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Nas igrejas pentecostais e em algumas protestantes tradicionais, tenta-se criar um ambiente mais igualitário. A batalhadora negra encontra no seio do contexto religioso uma fonte de autoestima para lidar com a possibilidade de sofrer racismo. A valorização da figura feminina no que diz respeito ao trabalho (em algumas denominações capaz de assumir cargos em todos os níveis da hierarquia institucional e do trabalho) e a seu corpo é algo muito pregado e incentivado. É claro que não é do modo como a mídia mostra como legítimo, ou belo, mas há um conceito do que se deve ou não usar no seu vestuário, por exemplo. O uso de cosmé- ticos para pele, cabelos e algumas maquiagens também são artigos usados pelas batalhadoras que frequentam igrejas pente- costais. A valorização da mulher (apesar de ser considerada pela teologia a figura que ficou com as dores do parto, como castigo pelo pecado original) como possuidora de virtudes morais tanto na vida religiosa quanto na secular é demonstrada nos cultos feitos para elas e nas atividades que elas são estimuladas a fazer.

A mulher negra dentro do ambiente religioso sente-se estimu- lada a se amar e a se aceitar como tal na medida em que ganha autoestima e segurança para agir no mundo. Mas o fato de promo- verem uma igualdade de gênero, tema inclusive debatido no interior dessas instituições, não quer dizer que na prática todas as mulheres sejam iguais entre elas e aos olhos dos seus irmãos na fé. No ambiente religioso aqui mostrado como exemplo, o racismo nunca foi um tema discutido pela membresia, nunca foi trazido à luz, sendo reproduzido tal qual a vida secular faz: em silêncio e encobrindo como “preferências individuais” uma seleção que

remete à cor da pele. O racismo no mercado matrimonial é o que mais fica evidente dentro de alguns contextos religiosos por causa da endogamia a que eles são estimulados. O que aparentemente é uma escolha do indivíduo em conformidade com a “vontade de Deus” revela a construção dos atributos de um par ideal. Quanto mais branco for o ambiente em que circula o negro batalhador, mais fica difícil a sua situação no mercado matrimonial. A beleza da miscigenação, exaltada por grandes teóricos do pensamento social brasileiro,3 esconde que o negro

tem dificuldades em se colocar vivo no mercado matrimonial, que por sua vez não é um jogo favorável ao “gingado” e ao “erotismo” atribuídos aos negros.

Quem mais sai perdendo nesse jogo são as batalhadoras negras, haja vista que o “erotismo” do homem negro pode lhe conferir uma posição privilegiada no mercado sexual dado o seu “exotismo” (diga-se de passagem, o conceito de “exótico” é outro preconceito, porque não dá àquele que é assim classificado a possibilidade de ser visto com alguma semelhança), ao passo que a mulher negra é aquela que serve como amante, mas não como esposa. Para o homem negro, casar-se com uma mulher cujo padrão de beleza é próximo ou corresponde ao padrão de beleza dominante é status. Mas não há status em um homem branco casar-se com uma mulher negra. A esposa bonita (segundo o padrão de beleza estabelecido) significa que o homem (seja ele negro ou branco) possui sucesso.

No caso da família aqui estudada, três gerações ficaram expostas a esse tipo de racismo de forma muito mais evidente do que se estivessem em outra igreja protestante, isso porque o ambiente da igreja Metodista frequentada pelos Ramos é de classe média. Para melhor explicar o nosso argumento, descrevemos abaixo um pouco sobre essa igreja:

A Igreja Metodista surgiu com a proposta de ser uma religião para os pobres; na época de sua formação, quem ocupava cargos de liderança não eram esses pobres alcançados pela religião, e sim uma classe mais esclarecida e mais rica.4 Ao chegar ao

Brasil, com a mesma proposta de ser uma religião para os pobres e dirigida por classes mais abastadas, o metodismo conseguiu conquistar fiéis que pertenciam às classes médias e trabalhadoras em ascensão, não os mais pobres e negros do país. Se a proposta de “uma igreja para os pobres” tivesse sido no país levada ao pé

da letra, certamente na igreja que os Ramos frequentam (a maior da denominação da região) haveria mais do que duas famílias negras como membros ao longo dos anos.

Hoje a igreja em questão, a primeira fundada por essa deno- minação no estado de Minas Gerais, possui mais de 500 fiéis que frequentam suas atividades. Essa igreja está potencialmente em franca expansão numérica, pois aderiu ao modelo de igreja em células, no entanto sua expansão não alcança nem os batalhadores nem a ralé da cidade. Em um contexto de classe média, em que pobres eram e continuam sendo poucos, e negros, a minoria, o racismo de cor (e de classe também) se manifesta no mercado matrimonial de modo mais claro.

Quando é que o mercado matrimonial começa a ser definido dentro de um contexto religioso? Quando os jovens são estimu- lados a fazerem amigos dentro da igreja e a namorarem pessoas com a mesma confissão de fé que a sua. Contudo, o compartilha- mento de uma mesma confissão religiosa não é o único critério para alguém que está inserido em um contexto religioso escolher seus amigos e namorados. Origem de classe e cor da pele podem decidir o mercado matrimonial dentro da igreja.

