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As estruturas objetivas do sistema capitalista conformam ao mesmo tempo um sistema econômico e um modo de vida simbólico. Estas duas dimensões se reproduzem através da for- mação dinâmica de padrões de classe, sempre hierarquizadas na dinâmica do sistema. Tais padrões se reproduzem através de ações individuais que a um só tempo se constituem como histórias de vida e como histórias de classe. Três histórias de vida pareceram mais marcantes na pesquisa, por explicitarem através de caminhos distintos a reprodução de uma mesma condição de classe, o que nos permite analisar a especificidade dessa nova classe trabalhadora dos batalhadores em um momento espe- cífico do capitalismo periférico, marcado pela intensificação da precariedade, da desqualificação e da informalidade, na realidade, velhas amigas do capitalismo periférico.

O primeiro caso é a trajetória de um dono de um pequeno restaurante na feira, que chamaremos aqui de João. Ele é casado, tem 49 anos e é pai de uma filha criança. Podemos considerar, além da trajetória pessoal, a trajetória de uma família. Este caso é exemplar de uma realidade muito comum na Feira de Caruaru: eles moram na própria barraca. Assim, boa parte da feira, assi- métrica e heterogênea em seu espaço, é na verdade uma área comercial, ao mesmo tempo que é um bairro pobre.

A trajetória pessoal de João exprime bem um dos principais traços constitutivos de sua classe: uma inconstância social marcada por pequenas ascensões e quedas nos padrões econômicos e consequentemente nos níveis de qualidade de vida. De origem familiar pobre, suburbana, estudou muito pouco em sua juventude, sabendo apenas assinar o nome e algumas noções primárias de conta. Por isso, nunca trabalhou em alguma ocupação formal- mente qualificada, mas vagou por trabalhos de auxiliar durante toda a juventude, em ocupações que apenas exigiam esforço braçal.

Um dado específico, que marca a história de muitos bata- lhadores nordestinos como este, é a migração e experiência de vida de alguns anos em São Paulo. Este traço exprime a vulne- rabilidade e a necessidade de adaptação constante dessa classe. Em sua fase em São Paulo, João viveu experiências díspares, desde comer pão do lixo, em difíceis momentos iniciais, até

chegar a ser gerente de uma churrascaria com 18 empregados sob sua direção. Tais “contextos de atualização de disposições” distintos, utiliando expressão de Lahire, permitiram que ele desenvolvesse disposições como resistência física, insistência, capacidade de observação e imitação, quando era empregado, e desejo de ascensão social.

Devido a altos e baixos no mercado de trabalho, ele não conseguiu se estabelecer em São Paulo, perdendo bons empregos, o que também se explica por motivos pessoais, ligados princi- palmente a uma incapacidade assumida em poupar e administrar seu dinheiro. Na volta ao Nordeste, depois de enfrentar inúmeras dificuldades, ele se estabelece aos poucos na Feira de Caruaru. Uma característica central dessa classe é uma necessidade de insistência, aprendizado e adaptabilidade, em nome da digni- dade. A disposição para ser trabalhador honesto, vinda de família honesta e pobre, gera o ímpeto de se esforçar para levar a cabo algum pequeno empreendimento comercial que dependa muito pouco ou quase nada do estudo formal da escola.

Assim, um batalhador como João pode conseguir estabelecer uma atividade comercial regular em vários ramos, dependendo das oportunidades e da contingência de sua trajetória. Como teve oportunidade de ser empregado no ramo alimentício, em São Paulo, e o esforço de aprender a cozinhar, ele atualmente se empenha para levar adiante um pequeno empreendimento alimentício. Trabalhando com a esposa e com mais uma pessoa empregada informalmente, ele mesmo cozinha e divide com os demais todas as outras tarefas da rotina, como servir, arrumar e limpar.

A disposição motivadora central é muito mais para o trabalho diligente e honesto do que alguma capacidade minimamente sofis- ticada de administração e empreendedorismo. Ele está há cerca de sete anos neste atual empreendimento e não apresenta ascensão significativa, mas sim a manutenção de um padrão mínimo de dignidade para sua família. A observação de alguns casos sugere que certas ascensões pequenas não necessariamente dependem de uma capacidade muito sofisticada de cálculo, mas de fatores contingentes do contexto econômico do ator que proporcionam uma espécie de “empreendedorismo passivo”. Este conta com uma parcela de sorte, de um bom momento do mercado para uma atividade específica, mas que não pode desconsiderar certa

capacidade de adaptação e aprendizado mínimos para a admi- nistração de um pequeno empreendimento.

