• Nenhum resultado encontrado

Neste item, detalho o meu processo corporal, desde os primeiros laboratórios corporais até a incorporação da personagem que se nomeia Menina. Descrever esta trajetória é de suma importância para compreender o universo desta pesquisa e do trabalho realizado com as crianças.

Como relatado no item anterior, a primeira ida para o campo ocorreu em Janeiro de 2009 e, logo em seguida, iniciamos os laboratórios dirigidos pela Prof.ª Graziela. No primeiro dia de laboratório, a imagem que surgiu era de uma ladeira de terra com casas de pau a pique. Havia outras pessoas no espaço, adultos e crianças, e um boi correndo de um lado para o outro. O movimento que acompanhava esta imagem era o de pisotear o chão de terra. De repente, um ser modelou-se e ocupou o lugar.

Rodrigues (2003, p. 136) diz que “modelar é despertar uma vivência que está alojada em nossa pele, em nossos músculos, em nossas articulações, em nossas vísceras” 9. A modelagem tinha a postura abaulada e mesclava a sensação de ser velho e de ser boi. Os pés desta modelagem pisavam cuidadosamente no chão, gerando uma

9 Pode-se considerar uma diferença entre o que é considerado um corpo, nesta fase laboratorial, e o que

é a modelagem corporal. Turtelli (2009, p. 42) diz que modelagens são “configurações dinâmicas do corpo [do bailarino] que estão ligadas a sensações internas, a determinadas qualidades de movimento e a imagens”. Nagai (2008, p. 14) considera que o corpo que se apresenta em um momento do laboratórios é “o resultado de uma modelagem, ou seja, uma postura com atributos de emoção, sentido e gestos bem definidos”. Melchert (2010, p. 139) diz que “corpo é um conteúdo que se manifesta através de uma modelagem”.

23

sensação de insegurança seguida por uma vontade de vomitar. No segundo laboratório, uma modelagem em torção caminhava por uma rua cercada de casinhas. A respiração era ofegante e acompanhada de grunhidos. Logo depois, estava dentro de uma casa. Percebi que, para sair, tinha de passar por uma fresta estreita, com movimentos encolhidos do corpo. Após sair da casa, a sensação de eixo (verticalidade) ficou forte. Essa sensação trazia para meu corpo a imagem de uma boneca gigante.

Prosseguindo os laboratórios, esse corpo de boneca andava por uma corda bamba. Abaixo da corda, via-se a escuridão e, acima da corda, um céu azul e ensolarado. No dinamismo das imagens, essa corda passa a entrar direto no meu peito, bem na região do esterno. A sensação era de dor e incompletude, um vazio no peito.

Outras duas paisagens fizeram-se presentes nesta primeira fase laboratorial. A primeira representava o estar em cima de um morro, de onde eram vistas casas e um grande lago formado a partir de um riozinho. A modelagem no corpo era de uma criança pequena e seus movimentos eram de torções no nível baixo, como se estivesse espreguiçando. A sensação era de curiosidade e vontade, vontade de seguir em frente, de olhar adiante. A segunda paisagem representava o estar em um cercado de arbustos. A modelagem ainda era de uma criança e seus movimentos eram arrastados pelo chão, simulando uma fuga. O sentimento que habitava meu corpo era de indignação; uma sensação de estar perdida, de estar sem saída apoderou-se de mim.

Em Março de 2009, retornei à cidade de Pedra Azul, investindo, neste momento, no meu convívio com o cotidiano dos foliões do Boi de Janeiro fora dos dias de festa. Após este retorno ao campo, os laboratórios delinearam a existência de quatro Corpos:

24

Criança: Um corpo “infantil”. Suas posturas e seus movimentos abarcam angústia, tristeza e solidão e a sensação de estar perdida, sem rumo, sem ter o que fazer. A paisagem que cerca este corpo é uma sala toda vermelha e de destroços. Seus movimentos são contidos, com resistência e força. A postura do corpo se mantém na vertical. A “voz” sai por meio de um choro e de um resmungar. As partes do corpo que mais se movimentam são os braços, os joelhos e os pés, algo parecido com uma criança fazendo manha. O corpo tem vontade de deitar no chão e espernear, mas tanto o espernear quanto o choro são contidos e reprimidos por uma censura interna. O corpo da criança é marcado por manchas pretas;

Boneca: Seu corpo é muito parecido com o da criança, porém ela tem um tônus muscular que lhe permite agilidade e flexibilidade. A boneca é quem dança, rodopiando e sambando. A sensação é a de que, para dançar, o corpo torna-se boneca. Ela tem um sambar debochado e, quando mexe com a saia que veste, faz com que suas manchas sejam reveladas. Exibe as manchas como um troféu. É um corpo vertical, entretanto mais fino na espessura. Ela tem os cabelos divididos ao meio e presos nas laterais em dois rabos baixos. Este corpo transita entre duas paisagens: a sala vermelha e uma rua de pedras;

