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“Todo indivíduo é acompanhado por uma sombra, e quanto menos ela estiver incorporada à sua vida consciente, tanto mais escura e espessa ela se tornará”.

Carl G. Jung

Após a escrita dos relatos, das observações sobre o meu comportamento perante as crianças e dos laboratórios realizados nesta mesma época, a Prof.ª Graziela sempre me questionava o que eu faria daqui para frente com estas observações, pois perceber uma conduta que você não tem orgulho de exibir não é o suficiente para modificar o seu comportamento. É necessário a elaboração e o reconhecimento de nossas limitações como parte do processo de transformação.

A transformação está ligada ao movimento, às mudanças, ao novo, ao desapego e ao futuro. (...) Significa a mulher se reconectar com as forças transformadoras do feminino e utilizá-las no seu processo de reeducação, transformando suas rotinas, suas montagens, seus padrões de comportamento: a acomodação, a dependência e a dominação, a sua forma de pensar que está muito vinculada a processos emocionais, às suas relações e aos papeis que acostumou representar. (RODRIGUES e outros, 2002, p. 16)

É preciso ir além da observação. Um ato de coragem para seguir em frente e localizar a raiz das condutas. Devido a isto, recorro a uma observação da observação, a fim de localizar as condutas de fundo dos relatos. Assim, no primeiro relato observo que há possessividade e controle. O segundo relato traz, em alguns momentos, insensibilidade com as crianças. Além disso, este dia é marcado por uma forte intolerância à frustração, ao não conseguir dar prosseguimento ao planejamento. No terceiro relato observo os conteúdos de posse e raiva através da personagem. O quarto relato traz uma passagem marcada pela ansiedade.

Em diálogo com a Prof.ª Graziela, observamos que o meu comportamento controlador e possessivo, carregado de ansiedade faz parte da minha história de vida, ao relacionarmos que o contato com as crianças despertou em mim os padrões de comportamentos dos adultos que conviveram comigo. Na verdade, o contato com as

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crianças trouxe à tona estes padrões, uma vez que localizo a repetição não-intencional destes comportamentos em distintos momentos da minha vida.

Pavlov59 aborda, no século XIX, o conceito de reflexo condicionado. Considerando reflexo como uma “conexão constante efetuada pelo sistema nervoso entre certos fenômenos do mundo exterior e reações correspondentes bem definidas do organismo” (VEZZÁ, 2008, p. 5), nas suas pesquisas com animais, Pavlov percebeu que os reflexos são de duas naturezas: incondicionados e condicionados. A primeira corresponde a respostas inatas do organismo, enquanto que a outra é aprendida, podendo ficar registrada como respostas agradáveis ou aversivas. O reflexo condicionado ocorre por meio da repetição consistente dos estímulos externos, sendo possível criar (ensinar) ou remover as respostas fisiológicas e psicológicas do organismo em questão.

A partir dos acontecimentos, podemos afirmar que, ao longo da nossa infância, vamos aprendendo padrões de comportamento e respostas corporais a partir dos estímulos físicos e/ou psíquicos gerados pelos adultos que nos cercavam. Tais estímulos se tornaram inconscientes no percurso de nosso desenvolvimento. Ao vivenciar o meu processo no Método BPI, estes conteúdos emergiram com a modelagem do Urubu, caracterizando a entrada no eixo Inventário no Corpo. Mas ao iniciar esta pesquisa, nem eu nem a Prof.ª Graziela, contávamos com a atuação destes conteúdos durante a atividade. As condutas indesejadas foram despertadas no contato com as crianças e fez com que a modelagem Urubu pairasse sobre os espaços da personagem Menina durante a atividade.

Fazendo referência à Jung60, constatamos a existência da simbologia da Sombra e da Heroína, sendo que consideramos Sombra como a modelagem Urubu e como

59 Ivan Petrovich Pavlov, fisiologista russo (1849-1936).

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Heroína a personagem Menina. De acordo com a psicanálise junguiana, a imagem do Herói (no nosso caso heroína) reflete o meio simbólico pelo qual o ego se separa da imagem dos pais construída na primeira infância. A atribuição essencial do mito heroico é “desenvolver no indivíduo a consciência do ego – o conhecimento de suas forças e fraquezas – de maneira a deixá-lo preparado para as difíceis tarefas que a vida lhe há de impor” (HENDERSON, 2008, p. 112). O mito do Herói corresponde a uma busca pela sua individualidade ao romper com os símbolos da mãe e do pai, renascendo numa nova vida. É um arquétipo de iniciação, um rito de passagem da tenra infância para a meninice.

