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Trabalhamos referências dos festejos de boi durante toda a atividade com as crianças, a partir das matrizes48 de movimentos, dos objetos, da musicalidade e da figura simbólica do boi. Estas matrizes e movimentos trabalhados com as crianças são partes integrantes da Técnica de Dança do Método BPI. Os aspectos da Estrutura Física e da Anatomia Simbólica utilizadas com as crianças, como consta na organização dos dados, foram:

 “Postura de boi”;

 “Rabo de boi”;

 Matriz do “pé de boi”;

 Matriz de movimento das figuras dos índios e dos pajés do Bumba Meu Boi do Maranhão;

 Matriz do infinito.

Dentre os itens descritos nesta lista, destaco a observação da resposta corporal das crianças referente ao trabalho com o “pé de boi”. Para a apreensão da matriz, o movimento foi destrinchado com foco em promover um melhor entendimento da qualidade articulada da matriz. Enfatizamos os apoios do pé de diferentes formas: pelo toque, pela pintura de uma figura da sola do pé, pelo alongamento e pela caminhada com diferentes qualidades e ritmos. Ao esmiuçarmos o movimento da matriz na caminhada, envolvemos as crianças em um estado de atenção em relação ao modo correto de pisar com o pé no chão.

48 Melchert (2007, p. 31) diz: “quando nos referimos à matriz devemos considerar seu caráter gerador,

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Figura 22: Destrinchando a matriz “pé de boi”. Foto: Flávia Pagliusi.

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Figura 24: Destaque do pé. Foto: Flávia Pagliusi.

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Uma vez que já havíamos constatado que este grupo demonstrou uma limitação do contato dos pés com o solo, esse trabalho enriqueceu o desenvolvimento corporal das crianças, pois a matriz do “pé de boi” auxiliou na percepção das partes do pé (calcanhar, metatarso e bordas). Este dado influencia diretamente no desenvolvimento motor da criança pelo aporte ao ajuste do equilíbrio e da postura.

O andar apresenta-se se como um padrão motor que se desenvolve pela exploração de diferentes superfícies. Nestas condições, os componentes internos, como os ligamentos do tornozelo, são fortalecidos e as relações entre esses componentes, como os movimentos articulares, são utilizadas para aumentar a eficiência motora. Efeitos similares ocorrem em relação aos sistemas sensoriais e perceptivos. (LIMA et al, 2001, p. 84)

Estendemos a aquisição perceptível e motora, seguindo esta mesma lógica, para o trabalho com o esterno na matriz indígena do boi, que mobilizou toda a região da cintura escapular, para a dinâmica das posturas, que levou a atenção para a mobilidade da coluna, para o movimento pendular do rabo, que ativou a região da bacia e da cintura abdominal e, por fim, para a matriz do infinito da cabeça.

O trabalho no campo das relações afetivas foi realizado por meio da dinâmica vaqueiro/boi. Nas manifestações populares brasileiras que possuem o boi como figura simbólica, o vaqueiro é personagem indispensável na dinâmica do festejo, podendo ser dono, pastor ou protetor. Em suma, a relação do vaqueiro com o boi envolve temas como enfrentamento, medo, controle, cumplicidade, cuidado, brincadeira, perda, fuga, doma, e ações como conduzir, guiar, controlar, laçar, segurar, brincar, montar, entre outros.

Com este universo simbólico da relação vaqueiro/boi, exploramos na prática com as crianças, duas nuances desta relação:

1. Uma criança sendo vaqueira e a outra sendo boi: o vaqueiro tinha de estar atento para cuidar do boi, guiando-o por caminhos imaginários;

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2. Uma criança sendo vaqueira e a outra sendo boi: o boi fugido tinha de ser domado pelo vaqueiro.

Este trabalho ressoou corporalmente neste grupo de crianças sob duas perspectivas. Primeiramente, retomando o dado apresentado por este grupo referente ao descuido/agressividade, esta dinâmica possibilitou que as crianças estivessem junto com o outro, corpo a corpo. Sendo um dos temas-chave o cuidado e a cumplicidade - ser vaqueiro requer ter cuidado com o outro e ser boi requer estar disposto a ser conduzido pelo outro - trabalhar a relação boi/vaqueiro auxiliou a integrar a noção de cuidado e respeito ao grupo.

Piaget (1994) diz que a partir dos 7 anos a criança dá indícios de novos sentimentos morais, como: honestidade, verdade (julgada como algo bom), mentira (julgada como algo ruim) e justiça. Estes sentimentos estão ligados à noção de mútuo- respeito e de cooperação ainda em desenvolvimento na vida afetiva da criança.

Ao final da atividade com este grupo, observamos uma melhora na forma de tocar o outro. Percebemos que a prática corporal e a integração das diversas dinâmicas em si – em seu corpo – complementaram o desenvolvimento destas crianças.

Em um segundo plano, a dinâmica proporcionou uma brincadeira: ser boi e ser vaqueiro. Viver estes corpos e suas funções ampliou os sentidos no corpo destas crianças e seu hall de movimentos ao brincarem umas com as outras. Atingimos, com esta dinâmica, aspectos do trabalho no Método BPI fundamentais para o desenvolvimento do processo, como: disponibilidade do corpo para relacionar-se, ampliação do fluxo e do dinamismo no corpo e ampliação da imaginação. “Assim como é imprescindível que o trabalho muscular seja feito diariamente, também é o da imaginação para que a pessoa possa dar início ao seu inventário no corpo” (RODRIGUES, 2003, p. 81).

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Figura 27: O boi da criança durante laboratório. Captura de Tela. Figura 26: Relação vaqueiro/boi. Captura de Tela.

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No que diz respeito aos laboratórios de dojo, as crianças foram guiadas para aflorar o desenvolvimento corporal de seus conteúdos a partir de “um lugar bom para uma festa de boi”.

A fantasia revela, com a festividade, a capacidade do homem de ir além do mundo empírico do aqui e agora. Mas a fantasia excede a festividade. Por ela, o homem não só revive e antecipa, ele refaz o passado e cria futuros totalmente novos. A fantasia é como que um húmus do qual brota a habilidade do homem de inventar e inovar. A fantasia é a fonte mais rica da criatividade humana. (COX, 1974, p. 63)

Como o trabalho com os elementos da cultura como referencial de vitalidade é próprio do Método BPI, ampliamos o uso do universo festivo do Boi para os laboratórios com o intuito de conectar as crianças com um espaço de vida. Ao valorizarmos as paisagens de vida nos laboratórios, dirigimos nosso corpo em busca dos espaços de força. Ao tratar de crianças pequenas, Winnicott (1990, p. 97) afirma que “no decorrer do tempo, enquanto a experiência de vida se torna mais rica, o mundo interno também se torna mais e mais rico em conteúdos”. Desta forma, os dojos impulsionados pelos festejos de bois tinham o intuito de despertar os espaços férteis, produtivos, brincantes e imaginários, embora outros sentidos também estivessem sendo manifestados, conforme veremos mais adiante no item Laboratórios Corporais.