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Aqui é preciso recuperar da teoria disposicionalista seu conceito central, ou seja, o conceito de disposição, e articulá-lo aos pontos centrais da nossa história, visando apresentar a gênese das disposições e como elas são determinantes no modo de administrar do tipo de batalhador em questão.

Bernard Lahire procura fazer uma retomada crítica da sociologia disposicionalista – que tem no trabalho de Pierre Bourdieu seu grande esforço de explicitação – e dos seus “instrumentos de pensamento” na condição de teoria da ação. Para ele, é “a tradição disposicionalista que tenta levar em consideração, na análise das práticas ou comportamentos sociais, o passado incorporado dos atores individuais”.18

Aqui consideramos ser necessário esclarecer ao leitor o que pensamos quando falamos em “disposição”. Para isso, as palavras de Lahire são esclarecedoras:

Na verdade, uma disposição é uma realidade reconstruída que, como tal, nunca é observada diretamente. Portanto, falar de disposição pressupõe a realização de um trabalho interpretativo para dar conta de comportamentos, práticas, opiniões etc. Trata-se de fazer aparecer o ou os princípios que geraram a aparente diversidade das práticas.19

Com esse suporte teórico, podemos observar ações, pensa- mentos e sentimentos das pessoas como resultados objetivos de alguns princípios que os geraram. Esses princípios seriam frutos de origem, visão de mundo e hábitos “herdados” da família; dos contextos sociais dos quais participou o indivíduo; de suas experiências educacionais e profissionais; assim como de outros possíveis contextos de socialização e de atuação que foram signi- ficativos em sua trajetória de vida. Ou seja, partindo das origens familiares e sociais, ao longo dessa trajetória, uma pessoa tende a apresentar, “estocar” e incorporar determinadas disposições que podem ser demandadas, por exemplo, em certos contextos socializadores nos quais ela irá se inserir.

Em nosso entendimento, a forma como os batalhadores comer- ciantes administram seus negócios é principalmente determinada por esses conjuntos de disposições que eles “herdam”, “ativam” (e “desativam”) ou incorporam (e desincorporam) ao longo de sua trajetória de vida. Logo, para explicá-la, é preciso compreender a gênese daquelas disposições, dentre todas as que compõem seu “complexo disposicional”, que são decisivas para sua prática cotidiana de gestão. Ou seja, nossa pretensão aqui é explicitar essas disposições que lhes permitem dar conta da dinâmica cotidiana de seu negócio. Procurando ser o mais preciso possí- vel, o movimento que faremos será o de apresentar os conjuntos disposicionais, as disposições específicas a eles relacionadas e ilustrá-las por meio de trechos da história do batalhador. Feito isso, poderemos apresentar um instrumento analítico para compará-lo à formação das principais disposições, ao longo de uma trajetória de vida batalhadora, que possibilitam a um traba- lhador desempenhar as atividades necessárias à administração de um pequeno comércio.

Pensando nesses termos, faremos aqui um recorte no “com- plexo disposicional” do nosso tipo-ideal, e então apontaremos os conjuntos de disposições que seriam, em nosso entendimento, mais decisivos para a trajetória e, em especial, para as atividades administrativas desempenhadas por um batalhador comerciante. É claro que, na realidade, essas disposições apresentam-se como inextrincavelmente inter-relacionadas – haja vista que fazem parte, juntamente com outras, do complexo disposicional de um indi- víduo. No entanto, para fins explicativos, pensamos ser necessário operar essa delimitação – de cada uma das que julgamos serem mais importantes ao fenômeno em questão e assim poder melhor compreendê-lo.

Dito isso, os conjuntos disposicionais que destacamos seriam: disposições para autossuperação, disposições econômicas gerais e disposições administrativas. Juntamente a eles também apresen- tamos suas características gerais, as disposições neles inseridas e os trechos ilustrativos20 recuperados da história acima contada.