A Sombra é considerada o “lado negativo da personalidade, a soma de todas as qualidades desagradáveis que o indivíduo quer esconder, o lado inferior, sem valor e primitivo da natureza do homem, a outra pessoa em um indivíduo, seu próprio lado obscuro” (SAMUELS, 2003, online). A Sombra é a máscara oculta da persona.

O conceito de sombra em Jung é incompreensível sem entender o seu conceito de persona ou ego ideal. A origem do conceito jungiano de persona é a noção de prosopon, com a qual se designa no teatro grego a máscara que os atores usavam para encarnar uma personagem. A partir de Jung, o conceito de persona significa mais precisamente o eu social resultante dos esforços de adaptação realizados para observar as normas sociais, morais e educacionais do seu meio. A persona lança fora do seu campo de consciência todos os elementos – emoções, traços de caráter, talentos, atitudes – julgados inaceitáveis para as pessoas significativas do seu meio. Esse mecanismo produz no inconsciente uma contrapartida de si mesmo que Jung chamou de sombra. (OCANÂ, 2008, p. 4 e 5)

Na comunicação A Polpa da Fruta (FLORIANO; RODRIGUES, 2010) já considerávamos a personagem Menina como representante do arquétipo do Herói, devido à sua trajetória de busca e superação ao fugir de casa, isto é, o rompimento com o símbolo maternal (casa/quintal), o desbravamento no mundo exterior (caminhos, floresta, morro e rio) e a integração psíquica (a união dos objetos Boi e Boneca no seu corpo). Entretanto, o Urubu sempre ocupou, para mim, outro lugar; indefinido, oculto, mascarado.

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O contato com as crianças colocou em destaque no meu percurso laboratorial a figura do Urubu. Turtelli (2009, p. 79) enfatiza que “todo o processo instaurado pelo BPI permite que se chegue aos conteúdos sensíveis que estão mais próximos do eixo do intérprete naquela etapa de sua vida”. Era o momento propício para desvelar o significado da figura do Urubu, travar a batalha pelo desenvolvimento.

Para a maioria das pessoas o lado escuro ou negativo de sua personalidade permanece inconsciente. O herói, ao contrário, precisa convencer-se de que a sombra existe e que dela pode retirar sua força. Deve entrar em acordo com o seu poder destrutivo se quiser estar suficientemente preparado para vencer o dragão — isto é, para que o ego triunfe precisa antes subjugar e assimilar a sombra. (HENDERSON, 2008, p. 120)

A integração dos conteúdos laboratoriais com os registros emocionais clareou a figura do Urubu na minha história corporal e, finalmente, conseguimos identificar a simbologia desta modelagem como Sombra.

É importante destacar que os estudos sobre a Sombra apontam que ela não pode ser vista somente como um mártir em nossas vidas. A Sombra só é hostil quando ignorada ou incompreendida. Precisamos reconhecê-la, reconciliar-nos com ela e reintegrá-la, unificando o eu consciente (OCANÃ, 2008).

A triste verdade é que a vida do homem consiste de um complexo de fatores antagônicos inexoráveis: o dia e a noite, o nascimento e a morte, a felicidade e o sofrimento, o bem e o mal. Não nos resta nem a certeza de que um dia um destes fatores vai prevalecer sobre o outro, que o bem vai se transformar em mal, ou que a alegria há de derrotar a dor. A vida é uma batalha. Sempre foi e sempre será. E se tal não acontecesse ela chegaria ao fim. (JUNG, 2008, p. 85)

A trajetória percorrida ao exercitar o papel de diretora nos faz refletir sobre a importância, já reforçada pela Prof.ª Graziela, de que o diretor neste método precisa ter inventariado sua história. Nessa pesquisa, vemos a importância desse preparo do diretor. Em outras palavras, ponderamos que, para conduzir um trabalho com crianças, o diretor precisa desvelar sua Sombra e entrar em contato com sua criança esquecida.

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Winnicott (1990, p. 28) confirma: “(...) na psicologia infantil temos de nos defrontar com a batalha em que nós próprios estivemos uma vez, ainda que em geral a tenhamos esquecido, ou da qual jamais estivemos conscientes”.

O diretor no Método BPI precisa ter conhecimento do seu eixo, de sua identidade corporal, de sua história; conhecer os limites do que é seu e do que é do outro, reconhecer suas fronteiras corporais. A Prof.ª Graziela (RODRIGUES, 2003, p. 83) pontua que, para se dirigir um trabalho no Método BPI, “é indispensável que a pessoa tenha feito seu próprio inventário e encontre-se num momento de abertura para perceber o outro”.