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A partir de uma intensa relação com a terra, o corpo se organiza para a dança. Graziela Rodrigues (1997, p. 43)

Logo nos primeiros encontros com este grupo de crianças, constatamos que havia um incômodo com relação aos pés. Percebemos este dado a partir da atitude hostil das crianças em colocar os pés descalços no chão, nas sensações de dor e nojo ao tocar os pés e na preocupação em sujá-los. Havia uma resistência para entrar em contato com o próprio pé. Esta observação levou-nos a constatar que estávamos trabalhando com um grupo de crianças que tinha pouco ou nenhum contato direto dos pés com o chão, o que potencializou nossa condução em atividades que tinham como foco os pés. Os pés têm um lugar de destaque na Estrutura Física do Método BPI e sua relação com o solo influi na qualidade e na integração das outras partes do corpo. No Método BPI, uma das formar de trabalhar a qualidade dos esforços do pé é a partir da imagem de raízes que o conectam com o solo (FIGURA 6). Essa dinâmica é uma proposta da Técnica de Dança que caminha junto com a Técnica dos Sentidos.

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Essa figura foi apresentada às crianças a fim de clarear o entendimento dos esforços e facilitar a apreensão dos sentidos que as raízes possam surtir nos corpos delas. A condução do trabalho foi para que elas experimentassem, a partir dos pés, cada uma das raízes, percebendo as nuances provocada no restante do corpo.

As crianças envolveram-se na dinâmica do pé com raízes e, ao final deste dia de trabalho, elas espontaneamente denominaram esta aprendizagem de “pé-árvore”. Consideramos que as crianças, ao indicarem a síntese “pé-árvore” para o trabalho das raízes dos pés, demonstraram atingir o ponto principal desta dinâmica: os pés são as raízes do mastro, isto é, o enraizamento dos pés ativa o eixo do corpo pela sensação de fincar o mastro na terra.

A parte inferior do mastro liga-se à terra e a parte superior interliga-se com o céu. O corpo representa o próprio mastro festivo, em torno do qual ocorre o circuito energético (...) A coluna vertebral, que na sua parte inferior firmou o mastro na terra, na parte superior galga os céus impulsionando-se para o cume do mastro. (RODRIGUES, 1997, p.44)

Desta forma, a estratégia de levar a figura como referência para o corpo proporcionou às crianças uma impressão perceptiva no corpo, por meio da imagem apreendida visualmente e da vivência corporal.

Imagens são construções baseadas nas informações obtidas pelas experiências anteriores. Nós produzimos imagens porque as informações envolvidas em nosso pensamento são sempre de natureza perceptiva. (...) Não concebemos as imagens como passivas, pois de qualquer maneira constituem-se a forma como, em momentos diversos, percebemos a vida social, a natureza e as pessoas que nos circundam: construídas no universo mental, superpõem-se, alteram-se, transformam-se. (LAPLANTINE e TRINDADE, 1997, s/p)

A percepção da postura e do movimento do corpo é registrada na plasticidade condizente à imagem corporal, ponto facilitador do seu desenvolvimento. A dinâmica do pé com raízes, realizada com as crianças, gerou uma síntese corporal para este grupo que toca os pontos do desenvolvimento da imagem corporal pela percepção do movimento e da postura vertical do corpo.

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Outra dinâmica dos pés na técnica do Método BPI é caracterizada por uma troca energética com o solo, por meio da imagem de uma ventosa no metatarso que realiza uma sucção dessa energia (RODRIGUES, 1997, p. 49). Esse movimento provoca uma conexão cruzada no corpo todo, isto é, ocorre uma ativação do centro do corpo ao conectar o pé com a mão oposta a ele. Este movimento é observado nos corpos dançantes das manifestações brasileiras e nos trabalhos ligados a terra, que realizam uma constante troca de energia do corpo com o solo. O corpo se fortalece, ganha qualidade de movimento e de sentidos neste contato.

Destacamos na organização dos dados, o trabalho realizado com as crianças desta qualidade de movimento, destrinchado da seguinte forma:

1. Percepção do trabalho de sucção (ventosa) a partir da boca;

2. Brincamos de “faz de conta”: a existência de uma boca no meio das mãos que suga igual boca;

3. Brincamos de “faz de conta”: transferindo a boca para o meio da região do metatarso do pé.

Neste trabalho, observamos que a proposta lúdica de “brincar de faz de conta” facilitou o envolvimento das crianças com o conteúdo. Um dos relatos da estagiária que conduziu junto comigo a atividade deste dia apresenta, claramente, uma mudança corporal deste grupo durante esta proposta do “brincar de faz de conta”.

Em observações gerais, pude perceber que, neste momento do sugar, o enraizamento dos pés melhorou muito. Elas compreenderam melhor o contato com o chão e, durante o exercício, estavam bem conectadas com o solo. No geral, conseguiram compreender muito bem a ação de sugar, desde o primeiro passo com a boca, passando pelas mãos e pelo corpo até a ventosa com os pés. Foi notável a conscientização corporal que esta atividade proporcionou a elas, pois conseguiram, além de realizar o movimento, perceber e relatar o que estava acontecendo com o próprio corpo naquele momento. (...) Durante todo o período, elas conseguiram respeitar o momento de fala uma da outra, ouvir e complementar o que eu estava falando, além de respeitar o espaço físico entre elas com paciência e, principalmente, cuidado no toque corporal uma com a outra. (Relato da Estagiária)

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Nos exercícios propostos após este trabalho da ventosa do pé, observamos que mesmo as crianças que apresentaram ter pouco contato dos pés com o chão, conseguiram atingir um movimento com qualidade e com potência. Essa “potencialização” do corpo ficou perceptível numa conversa com o grupo.

