foi dispensado. Mas a qualidade da educação que recebera durante a sua trajetória escolar, junto com a disposição incorporada para os estudos, valeram-lhe uma vaga no curso de Engenharia Civil no Rio de Janeiro ainda no mesmo ano em que recebera a dispensa.

Esse período foi de grande dificuldade material para Antônio, que desde que começara a estudar no Exército dividia o seu salário com a família. Estando no Rio, sem emprego fixo e percebendo nos estudos a única possibilidade de ascender, ele dividiu o seu tempo durante todo o seu curso universitário entre fazer bicos e estudar muito.

Assim que concluiu o curso, Antônio começou a trabalhar como engenheiro no Brasil, mas logo foi para o continente africano. Desde então, um dos motivos de orgulho dele é ter tido condições de ajudar a sua família, auxiliando seus irmãos mais novos a terem tranquilidade material para estudar e seus pais, quando necessário.

Antônio é casado, tem dois filhos, duas enteadas e um neto. Para todos tenta Antônio ser exemplo com relação aos estudos. Cobra dos filhos, dos sobrinhos e das enteadas um bom desem- penho escolar, à imagem do seu próprio.

A vida dele gira em torno do trabalho, com pouco tempo para a família. Ele visita seus parentes no Brasil a cada quatro meses aproximadamente, onde permanece em torno de 15 ou 20 dias, mas não é um momento de férias propriamente dito, porque ele continua conectado via internet com o seu grupo de trabalho.

João é o segundo filho dos Ramos. Toda a sua trajetória escolar foi construída em escola pública. Ele é o único filho que em toda a sua trajetória de vida demonstrou possuir disposições muito observadas por todos deste livro no que tange à ideia de um trabalhador autônomo. Trabalhou para empresas públicas tempo suficiente para economizar algum dinheiro e descobrir qual profissão autônoma iria seguir. Como sempre gostou de carros, comprou um táxi e foi por mais de 20 anos taxista em um ponto nobre da cidade.

Apesar de não ter chegado a fazer nenhum curso superior, ele é um homem que exalta a educação de um modo geral. Ele percebe claramente nas suas relações sociais que existe um nível de distinção entre quem estudou e quem não estudou. Apesar de dizer que trata todos com igualdade e respeito, nem todos são iguais diante dos seus olhos. Ele sempre gosta de estar perto de pessoas que “estudaram e são inteligentes”. João possui uma admiração especial por seu irmão mais velho, que, depois do falecimento do pai, ocupou por muito tempo o lugar de chefe da família, mesmo já morando no exterior.

O interessante em João é perceber que ele planejou a sua vida de modo a não ter de trabalhar mais depois que viesse a sua aposentadoria. Ele é o único filho de Laura que é aposentado, vive com a aposentadoria e do aluguel do táxi. Podemos dizer que ele batalhou para não ter que batalhar no futuro.

João é casado e não tem filhos. Sua esposa também é uma mulher batalhadora, vinda de uma família de negros com condi- ções socioeconômicas muito parecidas com as da sua. Hoje sua esposa também é aposentada como técnica em Enfermagem e ao longo de mais de 25 anos de casados ela apoiou o projeto do seu marido em ter esse tipo de vida. Hoje eles levam uma vida

muito parecida com a que planejavam: viajam, vão a festas, têm tempo para trabalhos voluntários e atividades artesanais.

Eliseu é o terceiro filho de Laura e André e também estudou em escola pública; chegou a frequentar um curso universitário, mas não o concluiu. É funcionário público municipal em uma pequena cidade no interior de Minas. É casado, tem três filhos adultos e um neto. De todos os irmãos, este é o que mais luta para escapar do horizonte da ralé. Aparentemente, Eliseu não conseguiu repassar aos filhos a disposição para os estudos e para o trabalho que tanto a sua família preza. O que torna ainda mais delicada a sua história é o fato de que ele é alcoólatra e não possui apoio algum por parte da família que construiu. O apoio que encontra vem da mãe e dos irmãos. Nas histórias sobre Eliseu nos chama a atenção o fato de ele também ter sido um jovem “curioso”, que sempre buscava fazer coleções das mais diversas coisas, de selos de cartas até gibis. Sua coleção de gibis acabou quando seu pai, insatisfeito com o desempenho escolar do filho, a queimou completamente. A lembrança desse episódio não marcou apenas Eliseu, que era dono da coleção, mas também seus irmãos, pela severidade da atitude do pai, embora ressaltem que essa não foi a única vez em que o pai foi rigoroso. Os filhos relatam sobre as “coças” que ele e a mãe lhes davam quando estavam insatisfeitos com alguma coisa que haviam feito.