Disposições para autossuperação seriam as inclinações e propensões – que podem ser observadas empiricamente por meio de trechos da história de vida de um batalhador que apontam para pensamentos, sentimentos e ações – que visam à superação de uma condição de vida anterior ou atual e, consequentemente, a projeção do batalhador para uma outra situação de vida vista, por ele, como melhor, tanto para ele próprio quanto para seus familiares. Para que essa superação aconteça é (ou foi) preciso que ele incorpore algumas disposições, reforce algumas outras, ou “desative” outras que compõem seu “estoque disposicional”, mas que não seriam pertinentes a esse tipo de movimento. Neste conjunto estariam reunidas, acompanhadas dos respectivos trechos que as ilustram, disposições como as seguintes: dispo- sição para projeção dos filhos para ascensão (“[A filha] Lê com bem mais desenvoltura que o pai, quer entrar na universidade. O pai vibra e apoia muito isso.”); disposição para fazer-se exemplo (“Pensa no exemplo a ser dado aos filhos. Nas boas companhias que espera para eles.”); disposição ascética (“Depois de muito trabalho e com essa experiência... recebeu uma promoção. Tornou-se ‘encarregado’, fala com muito orgulho daquilo.”); disposição para aprendizagem pela experiência (“Através desse trabalho, além de aprender o jogo de cintura de um negócio de feira...”); disposição para projeção de futuro (“...e também

pensava, em médio e longo prazo, propiciar vida melhor para sua família.”); disposição para construção de imagem positiva (“O som alto e algumas brigas que acontecem são vistos por Pedro como coisas que afastam os seus clientes e denigrem a imagem do negócio que ele tanto cuida para fazer parecer ao máximo com um ‘restaurante’.”); disposição para a aquisição de bens de consumo “superiores” (“Ainda não satisfeito com o que tem na barraca, pensa em equipá-la com um micro-ondas e uma nova e maior TV.”).

Disposições econômicas gerais seriam aquelas que se impõem ao indivíduo para que ele incorpore, recuperando aqui as palavras iniciais de Bourdieu, “através da educação implícita e explícita, o espírito de cálculo e de previsão”, amplamente requisitados num contexto capitalista moderno. Aqui estariam agrupadas basi- camente duas disposições já devidamente ilustradas: disposição para o cálculo econômico (“Seu pai sempre dizia: ‘apurado não é lucro, meu filho!’”/“Registra o que entra e o que sai de cabeça...”); disposição para poupança (“...conseguiu juntar algum dinheiro para comprar um ponto e montar um pequeno comércio.”/“já fez poupança regular”).

Como disposições administrativas denominamos as disposições que são determinantes no modo como um batalhador comer- ciante pensa e desempenha diariamente diversas das atividades necessárias ao “bom” funcionamento de seu pequeno comércio, ou seja, as inclinações e propensões à realização de ações de planejamento, coordenação, ordenação e controle de um negócio. Vale ressaltar que este último conjunto é diretamente depen- dente e vinculado aos conjuntos anteriores, pois estes seriam mais gerais e também diretamente relacionados ao modo como o indivíduo se projeta no mundo, à sua racionalidade econômica e, obviamente, à orientação das suas ações administrativas. Ei-las então já acompanhadas dos respectivos trechos que as ilustram: disposição para cálculo econômico aplicado (“...ainda no tempo de seu pai agricultor, ajudava-o na contagem, transporte e venda dos seus produtos agrícolas.”/“Como reformou a barraca há pouco (piso e balcão), para ampliá-la pensa num empréstimo.”); dispo- sição para atendimento e trabalho comercial (Em sua infância, “Atendia os compradores, pesava as mercadorias, recebia e passava troco.”); disposição para organização e coordenação de atividades (“Com o tempo, passou a orientar, ordenar e controlar

os carregamentos melhor que seus colegas.”); disposição para “visão de negócio” (“Via nesse ramo a possibilidade de rápido retorno do investimento...”/“Ele fala com orgulho sobre a escolha da localização do seu ponto, diz que foi altamente seletivo na hora de comprá-lo...”); disposição para construção de imagem positiva nos negócios (“Procura... melhorar a aparência e o ambiente no qual serve os clientes...”/“...nos negócios a aparência vale muito.”); disposição para aprendizagem na prática dos negócios (“...tem coisas que não se ensinam em cursos: bom atendimento, qualidade no produto e preço competitivo”); disposição para aprendizagem por meio de observação de outros negócios (“...Ele diz ter aprendido como fazer no ramo observando as barracas mais arrumadas que a sua, como os proprietários delas faziam para mantê-las sempre “nos trinques” e terem êxito nos negócios...”).

A título de síntese do que acima acabamos de apresentar, eis a seguir um quadro no qual reunimos os conjuntos disposicionais, as disposições neles inseridas e os trechos ilustrativos.

