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Nos primeiros laboratórios, as crianças tinham dificuldade para delimitarem seus espaços. Elas não conseguiam demarcar o espaço ao redor do corpo e nem fazer um espaço com tamanho suficiente para permitir a mobilidade dentro dele. Isso é compreensível ao levarmos em conta a faixa etária deste grupo, pois aos 7 anos as noções espacial e de volume ainda estão em processo de maturação (PIAGET, 1997). Uma forma de conduzir a construção do espaço foi pedir que as crianças deitassem no chão com os braços e pernas abertas e que rodeassem o corpo com os cascalhos.

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Ao delimitarem os espaços, as crianças projetaram seu corpo no espaço. O BPI refere-se a Schilder (1999) ao considerar que o espaço entorno do corpo é uma extensão animada e sensível da pessoa. Fisher trata das fronteiras corporais, considerando-as como a delimitação corporal segura entre o que é externo e o que é interno. É pelas fronteiras corporais que o individuo baliza suas fantasias49, seus desejos, seus impulsos e suas emoções não aceitos. O cruzamento desses dois referenciais remete-nos a uma ampliação do espaço interior da pessoa, no qual ela é capaz de projetar seus conflitos internos com segurança. Desta forma, a proposta amplia-se para a delimitação de um espaço protegido para a comunhão da história corporal da criança com a festividade e os objetos trabalhados na prática, a fim de ecoar uma “história que o corpo naquele dado momento se dispõe a contar” (RODRIGUES, 2003, p. 85).

Foi interessante notar que nos encontros seguintes, cada vez que delimitávamos o dojo, as crianças gradativamente ampliavam sua delimitação individual. Ficou perceptível um maior interesse deste grupo na feitura do espaço, além de um crescimento na dimensão e na alteração de sua forma. Presenciamos dojos ovais ou mais largos de um lado do que de outro, com desenhos e cantos. Isto sugere que as fronteiras do corpo expandiram-se igualmente de tamanho e forma para abarcar os conteúdos advindos de cada criança. Este aspecto transformador dos espaços é muito bem-vindo no Processo BPI, pois condiz com a validação da individualidade e da originalidade de cada corpo inserido no trabalho.

O BPI inova por legitimar o corpo do bailarino como o eixo do processo criativo. A comunicação de aspectos simbólicos ocorre no contexto do ritmo, das cores, das formas, dos tamanhos, enfim, da criação artística integrada no corpo do bailarino. A criação está na originalidade de cada corpo. (RODRIGUES, 2003, p.160)

49 Neste caso, a referência de fantasia é a conceituada pela psicanálise: “conjunto de ideias ou imagens

mentais que procuram resolver os conflitos intrapsíquicos, através da satisfação imaginária dos impulsos” (D’ANDREA, 2012, p. 22).

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Momento da dança-livre

Percebemos que as crianças chegavam extremamente agitadas para a atividade e, que durante os laboratórios, apresentavam grande liberação de movimentos ligados ao cotidiano delas, como atividades de lazer, além de sonhos e expectativas que elas gostariam de vivenciar. Alguns destes conteúdos foram:

 Desfilar numa passarela;

 Andar no shopping;

 Estar no computador;

 Festa de quinze anos;

Baile funk;

 Movimentos de tocar guitarra;

 Coreografia da festa junina da escola.

Aqui percebemos um retorno dos pontos levantados sobre a contemporaneidade e sua inscrição no corpo da criança. Estes conteúdos apresentados são “sintomas” de uma era. Para se chegar a camadas mais profundas no trabalho com as emoções no Método BPI é necessário um preparo corporal que possibilite desobstruir os canais sensíveis do corpo, tirando a camada superficial da agitação e as ansiedades dos acontecimentos cotidianos.

Desta forma, o momento da Dança-livre, que inicialmente era um espaço-tempo para o grupo dançar o que quisesse e como quisesse, foi aos poucos tomando uma importante função: preparar o corpo para o trabalho. Os momentos da Dança-livre passaram a ser pontuais; no início da atividade ou anterior ao laboratório. Junto ao momento da Dança-livre utilizamos exercícios que tinham como caráter um grande gasto energético, como correr, pular, agachar. Assim, as crianças que vinham de um período de “confinamento” na sala de aula, sentadas em suas carteiras, poderiam

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extravasar-se corporalmente. Ressaltamos que o espaço que propúnhamos construir nos encontros com as crianças não era o do extravasamento, mas, sim, o de um trabalho profundo com as emoções/sensações/imagens/memórias/movimentos e com as percepções corporais. Entretanto, é importante atentar para como estão (e estiveram) as crianças no momento em que elas chegam ao local da atividade, reconhecendo as necessidades emergenciais para que o trabalho sensível adquira fluidez.