Rosa é a primeira filha mulher dos Ramos. Desde a infância ajudava sua mãe nos afazeres domésticos, bem como a cuidar dos seus irmãos mais novos. Estudou na rede pública de educação até cursar faculdade em uma universidade federal. Relatou que na sua infância seus pais eram pessoas muito mais severas e que depois que os filhos cresceram é que se tornaram mais amigos, passaram a conversar mais. Por outro lado, apontou o protago- nismo de sua mãe como o principal fator da sua continuidade na vida escolar. Rosa atribui à mãe o fato de ter estudado mais do que as outras mulheres do seu bairro. Segundo conta, Laura insistiu com André que as filhas deveriam estudar.

O exemplo do irmão mais velho sempre foi um norteador de sua trajetória escolar, mas não maior do que o exemplo da sua mãe. Ela descreve Laura como uma pessoa “curiosa” e “interessada por plantas”. Segundo a visão de Rosa, Laura “seria uma botânica” caso tivesse continuado a estudar. Rosa revela com orgulho que sua mãe possui uma enciclopédia sobre plantas brasileiras,

que ela sempre lia para cuidar melhor das que tinha em casa. Foi vendo o interesse da mãe, como exemplo prático de alguém que se interessa de alguma forma pelo mundo escolástico, que Rosa se interessou pelos estudos. Duas coisas além dos exemplos da mãe e do irmão a impulsionavam para estudar: 1) os amigos da igreja que eram pobres, mas que sempre estudavam; 2) a esperança de que em algum momento do futuro sua vida seria melhor do que a vida levada pelas suas vizinhas brancas, que lhe discriminavam em sua adolescência.

Rosa descreve um amigo da família, da Igreja Metodista também e pobre como eles. Aos fins de semana, esse amigo almoçava na sua casa porque não tinha dinheiro para comer na rua. Ele ajudava a ela e a irmã Ana nos estudos. Rosa copiava para ele os trechos mais importantes dos livros que ele pegava emprestado na biblioteca para economizar. Influenciada pelo exemplo deste amigo, Rosa percebeu que estudar poderia ser sua chance de melhorar de vida.

A discriminação que ela e a irmã sofriam era estética, tanto com relação ao seu estereótipo quanto à imagem da casa em que moravam. Ela conta que foram muitas vezes consideradas como “mais feias do bairro” e que a sua casa, aos olhos das outras adolescentes que as discriminavam, também era a mais feia, porque o chão era de cimento batido, encerado com ceras coloridas. Os rapazes do bairro também não as viam como as mais belas. Mas a religião fazia para Rosa uma grande diferença porque ela não era “fácil”; tinha o comedimento esperado para uma jovem evangélica.

Sua trajetória escolar foi pautada por dificuldades, reprovações de ano, momentos de discriminação por parte de professores. Ela conta que um dos professores era o seu “terror”. Ele colocava medo nos seus alunos e não fazia questão alguma de oferecer-lhes ajuda com a matéria que lecionava. Esse professor mantinha-se à distância de alunos negros. A matéria ensinada era difícil; ficava impossível ter algum vínculo com a disciplina quando o professor sistematicamente repelia o aluno. Rosa lembra que a sua única filha anos depois também passou por situações em que se deparou com o racismo na escola.

Anos mais tarde, Rosa cursou a faculdade de Enfermagem e foi na universidade que conheceu seu ex-marido, pai de sua filha. Segundo ela, eram poucos os homens negros na universidade

naquela época, e a maioria não se interessava por mulheres negras. O único negro que se interessou por ela foi o seu ex-marido, que é africano. Seu círculo de amizades na época era constituído basicamente por outras mulheres negras e pobres como ela.

Com relação ao mercado matrimonial, Rosa percebe que a mulher negra tem mais dificuldades em arranjar parceiro, e isso piora com o passar dos anos. Segundo a sua visão, quando se é negra e jovem os homens podem estar dispostos a “usá-la” sem “assumi-la”, ou seja, a mulher negra serve como amante, mas não como alguém para se ter uma relação séria. E mais velha também é mais difícil “porque os homens mais velhos se interessam mais pelas mais jovens” e também porque “as brancas continuam a ser a preferência”.