Quadro síntese da seção

Conjunto de disposições Disposições específicas Trechos ilustrativos

Para autossuperação

(inclinações e propensões – que podem ser observadas empirica- mente por meio de trechos da história de vida de um batalhador que apontam para pensamen- tos, sentimentos e ações – que visam à superação de uma condição de vida anterior ou atual e, consequentemente, à projeção do batalhador para uma outra situação de vida vista por ele como melhor, tanto para ele próprio quanto para seus familiares.)

a. disposição para projeção dos filhos para ascensão

a. “[A filha] Lê com bem mais desenvoltura que o pai, quer entrar na universidade. O pai vibra e apoia muito isso.”

b. disposição para fazer-se exemplo.

b. “Pensa no exemplo a ser dado aos filhos. Nas boas companhias que espera para eles.”

c. disposição ascética c. “Depois de muito trabalho e com essa experiência (que o diferenciava) recebeu uma promoção. Tornou-se ‘encarregado’, fala com muito orgulho daquilo.”

d. disposição para apren- dizagem pela experiência

d.1 “Através desse trabalho, além de aprender o jogo de cintura de um negócio de feira (...)”

d.2 “Aprenderam a fazer o que fazem hoje por meio das experiências profissionais anteriores de Pedro, da observação dos outros feirantes e da prática culinária de sua esposa (...)”

e. disposição para proje- ção de futuro

e.1. “(...) e também pensava, em médio e longo prazo, propiciar vida melhor para sua família.”

e.2. “Emocionado, Pedro diz que foi na feira que conseguiu quase tudo que tem hoje, demonstra ter carinho por ela, mas que, mesmo assim, queria conseguir montar um comércio ‘na rua’ mesmo e que não queria esse destino de feirante, de modo algum, para seus filhos.”

f. disposição para constru- ção de imagem positiva

f. “O som alto e algumas brigas que acon- tecem são vistos por Pedro como coisas que afastam os seus clientes e denigrem a imagem do negócio que ele tanto cuida para fazer parecer ao máximo com um ‘restaurante’.”

g. disposição para a aqui- sição de bens de consumo “superiores”

g. “Ainda não satisfeito com o que tem na barraca, pensa em equipá-la com um micro-ondas e uma nova e maior TV.”

Conjunto de disposições Disposições específicas Trechos ilustrativos Econômicas gerais

(disposições gerais para a incor- poração de espírito de cálculo e de previsão)

i. disposição para o cálculo econômico

i.1. “seu pai sempre dizia: ‘apurado não é lucro, meu filho!’”

i.2. “Registra o que entra e o que sai de cabeça (...)”

j. disposição para pou- pança

j.1. “(...) conseguiu juntar algum dinheiro para comprar um ponto e montar um pequeno comércio.”

j.2. “já fez poupança regular”

Administrativas

(disposições que são deter- minantes no modo como um batalhador comerciante pensa e desempenha diariamente diver- sas das atividades necessárias ao “bom” funcionamento de seu pequeno comércio, ou seja, as inclinações e propensões à realização de ações de planeja- mento, coordenação, ordenação e controle de um negócio.)

l. disposição para cálculo econômico aplicado

l.1. “(...) ainda no tempo de seu pai agri- cultor, ajudava-o na contagem, transporte e venda dos seus produtos agrícolas.” l.2. “Outro cuidado, também constante, é com a economia, afinal, ‘tem que fazer as coisas direitinho, se não no final do mês fica no buraco’.”

l.3. “Como reformou a barraca há pouco (piso e balcão), para ampliá-la pensa num empréstimo.”

l.4. “Via nesse ramo a possibilidade de rápido retorno do investimento (...)” m. disposição para aten-

dimento e trabalho co- mercial

m. “Atendia os compradores, pesava as mercadorias, recebia e passava troco.”

n. disposição para organi- zação e coordenação de atividades

n.1. “Com o tempo, passou a orientar, ordenar e controlar os carregamentos melhor que seus colegas.”

n.2. “As atividades são divididas.” o. disposição para “visão

de negócio”

o.1. “Via nesse ramo a possibilidade de rápido retorno do investimento (...)” o.2. “Ele fala com orgulho sobre a escolha da localização do seu ponto, diz que foi altamente seletivo na hora de comprar e que rejeitou muitos outros por não serem bem localizados, pensava ele, ‘tem que ter um bom local, tem que ter boa visão’.”