Pesquisadora: Eu queria que vocês me explicassem: o que vocês aprenderam hoje?

FE: A fazer com o pé assim (mostrando) como se fosse uma sanguessuga sugando seu sangue. Pesquisadora: E quem vai me mostrar?

(Todas levantam a mão. G se levanta.)

G: Ó! (sugando com o pé e ao mesmo tempo com a boca).

Pesquisadora: Muito bem! Quem mais quer mostrar? Podem ir levantando e mostrando. (A e FL se levantam e depois FE e K.)

Pesquisadora: E o que vocês aprenderam, além disso? A: A mãozinha.

Pesquisadora: A mão! Vocês aprenderam a sugar com o corpo todo? FE: Com a mão, com o joelho e com o pé.

FE: O joelho usa uma força. K: É uma força que sobe.

Pesquisadora: Vamos dar um nome pra esse sugar do pé?

Respostas em geral: ‘Sugui’-corpo. Sangue-corpo. Sangue-corpos. Sangue-músculos. Chupa-sangue. Pesquisadora: Tem que ser de sugar, ventosa? Quem sabe o que é uma ventosa?

FE: Sei lá.

Pesquisadora: Alguém já viu aqueles bichinhos de pelúcia que ficam presos nos vidros dos carros? Sabem aquela borrachinha que fica nas patinhas dos bichinhos que grudam no carro?

Todas: Sim.

Pesquisadora: Aquilo é uma ventosa. A: Sangue-ventosa.

Pesquisadora: Sangue? Mas não tem nada a ver com sangue? A: Ventosa-corpo. Pesquisadora: Ventosa? A: Corpo-ventosa. G: Ventosa-chupadora. Pesquisadora: Ventosa-pé. FE: Ventosa-pele.

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G: Ventosa-corpo.

Pesquisadora: Ventosa-corpo? Então, fica ventosa-corpo.

As falas revelam as sensações (sugar o sangue, força que sobe no corpo) e as partes do corpo (pé, joelho, mão, boca, musculatura, pele) que foram despertadas no corpo das crianças. No fim da atividade, sintetizamos e nomeamos, junto às crianças, esta qualidade de movimento interno de “ventosa-corpo”. Esta síntese alcançada pelas crianças revela a compreensão que este grupo teve, via corpo, da atuação do circuito interno deste movimento e da unidade corporal.

O cruzamento de energia – relação do lado direito superior com o lado esquerdo inferior e vice-versa – fortalece o centro do corpo, promovendo um alto grau de equilíbrio e um sentido de unidade (participação global do corpo no movimento). (RODRIGUES, 1997, p. 44)

A realização de uma prática que permeia a aquisição da noção de centro do corpo, das articulações do pé e de eixo corporal na criança reflete na qualidade do desenvolvimento infantil e de sua imagem corporal. Estudiosos sobre o tema afirmam que “na evolução psicomotora é necessário que a criança tome consciência do contato com o solo e com a mobilidade da articulação do tornozelo para uma boa progressão do equilíbrio” (LIMA et al, 2001, p. 84). O conhecimento das partes do corpo, das articulações e o fortalecimento do tônus envolvidos na postura vertical relacionam-se ao desenvolvimento do esquema do corpo e do modelo postural, aspectos incorporados no conceito de imagem corporal.

No que concerne à prática do Método BPI, a organização corporal ocorre por meio da conexão dos pés com o solo que integram o movimento de todo o corpo. É importante que este contato seja propiciado pelo toque da sola do pé, no que diz respeito à pele, para que assim, o trabalho com os pés possa atingir camadas mais profundas de sensibilidade, alongamento e sustentação. A soltura das articulações propicia dinamismo da ação e dos sentidos do corpo. Os pés libertos de amarras reverberam no corpo e aguçam a aparição das imagens. Os pés, além de integrarem o corpo-mastro na sua relação com o solo, têm como objetivo principal para a Técnica de

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Dança e dos Sentidos o reconhecimento do solo em que se pisa no ato de dançar. Esta proposta alavanca o fluxo dos sentidos no corpo, no qual, ao se vivenciar a imagem de um solo rico em fluxo de vida, o pé integra-se ao corpo em sensações, lembranças e movimentos, descrevendo uma narrativa do corpo por uma paisagem.

Trabalhar o enraizamento dos pés, seus micro e macro apoios e o movimento articulado com as crianças foi uma tarefa gradativa e persistente. As duas sínteses “pé- árvore” e “ventosa-corpo” sinalizam uma resultante positiva no desenvolvimento destas crianças a partir deste trabalho. Constatamos que estas crianças alcançaram: 1) A noção de eixo corporal; 2) A noção de unidade corporal; 3) O despertar dos sentidos no corpo.