Depois de formada, não teve dificuldade em arrumar emprego porque suas notas eram boas e também porque suas amigas lhe indicavam para trabalhar em hospitais. Desde que começou a trabalhar nunca ficou desempregada.

Mais ou menos um ano depois de estar formada, Rosa se ca- sou. Descobrira no mesmo mês em que iria se casar que estava grávida. Para a igreja e para a sua família não foi um problema, porque o pastor que estava na igreja na época tinha um “outro comportamento com mulheres grávidas ou mães solteiras. Dife- rente do que pensam muitos pastores hoje em dia.” A relação com o então marido durou menos de cinco anos. Depois dessa relação, nunca mais se casou, vivendo para trabalhar e educar sua filha, da mesma forma como percebemos que fazem os bata- lhadores que trabalham para investir em uma vida melhor para seus filhos. Trabalha entre 63 e 73 horas por semana, dividida em dois empregos diferentes. E é também no ambiente de trabalho que relata dificuldades com relação à cor que possui. Relata já ter lidado com muitos casos de insubordinação de funcionários, que não lhe respeitavam por ser negra; relata muitas vezes ter sido isolada por outros chefes de enfermagem por causa da sua cor e não se esquece dos olhares de desdém e surpresa de pacientes ao verem uma chefe de enfermagem negra.

Ana é a outra filha dos Ramos. É formada em Recursos Humanos e até encontrar essa carreira havia feito o antigo Magistério, chegando a ser professora na própria escola onde havia estudado na infância. Mora com a mãe e atualmente não trabalha mais

porque Laura, hoje com 87 anos, precisa de alguém por perto, por mais que seja lúcida e ativa.

É solteira, nunca se casou e criou seu filho Júlio César sem a parti- cipação do pai biológico dele. Na igreja, como já mencionamos, não houve problema com o tabu da mãe solteira. A liderança da igreja na época dizia que o “filho é bênção na vida da mulher” e que ninguém poderia julgar uma mãe por causa de uma “benção”. O apoio maior veio da mãe e da irmã, que criaram o rapaz ao lado de Ana. Depois de se separar, Rosa foi morar com ela e a mãe, e as três juntas criaram as duas crianças usando a religião como auxílio para o aprendizado moral delas.

Fábio é o filho mais novo da família Ramos. Sua juventude teve menos dificuldade material, o que para ele foi decisivo. Foi bolsista da escola da Igreja Metodista, assim como o seu irmão mais velho. Sua juventude foi diferente da que viveram seus irmãos. Aproveitava mais o tempo de lazer, pois a família já não vivia com o dinheiro tão contado. O que o diferencia também dos irmãos que chegaram a cursar o ensino superior é que Fábio não precisou correr para terminar o seu curso de graduação em Engenharia Civil. A razão também está nas condições econômicas da família. Isso mostra que nesta época os Ramos começavam a ter alguma ascensão econômica. O exemplo de Fábio era o seu irmão mais velho. Assim como Antônio, Fábio buscou nas Forças Armadas uma chance para crescer na vida, fazendo então um curso de Engenharia Militar dentro do Exército. Depois de se formar em Engenharia Militar e em Engenharia Civil, foi promo- vido pelo Exército para trabalhar no Norte do país.

Dez anos mais tarde ele decidiu voltar para Minas Gerais por causa da saudade que tinha da família e porque, estando casado e com dois filhos, não queria criá-los longe de sua família e da família de sua esposa, que também estava em Juiz de Fora. Fábio ficou alguns meses na cidade mineira e não conseguiu trabalhar por muito tempo por lá, o que o levou a seguir o exemplo do irmão mais velho, que construiu a sua carreira como engenheiro na África. Desde então tem uma rotina marcada por “pequenas” férias a cada três meses para visitar a família que ficou no Brasil.

O pouco tempo para a família não é característica somente da família Ramos, e sim um traço do batalhador que faz longas jornadas de trabalho em mais de um emprego e que muitas vezes não tem o fim de semana livre. O papel da trajetória dos Ramos

é exemplificar quais são alguns dos obstáculos que fazem parte da trajetória dos batalhadores negros do país.

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No próximo trecho veremos quais são os tipos de racismo aos quais o batalhador negro está exposto. Usarei a trajetória dessa família como exemplo para descrever o que acontece com várias famílias de negros batalhadores que precisam enfrentar o racismo para se afirmar na sociedade e conseguir ascender socialmente.