Algumas condições objetivas contextuais também são suges- tivas quanto a certas dificuldades de ascensão de pequenos comerciantes, como João, que possuem sonhos de crescimento. Ele gostaria de ser dono de uma grande churrascaria, como a em que trabalhou no passado em São Paulo. Entretanto, apesar de seu trabalho insistente e constante no cotidiano, seu rendimento neste pequeno empreendimento é muito pouco, garantindo apenas a reposição dos itens para comercialização e a sobrevivência da família. Neste caso, ainda que ele apresentasse capacidade para poupança e reinvestimento, faltaria um contexto de aplicação para tais capacidades. Neste caso, João é um “batalhador”, mas não chega a ser um “batalhador empreendedor”.

Outro caso significativo é o de uma jovem senhora de 45 anos, que chamaremos de Zuleica, dona de uma pequena lanchonete na Feira de Caruaru. A história é emblemática, dentre outros motivos, por oferecer um sugestivo panorama da relação entre as dimensões rurais e urbanas do capitalismo periférico. Ela teve uma infância tranquila no campo, sem muito luxo, mas também sem passar dificuldades materiais. Este é um aspecto presente na trajetória de muitos batalhadores que vêm do campo para a cidade. Muitos hoje vivem situação precária na cidade, pior do que um modesto conforto no campo, vivido por uma geração anterior. Este contraste reflete mudanças objetivas no capitalismo periférico dos últimos anos, exigindo cada vez mais a migração para a cidade por parte de famílias pobres que não encontram trabalho no campo.

Zuleica foi uma adolescente singularmente bela. Logo cedo viveu o assédio masculino, principalmente pelos rapazes da cidade. Como analisa Bourdieu no texto “O camponês e seu corpo”, os valores da cidade geralmente entram em choque com o habitus do campo.6 Este contraste parece ter se transformado

em um contexto de atualização de disposições para esta jovem. Através dos olhos dos rapazes que brilhavam para ela, percebeu logo cedo, na adolescência, a possibilidade de uma vida melhor na cidade. Ela é enfática ao relatar que não queria “ser mulher de matuto”. Esta fala ganha um significado central no contexto geral de sua narrativa.

Sua mãe tem um histórico de decadência na vida rural. Nascida em família abastada, ela desce em seu status quando se casa com o pai de Zuleica, um simples trabalhador campesino. A menina cresceu presenciando a mãe reclamar de ser mulher de matuto. O contexto familiar parece gerar uma forte disposição para querer sair do campo. Como teve uma base familiar estruturada, de pais honestos e sem passar necessidades materiais, a entrevistada consegue migrar para a cidade através de uma possibilidade de trabalho. Uma tia a leva para trabalhar em uma loja e ela aproveita a oportunidade para se mudar definitivamente para a cidade.

Como completou o ensino médio, Zuleica pôde trabalhar em ocupações minimamente qualificadas. Passou nove anos trabalhando como caixa em um supermercado, chegando a ser promovida a um cargo de supervisão. Esta informação sugere a atualização de disposições para constância, responsabilidade, compromisso, seriedade e disciplina. Estes anos em um trabalho formal e remunerado possibilitaram a poupança de uma quantia em dinheiro suficiente para que ela decidisse arriscar um pequeno empreen- dimento por conta própria, experiência esta bem comum entre os batalhadores brasileiros no espaço urbano que apresentam disposições econômicas razoáveis para poupança e cálculo.

Seu primeiro empreendimento independente foi a montagem de uma barraca para vender roupas na citada Feira da Sulanca. Ela relata que há muito tempo “era apaixonada por esta feira”. Enquanto trabalhava como empregada, Zuleica alimentava o desejo de “ser uma autônoma”, algo que a diferencia de muitos que permanecem como bons empregados por toda a vida. O ímpeto para tal mudança conta tanto com um desejo pessoal rela- cionado a disposições para calcular o futuro e à autossuperação, quanto com contextos de oportunidade para ação, como é o caso de se receber uma boa indenização no ato da demissão.

