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Um aspecto importante desta pesquisa foi a atuação da personagem Menina junto às crianças. Esta proposta foi um dos pontos principais focalizados na elaboração do projeto desta pesquisa, pois tínhamos como hipótese que diversos aspectos da prática corporal seriam facilitados por meio do contato e da identificação das crianças com a personagem. No Vocabulário de Psicanálise (LAPLANCHE, 2001, p. 227), encontramos que “a identificação – no sentido de identificar-se – abrange na linguagem corrente toda uma série de conceitos psicológicos, tais como imitação, Einfühlung (empatia), simpatia, contágio mental, projeção, etc”.

As nove apresentações da personagem realizadas são frutos do meu desenvolvimento pessoal e artístico no Método BPI e todas elas foram trabalhadas com a Prof.ª Graziela antes e durante a atividade com as crianças.

O contato inicial da personagem com as crianças aconteceu no primeiro dia da atividade. As crianças estavam realizando a passagem pelas bacias de pedras e foi solicitado a elas que, ao saírem das bacias, “contassem uma história com os pés”. Como descrito no item anterior, as crianças questionaram essa proposta e, neste momento, identifiquei uma abertura para mostrar a atuação da personagem nos espaços e nos caminhos de pedras.

Nesta apresentação, a personagem percorreu pelos caminhos cenográficos, evidenciando os movimentos dos pés em cada paisagem. Simultaneamente ao movimento, ocorria a descrição verbal dos lugares, das sensações e das ações. A comunicação verbal, neste caso, foi de fundamental importância para que as crianças conseguissem percorrer o fluxo dos sentidos junto à personagem, uma vez que era o primeiro contato entre elas.

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Durante a apresentação, as crianças reagiram aos acontecimentos: algumas riram, outras olharam assustadas, outras esboçaram um riso no canto da boca e algumas desviaram o olhar com uma expressão clara de sentir “vergonha alheia”, isto é, a sensação de desconforto por ver algo que, à primeira vista, parecia ridículo para seus padrões. Neste caso, rir do que é diferente evidencia que as crianças deste grupo não tiveram contato com apresentações cênicas do nível que o Método BPI propõe até aquele momento. Porém, no final desta primeira apresentação, ao perguntar o que elas tinham entendido, em meio às risadas e às falas considerando a minha atuação como uma “loucura”, as crianças reproduziram os meus movimentos. Schilder (1999, p. 270) aborda o assunto:

Existem ações imitativas reais, devidas ao fato de a apresentação visual do movimento de outra pessoa ser capaz de evocar a representação de um movimento similar em nosso corpo que, como toda representação motora, tende a se expressar imediatamente em movimento. (...) Quando alguém atrai a atenção de uma criança, esta fica absorvida em observar e logo imita os movimentos.

Surge, neste momento, a primeira “quebra” do estranhamento das crianças em relação à personagem Menina, pois, ao imitar os meus movimentos, as crianças colocaram seus corpos em movimentos e situações desconhecidos para elas e, sem querer, o corpo delas vivenciou um momento de experimentação. Quando a criança imita, ela tem uma experiência perceptiva no corpo. A imitação gerou movimento no corpo destas crianças e, como Schilder (1999, p. 274) descreve, “os movimentos estão sempre conectados com a imagem corporal”. Desta forma, “as ações de outras pessoas também têm relação com as minhas próprias ações” (SCHILDER, 1999, p. 273). O que eu observo no corpo do outro tem a ver com partes do meu próprio corpo. Schilder (1999, p. 249) também pontua que “as crianças descobrem seus corpos através das palavras e das observações dos outros”.

Desta forma, podemos considerar que o contato da personagem Menina com as crianças proporcionou a este grupo uma proximidade com seus corpos e com suas

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imagens corporais. A observação e a imitação dos movimentos retornam para as crianças como uma forma de elas conectarem-se com suas próprias percepções corporais. As apresentações seguintes foram estruturadas de acordo com os conteúdos que viríamos a trabalhar na prática corporal. Cada objeto, elemento ou figura (no caso, o Boi) era apresentado primeiramente com a atuação da personagem, que desembocava em um convite para a participação das crianças em dinâmicas que valorizavam a liberação da brincadeira, da imaginação, dos sentidos e, consequentemente, do corpo.

O espetáculo gera um espaço afetivo, através da projeção dos sentidos da personagem. Esse espaço estende-se até as pessoas do público, fazendo que o público seja incluído nas paisagens imaginárias construídas. (...) O espectador é envolvido na ação, as emoções se propagam, ele é convidado a sentir. (TURTELLI, 2009, p. 265)

Com o avançar da atividade com as crianças, o estranhamento do “jeito louco de dançar” - assim descrito por elas - não era mais visível. Ele foi dissolvendo-se ao longo dos encontros conforme as crianças avançavam na liberação dos seus corpos. Assim, podemos perceber que o contato da personagem com as crianças rompeu padrões e fez com que elas tratassem, de forma receptiva, a liberação das imagens, sensações, emoções e movimentos do meu corpo. Este ponto refletiu diretamente no trato das crianças com seus próprios corpos, pois, ao romperem com os padrões e os modelos das danças formais43, as crianças deixaram seus corpos disponíveis para uma dança mais sensível e mais conectada com suas imagens corporais, o que proporcionou um contato singular com seus movimentos e suas emoções. Desta forma, conferimos que estabelecer o contato das crianças com a personagem proporcionou a ampliação do referencial de dança desse grupo, um contato com seus próprios corpos e movimentos, e introduziu elementos da Técnica de Dança e da Técnica dos Sentidos do Método BPI na atividade desenvolvida.

43 Sobre as particularidades do espetáculo no Método BPI, Turtelli (2009, p. 269) diz: “consideramos o

não enquadramento aos padrões sociais estabelecidos, como característica do espetáculo no Método BPI, pois, além do método em si não se enquadrar, via de regra os espetáculos neste método estabelecem relações críticas a respeito dos padrões sociais, procurando rever essas relações”.

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Figura 9:

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