Boi: É um corpo com menos indumentárias, mais cru. É o corpo das manchas. É pesado e permanece na posição perpendicular do tronco em relação ao chão. Este corpo varia entre contenção e expansão, as duas com o tônus muscular elevado. A expansão gera movimentos de esticar o corpo com o sentido de abrir um espaço apertado. É uma expansão com força de empurrar, trazendo um tônus alto para a modelagem e, também, sons parecidos com gritos (mas com a boca fechada). Tem a respiração pesada e barulhenta. Essa expansão do boi é “rodeada” pelos sentimentos de raiva e de ódio. A contenção aparece nos momentos em que o Boi sente medo (da perseguição do urubu). O corpo do Boi encolhe-se durante caminhadas suaves, vagarosas e quietas. O Boi fecha-se no chão, tentando ser o mais invisível possível, visto que ela não pode chamar a

25

atenção. As mãos da modelagem são fechadas, formando patas. O Boi vive dentro da boneca; seu ambiente é totalmente escuro;

Urubu: É um corpo velho, com garras e bico. O som que sai de seu corpo são grunhidos misturados com uma respiração forte e roca. Seu corpo exala um cheiro de podridão. A boca, que não para de salivar, tem um gosto de podre. A posição do corpo é abaulada, tendo uma contração da bacia junto com o abaular das costas. As sensações que permeiam este corpo são nojo, asco e ânsia. As paisagens em que ele vive são carregadas de lixo, secas e cheias de ossadas. Persegue o boi no voo.

Para o desenvolvimento destes corpos, foi crucial a direção da Prof.ª Graziela. Em um dado momento, a professora indicou-me trazer para os laboratórios uma boneca de pano. A partir desta indicação precisa, neste momento do trabalho, ocorreu uma integração do corpo da criança com o corpo da boneca, evidenciando um só corpo:

Menina. Neste momento, a Menina passa a “nuclear os conteúdos” (Rodrigues, 2003) e

a incorporação da personagem acontece. Os corpos do Urubu e do Boi passam a dinamizar a trajetória da personagem Menina, sendo modelados de acordo com os conteúdos emocionais e os movimentos trabalhados em laboratório. Além dos corpos do Urubu e do Boi, a personagem possui dois objetos principais: a boneca de pano e uma máscara de boi feita de lata e enfeitada de fitas de cetim.

Com o avançar do trabalho laboratorial dirigido pela Prof.ª Graziela, percebemos uma diminuição do Urubu, que, gradativamente, vai deixando de ocupar os espaços dos laboratórios. Outra percepção importante é a forte ligação do Boi com o interior da personagem, ressaltando este ser como uma parte vital do processo de vida e de força da personagem Menina.

A finalização da Iniciação Científica e o avançar do processo laboratorial possibilitaram a síntese dos conteúdos da personagem, organizado em um roteiro descrito resumidamente a seguir:

26

27

1- Quintal: Nesta paisagem, a menina acorda entre as folhas das bananeiras. A paisagem é o quintal da casa de sua “vozinha”. É um lugar bom para brincar, de terra batida, com um riozinho correndo ao fundo. Muitas árvores estão plantadas ali. É manhã. O céu está limpo e o sol bate forte na pele da Menina;

2- Fuga: Apesar de toda diversão que a Menina encontra na companhia da Boneca ao raiar do dia, a tristeza de perceber-se só no quintal transforma a atmosfera. Neste momento, brincar com a Boneca, nadar no riozinho, subir nas árvores não é suficiente para alegrá-la. O céu fica nublado e a Menina sente-se entediada. Procura outras companhias, mas o que encontra é somente um quintal vazio, uma casinha vazia. A imagem do quintal bom para brincar dá espaço para um quintal carregado de raiva. A Menina quebra as paredes da casa da “vozinha” e, com a Boneca embaixo do braço, parte sem rumo. É a sua fuga;

3- Travessia: Na subida da ladeira, a Menina aventura-se por novas paisagens. É uma travessia arriscada, cheia de perigos e buracos dos quais ela deve desviar. A mudança de ambiente permite-lhe esquecer, temporariamente, que está só. É imersa na sensação de liberdade e de felicidade na companhia da Boneca. Elas dançam a sensação de serem livres;

4- Briga: A felicidade não dura muito e a Menina se vê com fome e em um lugar desconhecido. A personagem pede ajuda para a Boneca, mas ela não responde. A personagem entra em conflito com sua boneca de pano. Em um grande momento de birra, a Menina maltrata, machuca, bate na Boneca, abandonando-a nesse local;

5- Boi: Já é noite quando a briga entre a Menina e sua boneca termina. Nesta hora, o Boi surge. A princípio, a modelagem do Boi está furiosa e sem controle. Ele libera chifradas em várias direções. Com o passar da noite, a sensação é a de que o Boi vai acalmando-se e passa a seguir uma caminhada no meio de uma mata. Lá encontra a Boneca e passa a protegê-la. Carrega a Boneca no seu lombo.

28