Como a Metodista aqui em questão é uma igreja de classe média, a preferência por se ter amigos dessa classe é evidente. Isso é o que marca as amizades que os Ramos tiveram na igreja. Ao elencarem os amigos da época em que eram jovens da igreja e nos explicarem um pouco sobre eles, percebemos que esses amigos eram brancos pobres da igreja e que tiveram uma trajetória de ascensão social parecida com a que essa família teve. Os Ramos não eram convidados para as festas de casamento dos membros de classe média, não compartilhavam algumas saídas destes e, por fim, não namoravam membros da classe média.

A definição do mercado matrimonial dentro do contexto metodista excluiu qualquer um dos Ramos como possibilidade. Nenhum deles namorou, tampouco se casou com membros dessa igreja, por mais que tivessem passado toda a juventude dentro desse contexto. Perguntamos sobre a outra família negra da igreja e soubemos que as únicas filhas também não haviam se casado com metodistas.

Se o contexto metodista fosse um contexto favorável às relações inter-raciais e intersociais, André, o pai da família, teria encontrado

uma jovem para se casar dentro do seu ambiente religioso, e não procuraria no “mundo” (ou seja, fora do seu contexto) uma parceira. É justamente por causa do contexto desfavorável que André procurou uma mulher para namorar fora da igreja, caso contrário não faria sentido para um homem religioso e estimulado a ser endogâmico ter uma parceira de outra confissão religiosa. De todos os seus irmãos, André foi o único que permaneceu na Igreja Metodista. Todos os seus irmãos foram para a Assembleia de Deus, uma igreja composta por trabalhadores pobres; em cujo contexto, eles encontraram parceiras para si, assim como seus filhos e netos. Ao exemplificar a diferença na trajetória de André e de seus irmãos, quero mostrar que nem todos os contextos religiosos protestantes excluem os negros do mercado interno matrimonial, entretanto cabe lembrar que, nos contextos nos quais a cor não é o que manda na preferência pela escolha do parceiro, existem outros critérios que determinam aqueles que são ou não “casáveis”.

Um pouco mais acima, dissemos que as três gerações da família Ramos não foram contempladas como parceiros potenciais dentro do mercado matrimonial, isso porque os filhos de Ana e de Rosa, que cresceram e foram jovens dentro dessa mesma igreja, hoje são casados com pessoas de fora da Igreja Metodista, sem terem namorado anteriormente membros da igreja. Ou seja, três gerações de metodistas que a princípio possuíam todos os pres- supostos (como o grau de escolaridade e posição no mercado de trabalho) para se casarem com membros da igreja não o fizeram, ao passo que os parentes que foram para um contexto religioso em que havia mais negros e mais pobres, de modo geral, foram bem-sucedidos no mercado matrimonial da igreja. A mesma lógica que fez com que André procurasse uma pessoa fora da igreja, ou seja, a impossibilidade de o mercado matrimonial se dar no contexto religioso também se impôs a seus filhos e netos.

Com certeza o racismo no ambiente cristão é ambíguo e difícil de demonstrar, porque dentro do discurso teológico Cristo veio de forma igual para todos, sem distinção. A batalhadora negra sente-se valorizada dentro de um ambiente em que todas as mulheres são comparadas às “joias mais raras e às flores mais bonitas”.5 Mas a contradição mora exatamente no fato de que a

batalhadora negra não é a primeira a ser escolhida como parceira, e muitas vezes sequer será escolhida. E por quê? Porque a imagem

da mulher negra como esposa não representa status para o homem, seja ele negro ou branco. Quando o critério cor fala mais alto, escolaridade, profissão, renda, nada disso ajuda a mulher negra a ser encontrada.

Certamente é uma dor para muitas mulheres que se encontram nesse mesmo contexto o fato de não se realizarem afetivamente no ambiente em que é pregada igualdade plena. São obrigadas a ter outro dilema que não trataremos aqui: ficarem solteiras ou procurarem parceiros de fora do ambiente religioso – que não é o que lhes foi ensinado como o desejável.

Dentro ou fora do ambiente religioso é difícil para as batalha- doras negras de modo particular encontrar um par. O ambiente religioso é nesse aspecto semelhante ao da vida secular do qual ele tanto trabalha para apartar os seus membros, pois os critérios que pesam na escolha de um parceiro (para além da confissão religiosa) são os mesmos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Vimos aqui que o racismo é sentido no dia a dia do batalhador negro. A luta por se afirmar como trabalhador e como alguém que merece ter reconhecimento social é desigual para o negro.

Sua imagem como negação da beleza e como alguém que pode não ser um bom funcionário obriga os batalhadores negros a lutarem pelo embranquecimento para garantir um espaço no mercado de trabalho, no qual continuam sujeitos à discriminação. Vimos também que, apesar de todo o esforço pelo embranque- cimento e da ascensão no mercado de trabalho, as batalhadoras negras em especial têm mais dificuldades para ter sucesso no mercado matrimonial.

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P A R T E