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A partir do meu interesse em pesquisar o Método BPI, em 2008, passei a integrar o Grupo de Pesquisa Bailarino-Pesquisador-Intérprete (BPI) e Dança do Brasil - Diretório de Grupos do CNPq. O projeto de Iniciação Científica foi aprovado em 2009 – bolsa FAPESP – com o título “A questão do afeto no Método BPI a partir de pesquisa de campo no Vale do Jequitinhonha” com orientação da Prof.ª Dr.ª Graziela Rodrigues. O objetivo do projeto era abrir meu corpo para a percepção dos sentimentos despertados nele durante a pesquisa de campo. As percepções corporais são bastante trabalhadas pelo Método BPI e, na pesquisa de campo, ganham destaque.

O Vale do Jequitinhonha já havia despertado meu interesse como fonte rica para pesquisa, primeiramente, por meio de materiais audiovisuais de pesquisas realizadas em 19876 pela Prof.ª Graziela Rodrigues e, depois, pela pesquisa de campo realizada na disciplina “Dança do Brasil IV”. Para manter minhas motivações corporais e minha afinidade com o Vale do Jequitinhonha, decidi pesquisar a manifestação “Boi de Janeiro” na cidade de Pedra Azul (região norte do vale).

6 Material audiovisual do Projeto “Trilhas e Veredas da Dança Brasileira” de Graziela Rodrigues (1987).

Tive contato com este material durante monitoria realizada na disciplina “Dança do Brasil IV” pelo PAD (Programa de Apoio Didático da UNICAMP).

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O “Boi de Janeiro” de Pedra Azul é uma folia ligada às festas de Reis, fazendo parte dos Reisados, comuns também em outras partes do país. Mantém-se pela força da tradição oral e por isso não é uma manifestação cristalizada, variando em cada cidade que se faz presente7. Acontece do 1º ao 6º dia de Janeiro em homenagem aos Santos Reis. A manifestação envolve música, brincadeira, dança e um longo cortejo pela cidade. Seus personagens são um Boi, maior do que um homem, e uma Boneca Maria Tereza8, de quase três metros.

No fim da tarde cada grupo sai de suas casas, localizadas na periferia da cidade, num cortejo que passa pelo centro e por bairros distintos dos seus, retornando no fim da madrugada. Neste cortejo, devotos abrem suas portas para que o grupo cante em homenagem aos Santos Reis; desta forma os foliões também são caracterizados como “reiseiros”, cantadores de reis. A musicalidade é gerada pelas gaitas (flautas), triângulo, caixa, reco-reco e bumbo. Além dos cantadores de reis, o cortejo contém um vaqueiro que conduz a travessia do Boi e da Boneca pela cidade.

Esta travessia é cercada por paisagens de morros de pedra, casas de pau-a- pique, centro da cidade, e o Boi e a Boneca transitam por ladeiras de terra, ladeiras de pedra, ruas de asfalto e barrocas (fendas/buracos na ladeira de terra). A folia é sempre acompanhada pelas crianças que trazem fluxo para a dinâmica da festa, momento em que os bois saem correndo atrás delas. Desta forma, as crianças são um gerador de fluxo e dinamismo. A festa termina no 6° dia com um grande encontro dos Bois.

7 José Luiz dos Santos (1994, p. 26), considera que as “culturas humanas são dinâmicas”, passíveis de

transformação de acordo com a sociedade que a produz e seu contexto histórico.

8 Em entrevista com Heitor de Pedra Azul, compositor e musicista natural da cidade de Pedra Azul, ele

explica que “a Boneca que vem junto é, na verdade, a Mulher do Aragão, numa alusão à Catarina de Aragão da Espanha, no quarto do qual Gil Vicente encenou o Auto do Vaqueiro. Maria Tereza é simplesmente uma apelação popular. Um dia alguém falou: lá vem o Boi e a Maria Teresa! E aí ficou”. Entrevista concedida online em Março de 2014.

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Figura 1: Boi Satan. Boi de Janeiro, Pedra Azul (MG). Janeiro de 2009. Arquivo Pessoal.

Figura 2: Boi Satan, Boneca Patativa e Foliões. Boi de Janeiro, Pedra Azul (MG). Janeiro de 2009. Arquivo Pessoal.

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Figura 3: Boneca Patativa. Boi de Janeiro, Pedra Azul (MG). Janeiro de 2009. Arquivo Pessoal

Figura 4: Boi Satan, Boneca Patativa e as

crianças. Boi de Janeiro, Pedra Azul (MG).

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A primeira ida a campo durou oito dias – 31 de Dezembro de 2008 a 7 de Janeiro de 2009. Neste período, acompanhei os preparativos para a festa: a arrumação dos enfeites do Boi e da Boneca e o aquecimento das gaitas e das caixas, assim como o cortejo noturno da folia, com suas músicas e dinâmicas. A segunda ida a campo ocorreu de 20 a 23 de Março de 2009 e, neste momento, pude vivenciar o cotidiano fora da época de festa do vaqueiro (líder) do grupo que acompanhei em Janeiro. Neste encontro singular, entrei em contato com a família do vaqueiro, vivenciei, junto a ele, os momentos de recordações da festa, o ócio do desemprego, a falta de comida, o desejo de sua filha por um bombom de chocolate, o silêncio das tardes sem companhia, a doença e quase morte de um folião. Estive cara a cara com uma vida marcada pela miséria. Após a pesquisa de campo, entrei na fase laboratorial do eixo Co-habitar com a Fonte, dirigidos pela Prof.ª Graziela.

Rodrigues e Tavares (2006, p. 124) afirmam que “os laboratórios corporais desenvolvidos neste eixo encontram-se no trânsito entre as pesquisas de campo e os espaços de reflexão e atuação”. Iniciou-se uma coleta de dados proveniente do contato do meu corpo com o campo. Essa coleta de dados no Método BPI consiste em retirar do corpo as emoções mais profundas e, de certa forma, possíveis de serem acessadas naquele momento; emoções que realçam e revelam os dados que se tornam conscientes, permeando a relação do bailarino-pesquisador-intérprete com sua própria história e com a pesquisa de campo. Por meio da ação dos movimentos conscientes, clareamos os conteúdos internos.

A profundidade destes laboratórios e o trabalho de direção da Prof.ª Graziela possibilitaram a minha entrada no eixo Estruturação da Personagem. Neste eixo, tem- se a integração das emoções, das sensações e das imagens que emergem do Co- habitar com a fonte, unido ao Inventário no Corpo, nucleando uma “personagem”.

A personagem no Método BPI é a resultante de um processo corporal, em que as emoções, os movimentos, as sensações e as imagens apresentam-se com mais

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clareza. Não deve ser considerada o fim, nem o meio do processo no Método BPI, pois, como Rodrigues (2003, pag. 127) afirma, “a personagem não cristaliza no corpo”; a personagem sintetiza uma experiência corporal do bailarino-pesquisador-intérprete e, se levarmos em conta que as experiências emocionais nunca cessam, a personagem absorve esse dinamismo e plasticidade, num processo de retroalimentação das paisagens e dos corpos atribuídos a ela.