Outro contexto de atualização de disposições importante em sua trajetória foi o contato com uma amiga que lhe indicou um bom ponto na feira e sugeriu seu ingresso no ramo de lanchonetes. Ela deixa o empreendimento anterior, que passava por vieses comuns a esta fração do mercado, e aluga uma barraca de porte médio no espaço da feira onde se encontram lanchonetes. Começa a trabalhar arduamente e em seis meses está com suas contas em dia. Estes dados sugerem uma ética do trabalho incorporada e

boas disposições para administração e atendimento aos clientes, detalhe que faz muita diferença no ramo de alimentos, bem como limpeza do ambiente e organização. Habilidades como a manu- tenção de alimentos frescos e o preparo de lanches saborosos também são diferenciais e são qualidades da entrevistada.

A rotina narrada pela entrevistada mostra uma vida quase que totalmente voltada para o trabalho. Um pequeno empreen- dimento comercial deste porte exige uma carga horária alta. Ela abre o estabelecimento antes das sete da manhã e só fecha no fim da tarde, de acordo com o movimento de clientes. Folga apenas no domingo. Conta com o auxílio do filho de 20 anos, que demonstra visíveis dificuldades com o trabalho. Isso exige que Zuleica esteja a todo o momento atenta ao atendimento na barraca. Ela é uma máquina para o trabalho.

Em seu relato, o único lazer é televisão e consumo. Como mantém um lucro pequeno, porém constante, por mês, além de ter uma casa alugada, investimento este resultado de anos de trabalho árduo e diligente, ela hoje tem uma renda razoável. Esta renda mantém um padrão de dignidade, expresso principalmente no consumo, porém não está sendo reinvestida para o cresci- mento do negócio. Ela construiu uma casa confortável, comprou uma moto para o filho e compra constantemente boas roupas de marca, as quais quase não usa, a não ser para ir à igreja e ao shopping nos domingos.

As disposições econômicas de uma pequena comerciante como Zuleica são simples. Isso se exprime na espécie de contabili- dade prática destes tipos de comércio, que operam uma economia diária em sua administração. Ela não costuma tomar empréstimos para investir no negócio. Apresenta o sonho de crescer, mas na prática apenas mantém a estabilidade do negócio, o que em si já exige disposições para constância e disciplina. Ela também é uma batalhadora não empreendedora. Um dado importante é que o comportamento econômico expresso na administração do comércio reflete as mesmas disposições econômicas exigidas para o controle dos gastos na vida pessoal. Zuleica não gasta dinheiro “à toa”, a não ser com roupas que admite comprar além das necessárias. A sobrevivência como pequeno comerciante que não cresce, mas se mantém, o que já é um mérito em um mercado cada vez mais competitivo, exige uma contenção total

das economias, em uma vida digna, porém moderada, e financiada totalmente com o sacrifício de seu corpo.

O terceiro caso é de outro dono de restaurante, de 37 anos, que chamaremos de Eliel. Este já está em um nível de empreen- dimento que o distingue dos demais. Seu restaurante é um dos dois mais frequentados na feira. Trabalha com a família, mulher e dois filhos, um menino e uma menina já adolescentes, além de ter seis empregados informais, sendo que quatro trabalham apenas na terça e no sábado, dias da feira da Sulanca, nos quais toda a Feira de Caruaru fica bem mais movimentada.

Eliel viveu sua infância em um pequeno sítio, a 12 quilômetros de Caruaru. Vive lá até hoje. É um típico caso de quem sai apenas parcialmente do campo. Como ele mesmo define, “cidade é lugar apenas para trabalhar”. Ele vem e volta do sítio com a família quase todos os dias em uma Parati dos anos de 1980, bem conservada. Nas vésperas dos dias da Sulanca, ele e a família dormem na própria barraca, para darem conta de arrumar todos os detalhes para o dia seguinte, que começa bem cedo.