Os laboratórios conduzidos em grupo

Nos laboratórios, a condução do trabalho era coletiva e a mesma para todas as crianças. Inicialmente, a condução era realizada somente no início da prática laboratorial, isto é, era dado um tipo de ação, como brincar com a boneca e, a partir daí, observamos a resposta das crianças no restante do tempo. Percebemos que este tipo de condução não funcionou, pois as crianças não davam continuidade ao trabalho. Elas paravam o movimento e mantinham uma expressão de não saber o que fazer.

Com isto, iniciamos a condução de um roteiro expandido que ocupava todo o tempo do laboratório. O roteiro de condução visava contemplar aspectos trabalhados nos encontros, abrangendo conteúdos de festividade, tais como: “um lugar bom para brincar”, “um lugar bom para dançar com a boneca”, “um lugar bom para acontecer uma festa de boi”, entre outros. Estes roteiros não limitavam a ação das crianças; na verdade eram um guia, um referencial para desbravar as suas paisagens. O “lugar bom” refere-se a espaços protegidos e seguros para que as crianças se sentissem acolhidas com os conteúdos emanados de seus corpos.

Com frequência atribui-se a esses espaços uma referência como sendo, por exemplo, um quintal, um terreiro, um altar ou um espaço de dançar mágico que traz aquele momento de reencontros com os sentidos da Dança antes perdida na memória corporal. Com uma dessas referências, dependendo do grupo, cada pessoa cria o seu próprio espaço. Esses espaços ao serem trabalhados adquirem um sentido de aconchego e proteção, pois são preparados para receberem a memória que emerge do corpo. (RODRIGUES, 2003, p. 85)

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O primeiro aspecto observado sobre os laboratórios em grupo é referente ao formato do roteiro. A mudança para um formato expandido manteve as crianças numa trajetória de liberação do fluxo de movimentos, imagens e sensações. Esta trajetória, proposta pelo roteiro, direcionou o trabalho corporal das crianças para uma busca por conteúdos de vida, festividade e fantasia. As crianças respondiam corporalmente ao roteiro do início até o fim da condução.

O segundo aspecto remete-nos a um conteúdo já abordado nesta discussão: no início da atividade era constante as crianças invadirem os espaços umas das outras. Além da invasão física, verificamos uma conversa paralela durante os laboratórios, o que também pode ser considerada um tipo de invasão do espaço laboratorial. A criança que invade o espaço laboratorial do outro penetra pelas suas fronteiras corporais, interferindo no processo de sentir-se seguro. Fischer (RIBEIRO, 2009) sugere que crianças (e adultos) que possuem fronteiras corporais pouco delimitadas podem sofrer ansiedade quando sentem seu local interno ameaçado.

O espaço laboratorial do Método BPI não é o local para se provocar a ansiedade como tal e, desta forma, as atitudes invasivas necessitavam de um respaldo para não se repetirem. Recorremos, ao longo da atividade, a conduções de dinâmicas que visavam avanços no trato com o corpo do outro (como descrito anteriormente). É importante ressaltar que o processo no Método BPI é integrativo, isto é, os dados corporais são apontados em seus diversos aspectos de trabalho e, da mesma forma, o trabalho de um aspecto interfere em outro. Por meio do uso da Técnica de Dança e da Técnica dos Sentidos, destacando a dinâmica de relação com a boneca e com o vaqueiro/boi, as crianças tiveram contato com noções de respeito e cuidado, adquirindo uma nova postura em relação ao corpo do outro, e isso refletiu diretamente nos espaços laboratoriais. Foi através das ferramentas do Método BPI e da sua dinâmica integrativa que conduzimos práticas que resultaram em avanços no desenvolvimento deste grupo.

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Os laboratórios dirigidos individuais

Nos dois últimos encontros da coleta de dados foi trabalhada a ferramenta Laboratórios Dirigidos. A proposta era que cada criança tivesse atenção individualizada e uma condução a partir da sua resposta corporal ao trabalho. Os laboratórios eram dirigidos respeitando o processo corporal de cada criança. A seguir descrevo uma síntese de três laboratórios que ocorreram no 26º encontro:

Criança N

Aproximei-me de N. Ele estava com uma bola de futebol na mão. Pedi que deixasse a bola num canto do seu espaço. Pedi para ele caminhar pelo espaço e para ir me contando como era seu lugar. Ele perguntou se poderia ser correndo e eu disse que sim. No primeiro impulso de corrida, ele caiu no chão, levando as mãos no pé. Aproximei-me dele e perguntei o que tinha acontecido. Ele disse que tinha se machucado, me mostrou seu pé, dizendo que doía muito e perguntou se podia ir beber água. Levantou-se e saiu andando normalmente pela sala. Retornou e ficou sentando dentro do seu espaço, encostado na parede. Mudou as pedras de lugar. Retornei ao seu espaço e perguntei o que ele tinha montado com as pedras. Ele dizia não saber o que tinha feito e que estava sem ideia. Percebi que as pedras formavam caminhos. Perguntei se eu poderia entrar no espaço dele. Ele deixou e eu me sentei do lado dele. Propus que andássemos juntos pelo espaço. Ele perguntou se podia ir arrastando e eu respondi que sim. Ele começou a se arrastar no chão, fazendo muita força. Com o corpo no chão, começou a apontar os caminhos e aos poucos essa ação virou um movimento de riscar uma trajetória. Perguntei o que ele fazia com as mãos. Ele respondeu que era algo parecido com um labirinto. Perguntei se ele conseguia sair do labirinto e ele respondeu que não, pois era fechado. Ele sentou e disse que o pé doía. Aproximou-se da bola. Perguntei se ele queria brincar com ela. Ele levantou e começou a brincar com o objeto, rolando-o pelo espaço.

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Criança G

G estava com um tecido amarrado na cintura como se fosse uma saia, e outro jogado nos ombros como uma echarpe. Ela andava pelo espaço até pegar a boneca e carregá-la no colo. Seu caminhar ora era com o apoio dos dedos do pé e ora com o pé inteiro no chão. Ela fazia movimentos de sentar-se à mesa, comer, estudar, entre outros. Coloquei uma música e pedi que ela se movimentasse pelo espaço. Ela saiu saltitando, aproximou-se da boneca, cobriu-a com o tecido, fazendo uma trouxinha, deu-lhe um beijo e voltou a saltitar pelo espaço, segurando sua saia com a mão. Eu aproximei a máscara de boi e duas matracas de um dos cantos do seu espaço. Perguntei se ela tinha visto um boi no seu espaço. Ela disse que no seu espaço nunca teve boi; aproximou-se da máscara, deu um leve chute em direção a ela (mas sem atingir) e perguntou o que ele, o Boi, fazia ali. Ela continuou com esses chutes seguidos e disse que não havia gostado dele. Saiu pelo espaço novamente saltitando, mas logo voltou a conversar com o Boi, perguntando o que ele tinha ido fazer ali. Falei para ela pegar e mexer com o Boi para ver se ele diria algo para ela. Ela começou a chacoalhar a máscara, segurou o Boi pelo chifre e continuou a balançar. Saiu pelo espaço e chutou o ar com as pernas, enquanto sua mão também trazia a qualidade de movimento de chutar, só que segurando a máscara. Seu rosto revelou uma modelagem fechada; as sobrancelhas se fecharam e os lábios formaram um leve bico. Perguntei o que ela estava sentindo e ela me respondeu que estava normal. Falei para ela chutar mais rápido. Ela aumentou a dinâmica e seu rosto apresentava um sorriso nos lábios e a testa e olhos enrugados (máscara fechada). Ela parou e disse que estava cansada. Eu dei um tempo a ela, indo visitar o dojo de outra criança. Quando saí, ela pegou as matracas e começou a bater uma na outra e a falar que queria fazer fogo. Retornei. Ela vestiu-se com outros tecidos, fazendo um véu e um vestido. Começou a dançar com as matracas e com um dos tecidos que caiu do seu corpo. Segurou as matracas junto ao tecido. Ao fazer isso, as matracas tomaram a figura de chifres do tecido. Ela dançou com o Boi de tecido. Girou e movimentou-se, balançando o tecido. Por fim, G colocou

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os tecidos no chão e fez uma cama. Deitou com a boneca e fingiu dormir. Falei para ela que o sol brilhava e que era hora de acordar.

Criança M

Levou três cadeiras para seu espaço e colocou tecidos em cima, fazendo uma cabana. Entrou na cabana. Perguntei o que ela fazia lá dentro. Ela respondeu que dormia e pensava ali. Falei para ela se movimentar, a fim de ver que outras coisas ela fazia lá dentro. Ela saiu da barraca, pegou a boneca; voltou e ficou me espiando. Pegou a máscara de boi e ficou dando voltas e observando a máscara. Arriscou uns saltinhos em volta da barraca e, por fim, colocou a máscara encostada na barraca do lado de fora. Surgiu a figura do Boi completo, como carcaça de festa. Ela se afastou da “barraca-boi” e eu falei para ela que a barraca estava parecendo um “boizão”. Ela concordou e foi para dentro da “barraca-boi”. Saiu, sentou do lado dele e fez carinho. Falei para ela dançar com esse boi que estava no espaço dela. Ela pegou a máscara, a boneca e saiu pelo espaço. Ficou por muito tempo arrumando os tecidos no seu espaço. Ela montou um desenho no chão com os tecidos. Perguntei o que ela tinha feito e ela me respondeu que era uma “formação”.