Eliel teve uma família estruturada no sítio. Seu pai tem um sítio bem abastado, com fontes de água natural. Foi um agricultor bem-sucedido e seus irmãos são todos comerciantes estabelecidos. Além da disposição para o trabalho, adquirida em um contexto familiar estruturado, ele teve, além dos exemplos do pai e dos irmãos mais velhos, algumas ajudas práticas, que se constituíram como contextos de atualização de suas boas disposições. Depois de trabalhar em vários empregos e pequenos empreendimentos, como o de roupa, no qual faliu, ele atualmente parece ter acertado seu destino.

Um de seus irmãos, comerciante já estabelecido há anos, foi quem alugou o atual restaurante para ele, já equipado. Esta ajuda é narrada na forma de uma “sociedade”, na qual este irmão entrou com o capital e Eliel entrou com o trabalho. Na prática, ele vai pagar o irmão quando puder. Em pouco tempo, ele estabeleceu uma boa clientela, pagou todas as contas e anexou uma barraca ao lado, que atualmente utiliza como depósito para suas mercadorias. Eliel é um tipo de “batalhador empreendedor”, ou seja, está mais para pequeno empresário que para trabalhador, ainda que a distância em relação a este não seja tão grande. Seu restaurante já é bem maior do que o de João, mencionado acima, tendo uma

cozinheira profissional como empregada e espaço próprio para as mesas nas quais os clientes são servidos, diferente de João, que precisa dispor suas poucas mesas na rua.

Observando sua rotina, vemos facilmente que Eliel é uma máquina para o trabalho, não para um segundo, perfeccionista, atento a detalhes e acompanhando de perto a ação de cada empregado. Confere se cada cliente está satisfeito com o prato servido. Agradece pessoalmente a cada um. Estes dados sugerem que, além de disposições econômicas básicas para administração e cálculo, um batalhador empreendedor precisa também saber ser patrão, ou seja, apresentar disposições para liderança. Sua família parece colaborar suavemente, pois todos também apresentam boas disposições para o trabalho e correspondem à liderança séria e honesta do pai.

No caso dos homens, uma disposição importante para muitos batalhadores é a sobriedade. Eliel apenas toma cerveja modera- damente no domingo, quando joga futebol no sítio com amigos, o que se apresenta como sua única atividade de lazer. É visível em seu filho, já rapaz, todo o jeito de comerciante do pai, o que sugere que seu exemplo prático parece estar dando certo. Eliel apresenta ideias concretas acerca de mudanças e melhoras em seu negócio, algo não encontrado nos dois exemplos anteriores. Ele pretende, em breve, colocar vidro sobre as mesas, no lugar das tradicionais toalhas, por acreditar ser mais higiênico e de aparência mais moderna.

Como consequência do movimento dinâmico de seu negócio, sua administração exige uma exclusividade maior dele, que passa quase todo o tempo atendendo a fornecedores e cuidando para que não falte nenhum item no estoque. Há itens que estragam rápido, em parte por causa do intenso calor típico da região, e que são repostos quase que diariamente. Outro detalhe importante da organização de seu negócio é que todos trabalham uniformizados. Pelo crescimento que já apresentou e por pequenas propostas concretas de mudança, alcançáveis, diferente de sonhos vagos que todos geralmente têm de possuir um negócio bem maior, parece que Eliel é um tipo de “batalhador empreendedor”.

Em suma, temos aqui três trajetórias de vida bem distintas, que não podem ser facilmente generalizadas como tipos ou perfis sociais homogêneos. Entretanto, elas reproduzem certos

padrões de classe que contribuem para definir esta nova classe trabalhadora, que estamos chamando aqui de batalhadores, sejam eles empreendedores ou não. São eles: 1) origem familiar estruturada, infância vivida com pai e mãe juntos, sem passar necessidade material imediata; 2) disposição para o trabalho esforçado e honesto, o que significa também desejo de dignidade; 3) disposições econômicas básicas para cálculo e administração primários. Quanto ao batalhador empreendedor, os elementos diferenciais, afora os demais, o que podemos chamar de “disposições secundárias” de empreendedor, além das “disposições primárias” do batalhador no geral, parecem ser: 1) disposição e cálculo para autossuperação; 2) disposição para chefia e liderança.

C A P Í T U L O 6